segunda-feira, 30 de junho de 2014

O casal de Queluz

RUI OLIVEIRA

A cidade é um organismo vivo! – Fruto, na sua maioria dos casos, de constantes e seculares acções antrópicas. Acções construtivas, de expansão e retracção do seu espaço vital sempre estabelecido com base em equilíbrios múltiplos, nos quais as decisões políticas vigentes, em cada época, nos deixam traços. A verdade é que nem sempre são reconhecidos, de imediato, no terreno; mas, podem ser compreendidos em registos documentais escritos coevos e, posteriormente, confirmados no terreno, numa base de pluridisciplinar de investigação.

O documento de Chancelaria Régia de D. Manuel I, contido no Livro 21 folha 17 v.º, que hoje trazemos, reflecte-nos quem foram os proprietários, que tipos propriedades preenchiam o Termo de Lisboa, nos inícios do Século XVI e numa época em que este, a Ocidente e a Norte, chegava, respectivamente, à Agualva e Almargem do Bispo, sendo que, grande parte da Ribeira da Jarda foi, durante séculos, a sua fronteira natural entre Sintra e Lisboa.


                      
 Nota: Na Transcrição e Transliteração deste documento optamos pela manutenção do texto na sua máxima pureza, isto é: na sua grafia, estrutura fonética e discursiva. Desdobramos as abreviaturas automaticamente, sem as assinalar par não dificultar o curso da leitura. Todas as nossas intervenções do texto são desenvolvidas em colchetes rectos “[ ]” e com  caracteres de corpo diferente. A Mudança de Linha no texto original é assinalada com barra vertical “|0 “ devidamente numerada para que se identifique qual a linha. O Fim do Texto ou Paragrafo são assinalados com barra vertical dupla “||”. Leitura da Responsabilidade de R. O.




[1] - Neste tipo de documento que nos parece ser um primeiro rascunho de anotação, a parte textual de recitação e exaltação do soberano que, no caso de D. Manuel I, era considerável, só figurava nos documentos finais que vinham a público.

[2] - Isaac ben Judah ou Yitzchak ben Yehuda Abravanel ( Lisboa, 1437 - Veneza, 1508), filósofo[], comentador da Bíblia e banqueiro judeu português. Em várias obras é referido apenas pelo seu apelido, que por vezes surge como Abravanel, Abarbanel ou Abrabanel. Muitos estudiosos da Torá e do Talmude referem-no simplesmente como "O Abarbanel". Nasceu em Lisboa, em 1437, detinha uma importante propriedade, entre outras, no termo de Lisboa, em Queluz. Propriedade que acabou confiscada por D. João II, pois este acreditava que o Isaac Abravanel estava implicado numa intentona contra a sua Pessoa Real[]. Conseguiu fugir de Portugal e faleceu em Veneza em 1508 e foi enterrado em Pádua. A família Abravanel é uma das mais antigas e distintas famílias judaicas sefarditas, cuja ascendência directa tem origem no Rei David bíblico. Membros desta família viveram em Sevilha, onde viveu o seu representante mais velho, de nome, Judá Abravanel.

[3] – Santo Eloy ou Loios, Instituição canónica de Cónegos Regrantes de São João Evangelista, que foram os sucessores da instituição criada pelo Bispo de Lisboa e Chanceler Mor do Reino, no tempo de D. Dinis, o Bispo Domingos Anes Jardo, fundou com os seus bens o Hospital-Escola com a designação de São Paulo, São Clemente e Santo Eloi. A instituição foi Reformada durante a regência de D. Pedro, na menoridade de Afonso V, ficou sobretudo a designação de Loios.
                                                                                                                                   
                                                                                            

domingo, 29 de junho de 2014

Eléctrico de Sintra

FERNANDO CASTELO











Tive uma máquina no Banzão,

De poucos cavalos mas muita alma,

Com o tempo, baixou-lhe a pressão,

Perdeu a força e ficou mais calma.



Levei-a a Colares num domingo

De calor, o rio cheio de gente,

Depois à sombra dum velho gotingo,

 Procurei sossegar a sua mente.



Arrastou-me, teimosa, às Maçãs,

Deitou faíscas, comeu electrões,

Fundiu o amor com palavras vãs,

Unindo, assim, as nossas paixões.



Nas Azenhas, era bom namorar,

Com a brisa fresca junto à linha,

E quando tínhamos de abalar,

O fluxo estático nos retinha.



Puxava-me bem até à Ribeira,

Depois a subida com motor forte

Até às nuvens, sem grande canseira,

Orgulhosos sempre do nosso porte.



Num dia triste, fomos apanhados,

arrumados, ninguém mais nos olhou.

Vamos ter corações recuperados,

Esperança de novo nos voltou.




                     

terça-feira, 24 de junho de 2014

Em Sintra, de olhos em Salzburgo



 JOÃO CACHADO



Na manhã do passado dia 5 de Junho, durante a apresentação pública do Festival de Sintra 2014, o senhor Presidente da Câmara referiu-se ao Festival de Salzburg para afirmar que, no próximo ano – altura em que vamos comemorar cinquenta edições – Sintra vai ter condições para apresentar uma programação digna da Meca da grande música.
Como já tive oportunidade de esclarecer, no uso de uma hipérbole bem aplicada, o Dr. Basílio Horta apenas pretendeu aproveitar aquela oportunidade de troca de impressões acerca da actual 49ª edição, comprometendo-se, desde já, com o maior empenho pessoal, para a afectação dos recursos indispensáveis, em 2015, à organização de um festival à altura dos seus melhores pergaminhos.
Ao Festival de Salzburg, portanto, se referiu o Presidente. Na realidade, bem pode assim designar-se embora tendo em consideração que, afinal, tão só e especificamente, se alude ao Festival de Verão, certo é que o mais importante, o mais conhecido da cidade dos príncipes arcebispos, mas apenas um dentre mais onze (!!!) que o burgo promove ao longo dos doze meses do ano, cada um dos quais importantíssimo, e também designado como festival de Salzburg…
Confirmando como assim é, durante temporadas sucessivas, a partir de Salzburg, subscrevi artigos para o Jornal de Sintra, três vezes por ano: um, durante a Mozartwoche [Semana Mozart], festival de Inverno, exclusivamente dedicado a Mozart, quase duas semanas entre Janeiro/Fevereiro, coincidindo com o aniversário de Mozart (27 de Janeiro); um outro, o Österfestspiel [Festival da Páscoa] e ainda o Salzburg Festspiel no Verão. E bem posso gabar-me do sucesso dessa escrita porquanto alguns dos meus leitores acabaram mesmo por ir a Salzburg.
A montante de uma fascinante realidade, que nos remete para um quadro deveras propício de cidade dos festivais, em que as belezas naturais e o património edificado desempenham papel crucial, cumpre lembrar que, de há muitas dezenas de anos a esta parte, Salzburg se apetrechou para acolher uma grande concentração de eventos musicais.
Essencialmente, capitalizou o factor da localização geográfica estratégica. Basta ter em consideração que alguns dos meus amigos, vivendo em Milão ou Stutgart fazem a viagem de ida e volta no mesmo dia, para não referir os de Munique, que estão a dois passos. Estranho, estranho é o que comigo acontece que, para lá chegar e regressar a casa, tenho de fazer um total de quase seis mil quilómetros! Como chego a lá ir três vezes por ano…
Números impressionantes
Então, passarei a apresentar os dados estatísticos mais recentes, referentes ao ano de 2013 e, reparem bem, só no que se refere ao Festival de Verão. Estão preparados? Pois bem, durante os 40 dias da iniciativa, dispondo de 14 auditórios, houve 293 espectáculos, dos quais 38 récitas de 6 grandes produções de ópera, 9 de récitas concertantes de ópera, 94 de concertos sinfónicos, coral-sinfónicos e recitais, 60 de récitas de teatro, 37 de espectáculos para crianças, 1 baile, 35 espectáculos especiais, 19 ensaios gerais abertos ao público.
Quanto aos bilhetes, estiveram 256.285 disponíveis (estão mesmo a ler bem, duzentos e cinquenta e seis mil, duzentos e oitenta e cinco ilhetes!), dos quais 73.834 referentes às óperas, 62.719 às peças de teatro, 119.732 aos concertos. Os espetadores provieram de 73 países dos quais 39 eram não europeus. Vendeu-se 93% dos bilhetes disponíveis sendo de E:28.285.082 (vinte e oito milhões, duzentos e oitenta e cinco mil e oitenta e dois Euros) a receita da bilheteira. Estiveram acreditados 653 jornalistas ao serviço dos media de 35 países.
Quanto às receitas, a distribuição é a seguinte: da venda dos bilhetes, 46%, da Associação dos Amigos e patrocinadores do Festival, 4%, Patrocínios e dádivas, 18%, Financiamento Público, 17%, Fundo de Promoção Turística, 4%, Outras Receitas, 11%. O último estudo datado de 2011, elaborado pelo Zentrum für Zukunftsstudien Fachhochschule Salzburg, entre outras conclusões, demonstra que o efeito deste Festival de Verão no domínio das receitas fiscais equivale ao triplo do montante do investimento das entidades públicas. Finalmente, que o impacto geral do Festival no volume de negócios e na produtividade se cifra em cerca de 276 milhões de euros! E, não esqueçam, em apenas 40 dias de Festival.
Valerá a pena, em Sintra, ter estes dados em consideração? E ainda lembrar os casos de outros famosos festivais como Bayreuth, Verona, Luzern que também já me têm ocupado nas páginas deste jornal? Julgo que, salvaguardadas as questões de escala, se se pretende que Sintra volte a ocupar um lugar de referência nacional, permitindo-se lançar algumas pontes além fronteiras, então estas fontes podem ser preciosas. Voltaremos a este assunto.




  Salzburg Festspiel


[João Cachado escreve de acordo com a antiga ortografia]

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Ferreira de Castro evocado por Miguel Real

MIGUEL REAL


FERREIRA DE CASTRO

“A Experiência” – um notável romance

Quarenta anos após a morte do autor, a editora Cavalo de Ferro e o editor Diogo Madre Deus, em colaboração com Ricardo A. Alves, director do Museu Ferreira de Castro, em Sintra, decidiram dar novo alento à obra de Ferreira de Castro publicando de novo a sua obra, há muito desaparecida dos escaparates das livrarias.

Caso o leitor queira revisitar a obra de Ferreira de Castro, pode começar – e começa muito bem – por um dos romances recentemente reeditados, A Experiência, publicado em 1ª edição em 1954. Tal como Os Emigrantes ou A Selva, A Experiência constitui, de facto, uma notável síntese do estilo e da visão do mundo do autor.

Dividido entre duas correntes estéticas complementares, o Naturalismo e o Realismo, ambas datadas da primeira metade do século XX, prolongamento de experiências literárias do fim de século anterior, Ferreira de Castro harmoniza sabiamente estas duas vertentes literárias, conjugando-as, de um modo superior, com os ideais humanistas da igualdade e da justiça sociais do Anarquismo, sua permanente visão política da sociedade e do homem.

Do Naturalismo, Ferreira de Castro recolhe os aspectos patológicos e perversos da sociedade (a prostituição; a miséria social sem redenção; as doenças venéreas; a velhice sem consolo nem remédio; a necessidade do roubo como modo de sobrevivência numa sociedade que é ela toda uma extorsão do trabalho dos pobres e assalariados; os ambientes pútridos das cadeias; os ambientes corruptores da juventude da vida nos asilos de mendicidade…). Do Realismo, recolhe o retrato narrativo da injustiça social, da opressão dos pobres pelos ricos, do fatalismo de uma vida nascida em miséria contra os privilégios dos embalados em berços de ouro e a necessidade de revolta e de luta política contra as instituições repressivas do Estado.

Assim se compõem as vidas de duas crianças aziagas caídas na infância num asilo: Januário, menino que, em adulto, por amor se tornará ladrão e criminoso, e Clarinda, menina desonrada e engravidada pelo filho da Dona Ludovina, dona da casa para onde foi trabalhar como criada após o encerramento do asilo.

Neste, dirigido por legado testamentário por um professor de Filosofia, tentara-se uma “experiência” educativa fundada na liberdade e no senso de justiça das crianças, educando-as segundo os ditames mais nobres da consciência moral. Porém, por contrário aos costumes e aos interesses das famílias poderosas, quer dizer, ricas, que têm no conjunto de crianças órfãs uma reserva de mão-de-obra para o trabalho nas suas casas e quintas, o asilo foi entregue a freiras e posteriormente fechado e restaurado pela Câmara como prisão. Januário, que em pequeno habitara o asilo, habita agora a novel prisão.

O estilo de Ferreira de Castro em A Experiência cruza aqueles dois tempos diferentes, intercalando-os por via da memória das personagens que, partindo de uma situação futura, uma nova e consumada evolução na sua vida, relatam os acontecimentos do passado.

Em A Experiência, existe uma concepção fatalista da História, no sentido de que estruturas sociais injustas criam e reproduzem vidas individuais infelizes, de que não só ninguém está a salvo como, por mais boa vontade que haja ou se tenha, não se consegue fugir. Esta concepção é sobretudo defendida no tribunal pelo advogado Macieira, uma personagem que, convivendo à mesa com os ricos, é, no entanto, envolvido tanto uma piedade cristã quanto por um desejo de igualdade entre todos os cidadãos.

Nasce assim a necessidade de uma revolução social, que “há-de vir um dia em que haverá pão para todos” (última frase do romance).

No último capítulo, o amor sobressai e vence a injustiça social e Clarinda confessa que esperará pela saída da prisão de Januário para recomeçarem a vida.

Romance tecido de miséria, perversão individual, exploração social e económica e profunda opressão sobre quem nasce pobre.



A Experiência,

Cavalo de Ferro, 224 pp. 13,50 euros.