terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Noite de fim de ano

FERNANDO MORAIS GOMES


A farmácia ficou de serviço na noite de fim de ano, a Mafalda asseguraria o expediente. O comboio para Sintra estava a chegar e Eduardo só pensava em chegar a casa, onde Sónia esperava com o champanhe e as passas.

Cinco anos numa farmácia no Cacém, de tudo vira já, a farmácia era um espelho: os unguentos para o reumático da D.Marinela, sempre a aviar receitas e reclamando das artroses, os Gurosan para a fauna da noite, malandreca e ressacada, o antibiótico do Gonçalo, pai desempregado e mãe a dias num infantário, comparticipação pequena. O pior, eram as noites, o Cacém cada vez mais perigoso, perdido entre seringas, nada como uma farmácia para perceber a crise.

Levou para casa a mala com amostras que o Faustino, delegado de informação médica, lhe deixara, no dia seguinte, feriado, entreter-se-ia a folhear a literatura, os laboratórios estavam sempre a inventar produtos, todos fazendo o mesmo efeito, a indústria precisava de ser oleada e criar produtos novos, vira o que sucedera com a gripe A.

A viagem seria de dez minutos, já pouca gente ia no comboio, mais a caminho das docas e do Terreiro do Paço, animados para a festa, que a crise pode esperar. Na carruagem, quatro ou cinco passageiros, apenas, um careca amorfo, com o olhar baço reflectido no vidro grafitado, duas brasileiras de roupa exuberante a caminho do trabalho, pelo cheiro do perfume barato, um jovem de óculos com um portátil, falando com amigos no Messenger. A carruagem seguia silenciosa, intervalada pela voz melosa indicando a paragem seguinte, soava doce a palavra Algueirão naquela voz de aeroporto, quem não conhecesse poderia pensar estar em Paris ou Barcelona.

Em Rio de Mouro saiu o careca, levando uma maleta, a marmita do almoço por certo, a passagem de ano seria a dormir, sem disposição para festejos, mais um ano na vidinha que não vai mas vai indo. Da carruagem contígua, chegaram quatro jovens africanos, com piercings reluzentes como árvore de Natal, boné da NBA e ténis reflectores. Depois de ruidosos pontapés nas cadeiras, marcando o território, e do abrir e fechar de portas, invasivas e invasoras, um, com as calças quase pelos joelhos, aproximou-se de Jorge e apontou-lhe uma faca à jugular:

-Meu, passa para cá o caroço, e depressa! E não te chibes, que ainda é pior!

Eduardo sentiu a lâmina fria na garganta, as brasileiras, surpresas, nada disseram, que nestas coisas o melhor é ficar de fora, indocumentadas por certo. Buscou no bolso das calças a carteira com trinta euros, o cartão multibanco e cartões de visita de delegados de informação médica.

-Só isto, sócio? Então hoje não há festa? -pelos vistos teriam de ir abordar o caixa de óculos, que fazia não ser nada com ele. Eduardo achou melhor ficar calado. Eram quatro, um sacou os trinta euros enquanto o da faca o manteve quieto, não fosse pegar no telemóvel e chamar a polícia, depressa desapareceriam na noite a beber cervejas e enrolar um charro. Junto à porta, um dos sócios, para aí com dezoito anos, empalideceu e caiu desamparado no chão da carruagem. Surpreendidos, os outros começaram a desatinar:

-Levanta-te chavalo, estás bezano, meu? -sacudiram-no como baratas tontas, sem saber o que fazer. As brasileiras entreolhavam-se, parecia coisa do morro.

-O minino bébeu? Nossa, que barra pesada! -comentou uma, sem se levantar, um decote de passagem de ano deixava descobertos os peitos rijos e salientes. Eduardo virou-se para o seu sequestrador e interpelou-o:

-Oiçam, eu sou farmacêutico, percebo um pouco destas coisas, deixem-me tirar-lhe a pulsação -sugeriu, apesar da situação, era um profissional.

O da faca, com um capuz enfiado, hesitou, mas anuiu, desviando a lâmina, o rapaz do computador aproveitando a trégua inesperada, chegou-se, curioso, enquanto o Algueirão ficava para trás sem ninguém ter saído, Eduardo colocou o aparelho no braço do jovem:

-É quebra de tensão. Oiçam, trago aqui amostras duns comprimidos novos que estimulam o organismo, isto deve ajudar -diagnosticou, abrindo a mala das amostras que levava para ler no feriado. Abrindo-lhe a boca, ante a passividade dos amigos, enfiou-lhe uma cápsula branca, e cinco minutos depois, sentado num banco da carruagem já o jovem, Vando de nome, recuperava, com dor de cabeça e ar assustado.

-O melhor é fazeres umas análises, pode ser algo do coração, ainda és novo, puto! -recomendou Eduardo, apesar de assaltado não resistiu a pôr a mão no ombro do rapaz, complacente com aquelas vidas perdidas talvez nunca programadas para ser de outra forma. Acabrunhado, Vando nada disse, os outros em silêncio rodeavam. O da navalha olhou Eduardo nos olhos e com um ar fechado e inexpressivo estendeu-lhe a mão onde ainda tinha os trinta euros do assalto. Eduardo olhou-os de relance, e sem aceitar, despediu-se, conformado:

-Bebam um copo à minha saúde! Bom ano!

E saiu na Portela de Sintra, as brasileiras também, entrando num carro que as esperava, também o moço do computador sumiu na noite fria. Em breve seria um novo ano, também no cúmplice comboio de rejeições. Os quatro sócios seguiram para a vila, deambulando junto ao paço, com o Vando mais descontraído. Metendo a mão ao bolso, encontrou a caixa dos comprimidos, e na frente, escrito a azul um “Bom Ano Novo” em letras grandes.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Os Nobres, os Plebeus e os Incógnitos!


RUI OLIVEIRA

Frequentemente encontra-se nos Registos Paroquiais de Belas, nomeadamente, nos de Baptismo os que estão, para já, submetidos a uma leitura mais atenta e metódica o registo de baptismo de crianças em que as mães são referidas como: escravas de fulano de tal….; em que o pai é dado como: incógnito. Esta realidade, não sendo esmagadora, está longe de ser esporádica e temos até registos em que a mesma escrava tem, nestes livros, dois registos de crianças baptizadas.

Naturalmente que existem, também, registo de crianças em que ambos os pais são escravos. A posse de escravos, ainda pela leitura dos registos, é transversal na sociedade. Pelo que temos Nobres, como os Soto Maior, da Ponte Pedrinha, Padres, mas, também, gente sem qualquer grau ou título nobilitário ou poder político, mas com peso económico localmente ou mesmo a nível do Reino. Precisamente neste patamar, o de gente com dinheiro, está o registo que aqui vos deixo.

A escrava Guiomar, como nos diz o registo, era de Joseph dos Ramos da Silva, provedor da Casa da Moeda, senhor de uma poderosa fortuna, ganha no Brasil, pai de um dos mais desconhecidos intelectuais setecentistas, o Matias Aires. Da passagem desta família rica, mas plebeia, pela Agualva, ficou o majestoso palacete que, tal como a família, teve e tem uma existência atribulada.

Do registo, propriamente dito, também podemos reter alguns dados interessantes. A primeira é que o texto não foi escrito pelo Prior de Belas, Gaspar de Negreiros, uma vez que a sua assinatura denota dificuldades motoras na escrita; algo que fomos constatando ao longo de um período razoável. A situação poderia estar relacionada com o envelhecimento, doença de foro neurológico e ou de visão. A segunda, o texto, apesar de caligrafia regular, apresenta uma fórmula textual ligeiramente diferente da usual neste tipo de registos, sugerindo que quem escreveu não estava familiarizado com as normas de registo.

Coincidência ou não, o Prior de Belas, também tinha, pelo menos, uma escrava que foi mãe; tendo a criança recebido nome de Bento, do qual temos o Registo de Baptismo.




sábado, 28 de dezembro de 2013

Eu outsider de tudo

JORGE TELLES DE MENEZES












Eu outsider de tudo
sem compromissos, contemplo,

aqui do alto da serra

de ventos enovelado

sentado na pedra anímica.



«Perversão lusitana» na raiz

da árvore, de agoras que nunca foram,

saudades – até da febre da conquista

da noite escalada, lutada, morta,

dos joelhos no chão, no sol ao meio-dia.



Mais no alto: olhar as nuvens,

se tudo fosse assim no mundo,

por que não assim, Portugal?

O vento, barcos ao longe, ar,

muito ar, aqui, a ver o mar.





Sobre o túmulo de

Ferreira de Castro,

Junho de 1985

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Ela Moça, Ele Moleiro- Um conto de Filomena Marona Beja

FILOMENA MARONA BEJA


Frio! Deram-se conta logo que Ana abriu a porta da cozinha.

Sentira-se de repente, na véspera. E aguçara durante a noite, com o vento. Mas não era de estranhar.

- Estamos no tempo dele.

No fim do Outono.

Do outro lado da estrada principiara o desbaste dos pinheiros.

Alguns acabariam em árvores de Natal. Há ainda quem rejeite os abetos em plástico.

Um pinheiro ao canto da sala faz-se lembrar, espalhando o cheiro da resina. Estala, de vez em quando. E tudo o que se lhe arme nos ramos parecerá tão natural quanto as suas próprias pinhas.

Com Janeiro a marcar o fim da festa, desligam-se as luzes, guardam-se os enfeites.

A árvore ensecada. Sacode-se-lhe a neve artificial, aproveitam-se tronco e caruma para a lareira.



Ana voltou para dentro.

- Arrefeceu mesmo! É melhor trocar o casaco ao menino...

Joaquim não se levantara da mesa. Escorreu o resto do café para a caneca. Foi bebendo.

O filho à porta a acabar de comer.

Veio o Sax dando ao rabo, farejando. Queria a sua parte.

O rapaz riu-se e deixou-o abocanhar o resto do pão. Depois lambeu os dedos, saboreando os vestígios de manteiga.

Dedos curtos. A palma da mão quase sem pregas.



Ana tornou à cozinha, trazendo um anorak.

- Será que ainda te serve?... É o do ano passado.

Correndo o fecho, ficava apertado. A pele sintética, à volta do capuz, acusava uso. Mas servia. E as mangas até continuavam compridas demais. Dobrou-as.

- Tens a mãos engorduradas...

Foi buscar uma toalha.

-...e a boca?

A língua a pender, entre os lábios. Meteu-lha para dentro.

- Vamos, Joaquim?... Está na hora!

- Vai indo, com o menino. Eu...

Tinha ainda coisas a fazer. Dar de comer aos coelhos, apanhar os limões atirados ao chão pela ventania da noite. E espalhar granulado na estufa, para evitar que as lesmas devastassem as alfaces.

-...vou lá ter, de bicicleta.



Joaquim fora ajudante de farmácia.

Ana tivera vários ofícios. Costura, limpezas, companhia. E finalmente, encarregada da copa num café.

A farmácia e o café eram na mesma rua, num subúrbio de Lisboa. Impossível não se cruzarem. Não terem reparado um no outro.

- Já não é um homem nada novo... mas bem jeitoso!

- Deve ter mais de quarenta... mas ainda é um pedaço de mulher!

De onde era ele?

Mata da Rainha.

E ela?

Marco da Serra.

Terras voltadas para o pinhal. De um lado o mar, do outro a serra. Vinculadas, em tempos idos, à mesma comarca: Alcedas.

- Saí de lá com doze anos.

- E eu, com quinze.

- Quem diria que éramos de tão perto!...

- Somos...

E seria bom terem cuidado. Juízo. Nunca se sabe no que podem dar as inclinações tardias.

Não deixaram, porém, de atravessar a rua sempre que tinham ocasião. Pretexto. Ora por um café ora por uma carteira de aspirina.

               

- Ontem à noite, quando já estava a arrumar tudo...

Ana cortara-se com a faca do presunto. Não havia meio do sangue parar, e a água oxigenada acabara.

- Porque é que não me ligou?...

Joaquim vivia num anexo da farmácia. Ana estava a par.

-...podia ter ido lá tocar.

Acabou por ir.



- É melhor eu não voltar cá, Joaquim...

- O que é que te deu, Ana?... Parece-me que não te tenho faltado com nada!

- Não...

Ela é que ia já na terceira falta.

Joaquim pulou da cama.              Um filho, quase na idade de serem avós?!



Uma criança diferente. Souberam, logo que nasceu. E, desde daí, modificou-se-lhes a vida.

Não se pense, no entanto, que o toleraram como uma adversidade. Antes com um pressentimento de amor.

E amaram-no, não lhes importando porquê.



Teimavam em o alimentar, dar-lhe banho, vesti-lo. Corriam a aquecer botijas-miniatura, se lhe arroxeavam os braços ou as pernas.

Veria? Ouviria? Seria capaz de caminhar? Fosse como fosse, não o queriam perder.

Levaram-no a hospitais e a consultórios de especialistas.

Procuraram-lhe uma clínica de reabilitação: muito cara. Uma escola especial: não conseguiram vaga.

Ana deixou de trabalhar no café.

Então, uma notícia ao acaso levou-os de volta ao pinhal: abrira em Alcedas um “Instituto” para deficientes.

Informaram-se.

Ensino para uns, oficinas para outros. E acolhimento, para quem a família faltasse.

Pagava-se?

Claro! Mas tanto podia ser em dinheiro, como em trabalho.

- Ainda tenho a casa que era da minha avó, na Mata da Rainha...

-...vamos?

Joaquim pediu a reforma. Foram.



Havia dezasseis anos que ali estavam. Sim, dezasseis anos.

E ainda que Ana e Joaquim continuassem a dizer “o menino”, o rapaz faria dezassete no Verão seguinte.

Passava das oito. O largo principal de Alcedas estava deserto.

A camioneta parou. Era o fim do percurso, e toda a gente desceu. Cada um foi para seu lado, à pressa.

Ana e o filho atravessaram o largo.

O Instituto ficava em frente, na Casa dos Condes. Paço da Justiça, no tempo em que a Vila fora sede de comarca.



A descendência dos senhores de Alcedas deitara contas à sua mansão.

Estivera muitos anos sem serventia. Duas filas de janelas, uma de mansardas. Vidraças partidas, pombos nas sacadas. Metros e metros de caleiras entupidas.

Uma fortuna, só para recuperar tudo aquilo!

E depois, pagar os impostos? Manter o jardim, as paredes, os telhados?

Seria melhor doar, para casa de assistência a pessoas diminuídas.

Para asilo de tolinhos e paralíticos”, dizia-se. Na redondeza do pinhal.

E quase todos lembravam as últimas gerações dos Condes, a casar entre si. Primos com primas. A procriarem coxos e tarados.



E diziam mais:

Os Condes tinham posto no Instituto um administrador de fora de Alcedas. Era um homem com poucos estudos e, além disso, de muito pouca sabedoria.

Tinham-no ido buscar porque era ainda parente deles.

Parente?!

Sim. Reparassem só na filha: braço torto, perna a arrastar. A desgraça dela, apesar de muito bonita, era vir de quem vinha. Por bastardia que fosse.

Todos tratavam o Administrador por “Dom”. “Dom Álvaro”. Ia-lhe melhor que “senhor”. Ele próprio concordava.

Ninguém no átrio.

Ana indecisa: ajudava o rapaz a encaminhar-se, ou levava-o com ela? Àquela hora, já devia ter as batatas descascadas, o panelão da sopa ao lume.

-...oito e meia!

Tinha ainda de ir ao vestiário mudar a roupa e apanhar o cabelo.

- Anda, vem lá...

Mas o rapaz não queria ir. Falava do ensaio. Puxava-a para a porta do salão.

Abriram.

Ninguém. Tudo às escuras, e frio. Muito frio.



De repente, ouviu-se:

O menino está  dormindo,

nas palhinhas despidinho ...



O rapaz correu, levava a língua toda de fora. As vozes vinham do refeitório. O ensaio era lá.



A festa de Natal.

Acontecia, na época devida, desde que o Instituto era Instituto. Cânticos, representações, muitos doces. E um presépio vivo, que se armava no salão.

- Os figurantes são todos pupilos da Casa – orgulhava-se Dom Álvaro.

Logo no ano em que chegara, o rapaz fora Menino Jesus. Depois, uma das crianças que apanhavam erva para dar à vaca e ao burrinho. Tocador de pífaro, mais tarde.

Iria, agora fazer de moleiro. Aparecia de cara e roupa polvilhadas de branco. Entrava e saía de uma azenha. Vinha uma moça buscar um saquito de farinha, dizendo que era para oferecer ao Menino. Entregava-lho.

A moça engraçara com os modos dele. Com a linha dos olhos e a boca sempre a deixar que a ponta da língua passasse.

E ele engraçou com ela. Sem lhe fazer diferença o entortar do corpo ou o arrastar da perna.

Começaram a ficar juntos, depois dos ensaios. Dir-se-ia que conversavam como conversam todos os rapazes e raparigas, naquela idade. Frases incompletas, palavras sem consequência.

E uma tarde, sozinhos no quarto onde se guardavam os adereços, ele beijou-a.

Ei-los apaixonados. Sem poderem desvendar o que é o amor, nem admitir que os contrariassem. Como acontece a todos, quando se apaixonam.



E já ela estava à porta do refeitório. O saco vazio, pendendo-lhe do braço.

Ele acenou um “até logo”, à mãe.

- Até logo, filho.

- O que aconteceu?!

Joaquim saltou da bicicleta e tentou levá-la à mão, até à porta do Instituto.

O largo cheio de gente? Uma ambulância e a Guarda diante da Casa dos Condes? Porquê?!

Chegou-se a um conhecido e perguntou se tinha havido algum acidente.

- Não sei... talvez...

- Se houve, tenho de lá ir...

Joaquim mantinha o posto de socorros do Instituto. A caixa das compressas, a das ligaduras, um armário com remédios. E a experiência de ter trabalhado, quase quarenta anos, numa farmácia.

Foi rompendo, até ao Jeep da Guarda.

Muitos tons de voz, à sua volta. Todos a repetir o nome de Dom Álvaro.

O cabo da Guarda, também seu conhecido, disse-lhe que não podia passar.

- Que diabo!... A minha mulher e o meu filho estão lá dentro!

- Mas também lá estão as autoridades...

Que autoridades? Porquê? E a ambulância?

Silêncio. Um estranho silêncio.

A entrada pelo quintal!...”, lembrou-se.

Portão em madeira, de um só batente. Deixavam-no quase sempre no trinco.

Deu a volta à Casa, empurrando a bicicleta.

Sim, estava aberto.

Correu até à cozinha.

- ANA!... ANA!...

Não estava ninguém.

Foi pelos corredores. As portas todas abertas,  salas e gabinetes vazios, coisas atiradas para o chão.

Era como se todos se tivessem precipitado porque alguém gritava. Gritos terríveis.

 Acabou por esbarrar com um maqueiro.

Embora não o conhecesse, perguntou o que era aquilo. O que se passara, afinal?

- O Dom Álvaro foi dar aí com um miúdo em cima da filha... ela com as saias para cima, ele sem calças...

- E o que é que ele fez?!... Bateu-lhes?...

Puxara de uma navalha que trazia sempre consigo, e capara o rapaz.

Deixara-o a esvair-se, enquanto arrastava a filha para o seu gabinete.

Berrava-lhe: “Desavergonhados!  Ele já está, e agora tu...”



Entretanto, alguém chamara a ambulância, e a Guarda.

- Mas quando a gente cá chegou...

O rapaz já estava morto.

- Parece que era filho aí de uma das cozinheiras... e o pai...

O Capitão da Guarda dera logo voz de prisão ao Administrador. Mas ainda perguntara:

- Afinal o que alega, senhor Dom Álvaro?... Porque é que deu cabo do rapaz?!

- Não ia deixar que eles ficassem ali, a fazer aquilo... Pois não?

Consentir que lhes viesse um filho ainda mais atrasado de juízo que ele? E mais aleijado que ela?



Joaquim deixou-se escorregar até ao chão. Não chorava. Gritava:

- Estúpido!... Estúpido!...

Mais que estúpido.

- Ignorante!

Dom Álvaro nem sequer sabia que todos os portadores de trissomia-21 são estéreis.