domingo, 30 de março de 2014

Guardanapo de Papel

FERNANDO MORAIS GOMES 

Arnaldo raramente ia à praia, vivia enfiado naquele sótão da casa na Rinchoa onde escrevia  poemas que ninguém lia, tesouro da sua gaveta, confessionário dum ser torpedeado de inseguranças e fantasmas. Existia sem viver. Naquele dia, depois da consulta no hospital e a notícia de um fim próximo, tabaco fazendo das suas, sentiu a necessidade de estar perto da água salgada, sentir o cheiro límpido do iodo. Aterrara naquela esplanada da Praia Grande num turbilhão de whiskies duplos. Ninguém nos ensina a morrer, mas a verdade é que todos os dias da vida são intervalos que a morte nos concede.

Um cancro no pulmão intrometia-se, convidado indesejável. No início a surpresa, a hipótese do engano, a segunda opinião. Depois o desespero, presença insuportável, lágrimas, mágoa, as dores como companheiras mais chegadas. Estava só, naquela morte de viver, os livros que nunca editara, tudo comprometido por um corpo frágil e tangível, qual anjo caído, pecador, mergulhado em culpas secretas a quem iam faltando asas para voar. Exaurido do mundo, exaurido de si, talvez finalmente descansasse.

Antevia já a campa inerte onde poucas flores lhe iriam levar, uma lápide burocrática e igual a todas as outras, ninguém para lembrar a obra desconhecida por editar, só aquele solitário funcionário do registo civil a escrevinhar em guardanapos de papel na mesa do canto da leitaria do bairro as obras- primas da sua gaveta secreta,fumando os religiosos três maços de cigarros diários. Agora acendia mentalmente o cigarro e fumava com a imaginação, comprara um isqueiro de plástico. A quimioterapia fazia das suas, os cabelos cada vez mais agarrados ao pente, tosse purulenta, olhos inchados.

Uma vez mais pegava na caneta e no guardanapo de papel e ensaiava um testamento, requiem dos bens que não tinha para uma família que não existia. Quando tudo acaba não sabemos ao certo o que devemos pensar, há a tentação de escrever para imortalidade. Redigiu umas linhas, levantou-se, passeando no areal, um trilho de pegadas na areia molhada.Ignorou o médico, e fumou um dos cigarros assassinos, o mal estava feito.

No dia seguinte, a roupa foi encontrada numa rocha, o corpo nunca apareceu. Um empregado da esplanada, limpando as mesas, deu com um pequeno papel amarrotado dentro de um cinzeiro. Curioso, foi ler.”Hoje começa o dia de amanhã”.

quarta-feira, 26 de março de 2014

Casal de São Domingos, a melhor notícia

JOÃO CACHADO


No passado dia 28 de Fevereiro, publicou o Jornal de Sintra o meu artigo "Defesa do Património, coerência de propósitos". Pois, imediatamente, na tarde daquela mesma sexta-feira e depois de o ter lido, o próprio Presidente da Câmara Municipal de Sintra me contactou, protagonizando atitude que muito me sensibiliza, através da qual pretendeu dar um sinal que cumpre salientar.

Desde já, aliás, também importa evidenciar que, no contexto do episódio, li e interpretei o sinal em questão, não em relação ao específico signatário do texto publicado, mas, já que tal é o meu enquadramento, ao respeito que lhe merece a intervenção cívica de todos os cidadãos que, como eu, se preocupam com situações de degradação incompatíveis com o que Sintra merece.

Dando a entender como bem compreendia o contexto das denúncias que eu tinha apontado, aproveitou a oportunidade para informar que, relativamente a um dos casos, já tinha uma boa notícia. Ora, para melhor entendimento do que se segue, lembrar-vos-ei que, referindo exemplos da designada Cultura do Desleixo, como os do Vale da Raposa e fontanários da Estrada Velha de Colares, também escrevia eu:

"(...) Dentre alguns assuntos que, en passant, aproveitaria para chamar a atenção do Dr. Basílio Horta, durante o percurso pela Alfredo da Costa, avulta o do Casal de São Domingos cuja visível degradação é espelho do que se passa no interior e nos infelizes anexos do jardim. É uma lástima que merece a urgência de uma intervenção adequada.(...)"

Então, a boa notícia é, precisamente, sobre o Casal de São Domingos. Ali será instalada a sede da Empresa Pública Municipal de Estacionamento de Sintra, medida que permitirá acabar com o estado de decadência do edifício e pequeno jardim que, como todos sabemos, têm sido objecto de tantos e tão justos reparos, quer de munícipes quer de forasteiros que por ali passam e não podem deixar de lamentar o que é tão patente.

Durante a conversa em apreço, o Senhor Presidente também me sossegou quanto às medidas que ia tomar relativamente ao Vale da Raposa e fontanários, cujo estado de descuido era bem evidente nas fotos que ilustravam o artigo em apreço, que, em suma, tinha originado a boa conversa que quisera ter comigo mal fora publicado.

Natural e compreensivelmente, não poderia deixar de vir partilhar não só a boa nova mas também do meu regozijo e dos concretos indícios que parece poderem animar-nos. Concluo com o mais sincero e veemente dos votos, esperando que, pelo caminho, os objectivos do Presidente não encontrem quem lhe faça contravapor

Imagens dos blogues Sintra em Ruínas e Retalhos de Sintra

terça-feira, 25 de março de 2014

No tempo em que o circo vinha a Sintra!

JOSÉ CARLOS SERRANO
Era mágico, todos os putos ficavam ansiosos, todos queriam ir. Ficava instalado no terreno onde está, atualmente, o Departamento de Urbanismo.
Era uma correria para ver as jaulas dos leões e outros animais, espreitar, tudo era novidade.
Havia alguns circos em que aos putos, da terra, que ajudavam a montar a tenda ou a fazer recados, ofereciam entradas.
Eu, uma vez, tive a sorte de andar de burro. Diziam que os burros eram para alimentar os leões. Sinceramente, nunca acreditei nisso.
Numa célebre tarde, daquelas em que o circo já estava montado, fui ver o ambiente e fiz amizade com um puto do circo que me proporcionou isso, uma volta de burro! Uma cela, feita com um bocado de cartão, umas fitas de caixote para me segurar e lá dei uma volta.
E não cai!
Pois tenho 49 anos e nunca mais montei nada, até hoje!
A minha mãe conta que uma vez me levou ao Circo, era puto, não me lembro, e que havia um numero dos palhaços com um carro que explodia. Apanhei tal cagaço que me fartei de chorar!
É a vida!
Por acaso o terreno onde o circo se instalava era mesmo bem situado. Creio que quando o circo aparecia só ficava, mesmo ali.
Todo o Concelho, se queria ver circo, tinha de vir a Sintra.
Lembro-me que também serviu para lá instalarem algumas vezes carrinhos de choques.
Mais tarde já nos anos 90 se fizeram alguns concertos, festas e até feiras de automóveis.


segunda-feira, 24 de março de 2014

Ode ao G

GONÇALO NUNO NEVES







Um seis incompleto,
Um hexágono aberto;
Uma espiral do mundo
De infinidade como atitude...
Um prefixo de musicalidade
Que por mil milhões se multiplica,
A todos os astros ou qualquer unidade
Um não mudo Sol brilha rude.
De um Sol que germina como um Grão-grão:
Semente leguminosa e luminosa,
Alicerça a estabilidade da Gravitação,
Presenteando-nos a gravidade e a situação...
Incompleto por descansar ao "Dia-de-Sol",
Aberto para deixar entrar o Verbo
Que tanto se aclama na origem,
Mas à sétima do nosso alfabeto
Clama pela grama da chama de uma vertigem...
O Gás ganhou peso
E a vertigem existência.
Que transcendência: FICO TONTO!
Pois que depois de vir o Ser,
Todos vimos do "ponto".


"ANTOLOGIA DE POESIA CONTEMPORÂNEA - (Entre o Sono e o Sonho)", Vol. V, Tomo I, Chiado Editora, pág. 539.

(Gonçalo Nuno Neves)

sexta-feira, 21 de março de 2014

O Baile das Camélias

FERNANDO MORAIS GOMES

A sala estava profusamente engalanada, orgulho dos jardineiros que andaram preparando o evento: a noite das Camélias. O visconde de Asseca, o Presidente da Câmara, Joaquim Fontes, Medina Júnior, Rui Cunha, todos compareciam, com as esposas e as filhas casadoiras. Em breve o visconde de Asseca receberia a princesa Margarida, irmã da rainha de Inglaterra, e seria juiz da festa da Senhora do Cabo em S. Miguel, pelo que teria um 1959 em cheio. Homem alto e altivo, fora visita regular de D. Amélia em Versailles, durante o exílio, e sua ligação privilegiada desde que a condessa de Seisal falecera de provecta idade.


Ao microfone, Amadeu José de Freitas convidava os pares para os boleros e valsas, temas de Frederico Valério e Tavares Belo, e a orquestra excedia-se, ritmada, tocando congas, rumbas e músicas da moda. Os mais velhos falavam de política, exaltando as obras do governo: o novo ringue do hóquei, o matadouro, o bairro económico de Queluz, a bem da Nação, a política de fomento chegava a Sintra. Um discurso aqui, uma inauguração ou lápide ali, o progresso chegava ao ritmo de jantares e homenagens.


Olavo Moreira, jovem licenciado em Direito, era o secretário do visconde, e naquela noite estava particularmente atento a Lucrécia, uma corista do Maxime a quem convidara para o baile, embora dela não conviesse aproximar-se, era perigoso. Lucrécia, de sorriso malicioso, já lhe conhecia os hábitos, e sobretudo a carteira, e disfarçava trocas de olhares junto ao bar, onde assistia acompanhada de Humberto Madeira, em breve ambos entrariam na nova revista de Giuseppe Bastos. Humberto estava a par da relação, e de soslaio ia piscando o olho.

A certa altura, Olavo invocou um telefonema e saiu na direcção do Hotel Nunes. O gerente era conhecido e cúmplice logo lhe deu a chave da suite rosa, uma previdente nota de vinte compraria a discrição. Lucrécia chegou pouco depois. Lançou-se nos braços de Olavo e, avidamente, beijou-o, e tirou-lhe o casaco, enquanto lhe ia pintalgando o rosto de bâton, qual camélia ao seu dispor. Já rebolavam na cama quando da porta veio um toque seco e cadenciado:

-Quem é? –rosnou Olavo, irritado, ordenando silêncio a Lucrécia.

-É urgente, senhor doutor! Está um senhor lá em cima para falar consigo! – respondeu o porteiro da noite.

-Comigo? Aqui? -compôs-se, num ápice, e subiu à recepção. Era Arménio Raposo, agente da PIDE e visita assídua de Sintra, a quem a escapadela do baile não passara despercebida. Em Lisboa seguira-o no Maxime, havia ordens de discrição, o visconde era uma figura grada do regime e não se queriam escândalos.

-Sr. doutor…não queria incomodar, mas….Sintra, sabe, é muito pequena. Ainda se fosse no Estoril…-insinuou o agente, enfiado numa gabardina enxovalhada e com um borsalino preto. Olavo ficou furibundo:

-Você, aqui? Como se atreve a incomodar-me? -reagiu altivo e desafiador. Quer que o senhor visconde telefone ao seu chefe e o mande para os Açores de guarda aos cachalotes? -ameaçou.

-Eu se fosse a si não fazia isso, senhor doutor…-e puxando da carteira, sacou de uma foto dele com Lucrécia no Maxime, uma garrafa de champanhe francês ao lado…-O senhor ministro podia ficar incomodado, e nós não queremos que se estrague uma carreira promissora, pois não?..

A armadilha estava montada. Despachado Arsénio com azedume, voltou ao quarto, meteu Lucrécia num carro de praça para Lisboa, e voltou para o baile. Raposo seguiu-o, e discretamente ficou pelo bar, pedindo um copo de vinho. Por essa altura já o álcool reinava entre os convivas: o capitão Américo Santos repetindo-se, contava histórias estafadas do seu regimento em Benguela, no bar, senhoras balzaquianas e já rubras pediam capilés de groselha. O visconde, que trocava impressões com amigos, estranhou a longa ausência de Olavo e procurou-o:

-Olavo, onde foi você numa noite destas? O Provedor da Santa Casa quer falar comigo, mas gostava que você escutasse, tive de o despachar…

-Desculpe, senhor visconde, mas tive de atender um telefonema, era o engenheiro Pavão, por causa do apeadeiro da Portela, sabe, empreiteiros, não sabem quando estão a ser inconvenientes…-inventada a desculpa, pediu um gin e foi falar com o prof. Fontes, o presidente da câmara, a quem elogiou o novo ringue no Parque da Liberdade. O baile continuou e uma hora depois os viscondes voltavam a S. Sebastião, e Olavo à casa dos pais, enriquecidos com o volfrâmio durante a guerra.

Uns dias mais tarde, Raposo foi alvo de um processo disciplinar, dum cofre na PIDE sumira o fundo de maneio, o Mesquita e o Roldão, agentes de 2ª classe, juravam tê-lo visto a tirar o dinheiro e levá-lo numa mala. A foto sumira, entretanto, sem que desse por nada, num aperto de convivas meio ébrios, um amigo de Olavo furtara-lha na noite do baile. A carteira apareceu mais tarde, mas sem a foto. Alvo dum processo inconclusivo, acabou em Elvas, a carimbar salvo-condutos.

No ano seguinte, Olavo voltou à Noite das Camélias. Desta vez, Lucrécia não foi, aguardaria numa vivenda na Rinchoa, um vinho e velas esperariam uma tardia ceia, camélia mas suplente, no baile da vida. A foto do Maxime, ornamentava o psyché junto à caixa das jóias que ele, agora administrador dum banco e em ascensão na União Nacional, regularmente ia acrescentando com brincos de amor e anéis de paixão...


quinta-feira, 20 de março de 2014

A boleia

ANTÓNIO LUÍS LOPES
Um destes dias, no acesso de Rio de Mouro ao IC19, reparei num velhote negro que caminhava na berma com um pequeno "jerry can" na mão. Como mais atrás existe um posto de combustíveis e ele caminhava na direção do IC19, calculei que tivesse ficado sem combustível em plena estrada e se visse forçado a caminhar até àquele posto. Parei o carro um pouco à frente e abordei-o quando passava, perguntando ...se precisava de boleia. O seu rosto suado quedou-se de espanto mas logo me disse que, efectivamente, deixara o carro a poucos metros e necessitara de fazer aquela caminhada para comprar combustível. Sentou-se no lugar ao meu lado, agradeceu a atenção e poucos minutos depois deixei-o junto da sua viatura. Quando saiu, senti que estava visivelmente comovido com um gesto que devia ser banal mas que a dureza dos tempos transformou em quase aventura e apertando-me a mão disse-me: "Fique com Deus, amigo, muito obrigado pela sua ajuda". Fiquei a pensar em como, hoje em dia, o "mal" se banalizou de tal forma que, por vezes, nos impede de proceder da forma correta e nos tolhe enquanto Pessoas. Lembram-se do romance "O meu pé de laranja lima", de José Mauro de Vasconcelos e de como um miúdo brasileiro se faz amigo de um Português emigrado no País irmão, que lhe dá boleia e com quem partilha ensinamentos sobre a Vida e sobre os Homens?... Quem se atreveria hoje em dia a ter um gesto semelhante, com receio de ser acusado das mais vis acções?... O "mal" ganhou espaço - nas nossas vidas, nos nossos gestos, nas nossas inibições, nos nossos medos. Há que "recuperar" o "bem" - a honra da palavra dada, a ajuda sincera e desinteressada, o sigilo de um segredo partilhado, a mão estendida para quem precisa. Ainda iremos a tempo?...

quarta-feira, 19 de março de 2014

No tempo da minha primeira corrida de carrinhos de rolamentos!

JOSÉ CARLOS SERRANO

Parece que foi ontem, mas foi em 1979, no dia 1 de abril, na descida da Praia da Aguda, em Fontanelas.
Foi proclamado, pelas Nações Unidas, nesse ano de 1979, Ano Internacional da Criança.
Terá sido com esse o propósito, festejar, esse honroso dia, com a criançada, que o Senhor Luís Batista e o Grupo nº 93, da Associação de Escuteiros de Portugal, que, nessa altura, tinha Sede no nº 1 da Rua Costa do Castelo, na Vila Velha, organizaram essa prova.
Eu e os meus amigos, tínhamos 14 anos, fomos de camioneta até Fontanelas! Carrinhos debaixo do braço e muita expetativa e ansiedade. Era uma novidade muito grande. Alguém que ia organizar uma corrida “daquilo” que nós fazíamos, todos os dias, junto ás nossas casas.
Foi engraçado! Tinha o patrocínio da “Pepsi”. O tempo não ajudou muito, choveu. O local da partida era quase plano e os carros não embalavam para o arranque. Os escuteiros fizeram o primeiro carro com rodas de bicicleta. Esse sim, andava bastante! Tiveram de improvisar uma rede, na “meta”, para, em caso de não parar com os travões, não haver acidentes.
Lembro-me que recebi uma t -shirt da “Pepsi”. Não me lembro da classificação!
Foi um dia muito divertido.
Saudades!

terça-feira, 18 de março de 2014

Sintra, Festivais de Teatro e de Música em Março [II]


JOÃO CACHADO


De acordo com o anunciado na semana passada, hoje, referência à Temporada de Música 2014 Tempestade e Galanterie, que já arrancou no passado dia 8, no Palácio de Queluz, iniciativa da Parques de Sintra Monte da Lua em articulação com o Centro de Estudos Musicais Setecentistas de Portugal.
Poucas horas antes do recital, em troca de mensagens com o Maestro Massimo Mazzeo, alma mater e Director Artístico desta iniciativa, escrevia ele que o pianista “(…) Ronald [Brautigam], passou a manhã no Clementi e ficou simplesmente deslumbrado com a qualidade da manutenção feita no instrumento, assim como pela magnificência do Palácio. Tenham a vossa alma desperta para o grande prazer que o recital de hoje à noite poderá dar. (…)”

Clementi, grande vedeta

Pois, meus caros leitores, de facto, bem podia o Ronald estar perfeitamente deslumbrado… Este Clementi é do melhor que tenho ouvido, permitindo todas os matizes de abordagem. Está em condições óptimas, após a intervenção de conservação e restauro de que foi alvo. Trata-se de um instrumento com uma estrutura em madeiras de mogno, pau-santo e casquinha, construído em Inglaterra, no ano de 1810, por Muzio Clementi (1752 – 1832), fazendo parte do acervo do Palácio de Queluz por doação de Guilherme Possolo. Vale a pena citar Massimo Mazzeo, alma mater deste Festival:
“(…) Foi alvo de um “processo de recuperação e reconstituição de todas as partes físicas e mecânicas, do qual foi feito um relatório, o que aliás, não existia relativamente ao anterior restauro, feito há 15 anos”, contou. O pianoforte, relativamente ao de hoje, que é uma máquina praticamente perfeita, tem um teclado de cinco oitavas e meia - enquanto que os actuais chegam às sete e oito oitavas – portanto, de dimensões mais reduzidas, com teclas menores, totalmente concebido em madeira, ao passo que, nos nossos dias, já se usam ligas especiais” (…).
O plano de recuperação do pianoforte, cuja diferença para os pianos atuais das salas concerto (…) é como entre um Ferrari e um carro de época”, inclui uma monitorização semanal, com medições de humidade e temperatura e é regularmente tocado, mesmo que não em concerto, cabendo ao cravista e pianista José Carlos Araújo, semanalmente, tocar o Clementi", explicou, de modo a garantir a sua manutenção. (…)”

Recital do dia 8 de Março

Palácio de Queluz, Sala da Música a abarrotar, público muito interessado e, evidentemente, com a satisfação no gesto, no rosto, nos comentários durante o intervalo e no final do recital. Noite grande, da grande música dos tempos do classicismo da Primeira Escola de Viena, um evento em que melómanos atentos ganharam mais umas pedras para o edifício pessoal do seu património monumental.
Naturalmente, Ronald Bautingam que, graças a Deus, já tenho ouvido noutros auditórios, evidenciou o privilégio de o ouvirmos através desta máquina fabulosa, tão bem recuperada, tratada e mantida, que, após os seus mais de duzentos anos de vida, poderá continuar a encantar as audiências como a deste memorável serão.
Não se esqueçam que era do pianoforte, e não dos posteriores Bechstein, Bösendorf, Steinweg, Steinway ou Yamaha, o som que os compositores de setecentos tinham na cabeça quando compunham, este o som que se ouvia nas salas. E, de modo algum, se pode dizer que o piano actual é «melhor» do que um pianoforte, original do século dezoito ou réplica dos nossos dias. São máquinas diferentes, ambas fascinantes.
Quem «disto» muito sabe, muito mais do que eu e do que qualquer simples e interessado melómano, é Paulo Pimentel. Lá esteve no recital do dia 8, para que, durante o intervalo, atento e competentíssimo, procedesse a uma circunstancial, necessária e sumária afinação. Andei pelo estrado, sem perturbar, aproveitando para acompanhar aquela sua atitude de carinho sobre a peça, «pedindo-lhe» continuasse a maravilhar-nos, sempre nas melhores condições.
Permitam que, neste momento, coloque um detalhe mais pessoal neste relato. É que conheço Paulo Pimentel – bisneto do Arq. Raúl Lino, neto de D. Maria Cristina Lino Pimentel e sobrinho-neto D. Isolda Lino Norton de Matos, que, ainda nos anos oitenta, com o meu pai e comigo, faziam parte de um grupo que se deslocava, por exemplo, ao Festival de Música de Lucerna. Que saudades, meu Deus!. Ainda sobre o estrado, já depois de afinar o Clementi, lembrava ele as «conversas musicais», histórias da música e de instrumentos musicais, no escritório do meu pai, na Rua Passos Manuel, quando o Paulo era mesmo muito jovem.
Quanto ao programa do serão, a primeira peça que escutámos foi a Sonata em Si bemol Maior, Op. 24 No. 2, precisamente, de de Muzio Clementi, obra através da qual ele próprio e Mozart se «bateram em duelo musical», no dia 24 de Dezembro de 1781, suscitado pelo Imperador José II. Foi na sequência deste episódio que, na célebre carta de 16 de Janeiro de 1782, destinada ao pai Leopold Mozart, o compositor considerou Clementi um simples Mechanicus.*
A quem ainda não o conhecia ao vivo, logo Brautingam deu a entender como estava em presença de um excepcional artista, que, neste reportório, é dos mais saudados a nível mundial. Seguidamente, de Haydn, aquela que, em 1780, ele próprio considerou a maior e mais difícil Sonata que havia escrito para instrumento de tecla até à altura, a Sonata No. 33 em Dó menor, Hob. XVI/20 (1771); de Mozart, as Sonatas No. 17 em Si bemol maior, KV 570 (1789), uma das mais simples, e No. 14 em Dó menor, KV 457 (1784), cuja tonalidade indicia a pertença ao grupo das obras menos tranquilas e angustiadas do compositor – ainda que, neste capítulo, as peças em Sol menor sejam  as mais perturbantes – e, finalmente, de Beethoven, a Sonata No. 4 em Mi bemol Maior, Op. 7 (1796/7), longa, compósita, belíssima, virtuosística, um absoluto monumento da forma sonata, com um Rondo final que é um verdadeiro testamento escrito, precisamente a meio da vida (1770-1827) do compositor.
A Temporada de Música Tempestade e Galanterie continua já no dia 12 de Março [data em que escrevo este texto], contando com um recital de Kristian Bezuidenhout – estupendo pianista que tive o gosto de ouvir e ver, também em pianoforte, num recital durante a recente Mozartwoche em Salzburg – interpretando em Queluz, além de peças de Johann Sebastian Bach e de Wolfgang Amadeus Mozart, também de Carl Philipp Emanuel Bach, assinalando os 300 anos do seu nascimento. Posteriormente, seguir-se-ão concertos e recitais, no dia 16, com a Orquestra Divino Sospiro, Catarina Costa e Alexandra Campos; a 22, com Alexandre Lonquich (pianoforte) e Christophe Coin (violoncelo); a 28, com o Thalia Ensemble e, finalmente, a 29, Divino Sospiro e Pedro Burmester, sob a direcção do Maestro Massimo Mazzeo. Todo o programa é verdadeiramente imperdível.**
Claro que está de parabéns a Parques de Sintra Monte da Lua. Na realidade, de modo tão patente, continua a demonstrar que, seja qual for a área cultural em que se envolva – como esta, de promoção de eventos no domínio da tão sofisticada e específica música do período setecentista – sempre demonstra a alta qualidade do seu empenho.
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*Não há qualquer testemunho escrito acerca de quem terá ganho a competição mas, isso sim, o rumor segundo o qual o Imperador teria feito uma aposta com a Grã Duquesa da Rússia, Maria Feodorovna, em como Mozart venceria… A verdade é que, na ocasião, José II ofereceu a Mozart um presente de 50 Ducados. Para terem uma ideia do valor actualizado, segundo recente investigação: - 1 ducado continha 4 ½ Gulden. No tempo de Mozart, 20 Gulden equivaleriam a um poder de compra actual de cerca de £350. Tal significa que o presente do imperador rondaria cerca de 3800 libras actuais. De facto, um presente imperial…