quinta-feira, 27 de novembro de 2014

"Beba à vontade e sem medo"

CARLOS CAMACHO

Propriedade do Ti Zé e da Ti Firmina, o “Café do Zé” foi, durante várias décadas e até 1981, o centro da aldeia de Fontanelas.
As tabernas perderam clientela nova e fresca para o café, mais inovador, com oferta moderna, como bica, bagaço ou brandi. O cheiro a vinho retardado, associado a uma clientela mais rústica e pouco exigente, afastava esta nova vaga de freguesia ávida por bebidas finas, bolos quentes e gelados Olá.
Era no café do Zé lá que miúdos, graúdos, veraneantes e outra gente se encontravam. A esplanada sobranceira à estrada era uma autêntica torre de vigia e não permitia que alguém passasse por Fontanelas sem ser objecto de controlo apertado. Era aí que todos se encontravam e iniciavam a malandragem juvenil, os primeiros copos, os primeiros namoricos, os primeiros cigarros Mata-Ratos.
Autênticos torneios de futebol se deram na esplanada e na rua principal, em frente. Quando vinha a GNR, cuidado. Dava direito a multa de 33 escudos por jogar à bola na via pública. Também a “casa dos bonecos”, como era chamada a sala dos matraquilhos e das máquinas “flipper”, iniciou a miudagem toda na arte de fumar às escondidas, bater caricas para substituir moedas de 10 tostões ou roubar as máquinas electrónicas, quer fosse com um arame de fardo no moedeiro ou com um berbequim manual.
Roubar pastilhas, gelados e bolos da montra também fazia parte das habilidades dos miúdos mais atrevidos. Os pastéis de nata feitos pela Ti Firmina davam um “bigode” a qualquer “Pastel de Belém” mais afamado, sem direito a tornas. O Ti Zé era polivalente e palmilhava quilómetros a arrastar os pés, ininterruptamente, acudindo às mesas ou ao balcão. Quando o Suca pediu se podia mudar para o segundo canal o Ti Zé perguntou, pondo a mão atrás da orelha: “Fresca ou Natural?”.
O “Menino”, carinhosa alcunha do Alberto e único filho do casal, também lá trabalhava afincadamente, embora muitas vezes ausente por “má disposição”, alegava a Ti Firmina.
O café do Zé era, para além de “café”, um conhecido e afamado restaurante, onde o Cozido à Portuguesa era rei, sem menosprezar o Cabrito ou o Bacalhau. Longas filas anteviam uma generosa refeição em qualquer Domingo solarengo de Janeiro a Dezembro.
O Staff era numeroso e familiar. Uma grande parte da juventude de Fontanelas e Gouveia, masculina e feminino, passou por lá a trabalhar aos fins-de-semana ou no Verão. Aqui se fizeram bons profissionais que seguiram o seu caminho na restauração ou noutra qualquer área profissional, sempre com a bênção do Ti Zé e da Ti Firmina, autênticos patriarcas do bom acolhimento e da boa-vontade com os clientes e com os empregados.
Das oito à meia-noite, sete dias por semana, quatro semanas por mês, doze meses por ano.
Muito deram o Ti Zé a Ti Firmina ao lazer de milhares de pessoas de sucessivas gerações que passaram pelo Café do Zé e dele disfrutaram. Tanta dedicação só podia gerar no sucesso que gerou enquanto restaurante, até e após encerrar como café em 81.
Tive o previlégio de trabalhar com o Ti Zé no Café Coreto ao longo de centenas ou milhares de duras horas de trabalho, sem que lhe possa apontar o que quer que seja.  
Provavelmente só quem tiver mais de 50 anos se lembrará de uma quadra escrita nuns velhos azulejos rachados, mantidos unidos por uma moldura de sólida madeira escura. Transmitia confiança ao freguês mais medroso, dissipando receios de uma possível “cadela” causada pela abusiva ingestão de bebidas alcoólicas. Engalanava a parede junto à televisão, mesmo por cima da mesa de tampo metálico onde, habitualmente, o Dr. Tavares passava longas tardes a ler calhamaços técnicos, a fumar “I Life” e a bebericar cálices de brandy “Mosca”.
Contudo, a quadra não era totalmente verdadeira, ou por outra, reflectia precisamente o inverso da prática vigente, ou seja:
Beba à vontade e sem medo - Ninguém podia beber à vontade e sem medo, cuidado porque a bebedeira era certa.
Se ficar de grão na asa - Era uma certeza ficar de grão na asa e não “se”.
A gente guarda segredo - No dia seguinte já todos saberiam, qual segredo, qual carapuça... .
E vamos levá-lo a casa  - Levá-lo a casa, népia. Curtia a bebedeira no local ou ia pelo próprio pé. Havia ainda a hipótese de uma alma caridosa pegar no carrinho do gás e carregar até casa o necessitado.
Beba à vontade e sem medo!!!
O que será feito desta histórica moldura com os azulejos rachados?
Ainda sinto o cheiro da “casa dos bonecos”. Um misto de óleo dos matraquilhos, fumo de tabaco e barris de vinho.
As coisas que me vêm à cabeça....

terça-feira, 25 de novembro de 2014

O soalho com cinzas dos pés

BÁRBARA RODHNER










O soalho com cinzas dos pés .

O alguidar que espanca o seu cabelo no chão ; esfrega.

Lava...

Larga!

Os miúdos pela mão vão-se para a cama-feita pelo pequeno-almoço de almofadas de algodão.

Eu?

Eu sou caixão ....
Coma profundo ao lado do meu próprio seio.

Dá-me Asas/ dá-me espaço.
Dá-me a tua mão...

O meio-do-meio é o meio que foi meu/teu.

 Foste/eras.?

Da-me colo; sou órfão...
pura .

Dá-me a mão ... A tua.
Dá-me o qu'é meu/teu .

(Para Alagamares; minha floresta sem FIM)

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

A "praça" de Sintra

CARLOS CAMACHO

Desde miúdo que comecei a ir para a Praça de Sintra com o meu pai.
Nas madrugadas de Verão de 1978 saíamos às 3 da manhã com a Ford Transit “café-com-leite” novinha em folha, DV-29-21, completamente carregada. Encostávamos com a venda junto ao portão do número 13 da rua Ulisses Alves, em frente à vivenda “O Meu Cantinho”, paredes meias com a Praça de Sintra.

Cenoura e Feijão-Verde eram a principal seara cá da casa. Produzíamos mensalmente nos meses de Verão várias toneladas que, invariavelmente, me passavam pelo lombo, saco a saco, madrugada após madrugada até retornar às aulas no início de Outubro.

Segundas e Quintas eram dias de colheita. O pessoal cá da casa e vizinhas contratadas apanhavam, um a um, o feijão-verde no meio da densa e verdejante folhagem. As cenouras colhiam-se com o “engaço” do Zé Bacalhau. Após separadas da rama eram lavadas, ensacadas e pesadas. Cada saca era pegada mais de dez vezes até estar, finalmente, entregue no carro ao cliente.

Merceeiros madrugadores das redondezas que se iam abastecer ao mercado grossista eram a nossa freguesia. O Ti Zé Galego, minhoto de Melgaço e fumador inveterado de Português suave sem filtro; O Lopes de Rio de Mouro; as Primas das Lameiras e um sem número de fregueses compunham a freguesia habitual. Conhecia-lhes os carros todos e melhor os porta-bagagens, onde aterravam as sacas de cenoura e feijão-verde.

Nos meus 14 anos era uma verdadeira esponja a absorver tudo o que me rodeava.

O cheiro de uma praça de legumes é único, fresco, limpo, transparente, alegre. A minha memória olfactiva inebriou-se recentemente na zona dos legumes do Mercado Abastecedor Região de Lisboa. Lá estava ele, o cheiro. O cheiro intenso do alho francês misturado com o adocicado odor dos coentros, cenoura e hortelã. Vida!

Na Praça de Sintra as pessoas eram genuínas, transparentes e sinceras. A oferta e procura eram diárias e permanentes, naturais e desinteressadas, abundantes e presentes. A conversa era sobre tudo e mais alguma coisa, directa e objectiva. Cada um sabia quem era e quem tinha à sua frente. Não havia máscaras sociais.

A Praça de Sintra era um autêntico “microclima” humano. Ali se cruzavam todos os tipos de pessoas originárias dos mais diversos pontos. Agricultores da zona saloia, merceeiros das redondezas, revendedores da zona Oeste e os “habitués”, pessoas que só lá iam de madrugada pelo gosto de viver o bulício da Praça. Também outros começavam as “hostilidades matinais” na Tasca da Teresa com os bagaços, abafadinhos e brancos traçados, engarrafados vezes sem conta nas usadas garrafas perfiladas na prateleira de madeira escura de tanto baptismo.

Às seis da manhã abria o edifício da Praça. A pé desde as 3 e quase com meio-dia de trabalho, estava na hora de repor as energias com uma sandes de queijo da ilha e um fumegante café-de-saco servido num pesado e riscado copo de vidro, típico recipiente adoptado pela Teresa  da Tasca. Delicioso. Nunca mais consegui o mesmo paladar em lado nenhum.

Naqueles dez minutos de merecido descanso entravam e saíam, como que cumprindo um ritual definido, clientes à vez repondo o combustível necessário para, nas noites mais frescas, acalorar os corpos curvados da idade. Cúmplices trocas de olhar bastava para que as bebidas surgissem como que por magia no poroso balcão de mármore gasto pelos anos de sucessivas madrugadas cumpridas.

Nesse cortejo matinal, destacava-se um casal na casa dos 60. O Sequeira e a sua esposa, donos de uma pacata mercearia de Sintra. O Sequeira, de estatura mediana e altivez constante, contrastava com a sua baixa e engelhada esposa. Cumpriam religiosamente a rotina matinal. Tasca da Teresa, voltinha à Praça. Tasca da Teresa, voltinha à Praça ... .

Ele conversador, jovial e presente. Resistente da moda do bigode à “Clark Gable”, espalhava boa disposição na madrugada ensonada. Ela calada e azeda. Ele de mãos nos bolsos das calças de sarja coçada, boné aos quadrados, casaco de fazenda cinzento e bota de cabedal. Ela de Xaile da cabeça aos pés. Só se viam os olhitos, o nariz e um ralo bigodito. Ele queria comprar Feijão-verde, Cenouras, Pepino, Alho-Francês e Couve-Flor. Ela não.

Na negociata dos legumes falava o Sequeira e sempre com autoridade:

Ó Camacho, a como é que está hoje o feijão-verde?” Indagava dirigindo-se ao meu pai.

O sotaque beirão adquiria especial ênfase na voltinha da Tasca:

Ó Teresa. Bota aí um copito para mim e meio para a minha senhora.” Dizia o Sequeira olhando de soslaio para a sua mulher inchando a peitaça. De imediato era fuzilado com os olhos, adivinhando uma ameaça velada. Emendava num ápice: “Enche os dois, enche os dois...”.

E a Teresa enchia...

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Na Rua do Medo

ANTÓNIO LUÍS LOPES












na rua do medo, ninguém se revolta,
vive-se em segredo
com o medo em volta,
vive-se morrendo em cada dia um pouco,
na rua do medo
quem não teme é louco

na rua do medo o amanhã assusta,
o sol põe-se cedo
e nasce sempre à justa,
canta-se em silêncio embalando a noite,
na rua do medo
não há quem se afoite

nessa rua os homens vivem resignados
ao medo profundo
que os traz calados,
só os velhos falam de um tempo diferente
onde o medo não
metia medo à gente

na rua do medo há quem imagine
o dia em que um dia
o medo termine,
porque o medo assusta, isso é bem verdade,
mas a luta justa
no coração arde...

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Joseph- Partes I e II

MIGUEL BARRILARO RUAS 

I- A árvore
“ Venham as desilusões, e façam-me sentir vivo; venham as tristezas, as lágrimas, e façam-me sentir humano. Já outra coisa, a apatia, um vazio e uma indiferença que não despertam qualquer tipo de sentimento ou reacção [rabiscos) … é quase como se não existíssemos.”

Eram estas as palavras que Joseph escrevia, encostado ao tronco de uma velha figueira solitária, na ânsia de aliviar a torpeza em que caíra a sua alma.

Depois de duas horas ali sentado, Joseph decide finalmente levantar-se, abandonando a sua mais íntima e fiel companheira de introspeções e devaneios (não ouvia, não falava nem se movia; continha antes uma quietude tranquila, simples e quase divina, que inspirava todos os que por lá passavam).

Seguiu então para sua casa. Quando chegou às primeiras habitações da aldeia, cumprimentou os escassos transeuntes que simplesmente descansavam ou liam nos alpendres. Lá ia subindo, calmamente, a rua íngreme, quando ouviu um emaranhado de vozes agitadas vindas do bar. Pareceram a Joseph vozes animadas. Não resistiu a dar uma espreitadela.

Ao entrar, reparou que estava tudo muito mais animado e bebido do que de costume para um dia da semana; mas, como era teimosamente costume em Joseph nos últimos tempos, pouco se deixou impressionar.

Para contrariar essa sua paralisia, decidiu pedir uma bebida forte, que o desentorpecesse de um trago. E assim o fez: sentou-se o mais comodamente que pôde e pediu, quase ofegante, com a voz trémula, um whisky duplo sem gelo. Deu um gole valente e puxou de um leuca cigarro

O café possuía todo um ambiente que o distinguia dos demais: era impressionantemente amplo, com um pé direito de cerca de quatro metros de altura, sustentado por enormes vigas de madeira, compostas perpendicularmente, e por robustas colunas cravadas vigorosamente no chão. Tinha cerca de nove mesas, também elas de madeira, quase distribuídas ao acaso, que pareciam ter brotado naturalmente do solo a partir de sólidas raízes de árvore.

A iluminação era bastante difusa, opaca, dando ao café um certo ar sombrio, que convidava a diálogos sérios e a reflexões misteriosas. Mas o que seria totalmente impossível de não reparar, até mesmo ao rei dos sóbrios, era no maravilhoso balcão de mármore, liso como são as novas capas dos livros, mas cheio de salpicos brancos que faziam recordar constelações. Muitos naquela aldeia sentiam-se misteriosamente atraídos por aquele balcão, e era costume contar-se que houvera quem estivesse prestes a transformar-se em um.

Mas o mais digno de ser referido, e que naturalmente provocará a admiração do nosso leitor, é o facto de todos os inúmeros frequentadores do bar, e, aliás, da esmagadora maioria dos habitantes daquela aldeia, se ocuparem da profissão da escrita. Todos eram escritores! É a verdade. De vários estilos literários distintos, claro está, mas todos escreviam livros. E era dessa forma que ganhavam a vida.

Joseph reparou que os autores, nesse dia, não obedeciam à tendência natural de se ordenarem nas mesas de acordo com o estilo literário a que pertenciam: os filósofos e ensaístas, normalmente dispostos no canto mais escuro e recôndito do café, estavam dispersos por todo o espaço e em incomum alvoroço; os poetas, conhecidos pela vida boémia e pela irreverência com que enfrentavam as bebidas alcoólicas, encontravam-se mais sóbrios do que o natural, mas mais despertos e vivaços do que nunca, esgueirando-se a monte sobre uma única mesa. Os escritores de policiais, por norma um pouco solitários e introvertidos, falavam alegremente entre os seus companheiros de letras… Todos se encontravam mais animados que o habitual, inclusive os romancistas, cronistas e talentosos escritores de ficção científica; pairava naquele lugar um frenesim invulgar.

O alvo de tanta curiosidade, percebeu Joseph, ainda antes de ter acabado de virar o whisky, era o velho gorducho Norbert, que acabara de escrever aquele que dizia ser o seu último livro. Norbert era um escritor que já contava com mais de trinta livros no seu currículo – a maioria dedicados a questões controversas de psicologia familiar.

Todos tentavam ver o título do livro de Norbert, que fazia teimosamente questão de guardar segredo. Já não o viam fora de casa fazia um ano e meio, tamanha deveria ser a sua dedicação ao dito cujo.

Mas eis que, com enorme espanto para todos, viram o autor levantar-se e anunciar que, antes de apresentar ao público a sua obra, iria realizar uma grande cerimónia, em honra ao fim da sua extensa obra literária; enfadonha, é certo, mas laborada com enorme paixão. Iria ser certamente um festim memorável.

- Faço questão que todos compareçam –, afirmou Norbert em êxtase – Incluindo tu Joseph! Pode ser que este meu livro seja um bom antídoto para essa tua depressão!


II-O cemitério e as escadas

As horas iam passando e Joseph perdeu a conta aos whiskys que já tinha bebido. Apesar de sozinho no balcão, parecia-lhe que todos seguiam o compasso da sua embriaguez. Afinal, era dia de festa; Norbert merecia, pela última obra que acabara de escrever, que fosse uma noite memorável; era assim que todos deviam pensar.

E eis que, ao tocar o sino da igreja, anunciando as onze horas da noite, Norbert se levanta bruscamente da mesa, de tal modo que metade do seu canecão de cerveja é derramado no chão. O café fica repentinamente em silêncio, para escutar o que tinha a dizer:
–“Mui estimados companheiros de letras… como já todos devem saber, hoje festejo o fim da minha obra literária. O meu alfabeto chega ao fim. Ficou assim decidido. Tenho já tudo organizado em minha casa para que nesta precisa noite se dê uma tertúlia inesquecível. Sigam-me então, por favor, com a consciência de que hoje ninguém entrará em minha casa sóbrio, lá permanecerá sem estar bêbedo e sairá menos sábio: apenas e só mais confuso! Vamos ao que interessa!
Com Norbert a comandar as hostes, deu-se imediatamente início a uma frenética procissão até à sua casa.
O bar tinha sido completamente despojado de todas as bebidas. O dono, Richard, fiel seguidor das tradições da terra, facilmente consentiu em tal empreendimento, tendo-se ele mesmo juntado à causa de escritores.
Joseph foi o último a sair do café. Não lhe apetecia tomar parte dos acesos diálogos que iam animando os seus colegas de profissão. Não deixou por isso de ir escutando o que diziam, à medida que os acompanhava, um pouco mais atrás.
O filósofo conde Péricles (como o próprio se intitulava) criticava o novato romancista Viriato pela excessiva importância que dava nos livros à descrição fisionómica das personagens. No entender de Péricles, tal não permitia ao leitor formular uma ideia própria dos sujeitos imaginários, induzindo-o a concebê-los nos termos determinados pelo autor. Dizia que nunca precisava de fazer qualquer menção aos traços físicos das personagens, pois que eram das suas ideias e ações que o leitor construía criativamente a sua aparência física. E era aí que residia, em parte, o encanto dos textos com maior expressão narrativa que escrevera.
Viriato limitou-se a argumentar respeitosamente que nem todos os leitores são iguais, e que há uns mais sensíveis aos detalhes, não só das personagens, mas também dos ambientes e dos objetos. O filósofo não respondeu, não se chegando portanto a qualquer conclusão, como é tão natural entre os homens, e uma espécie de regra entre os escritores, ainda para mais bêbedos.
Os convidados de Norbert teriam que percorrer cerca de 15 minutos a pé, praticamente sempre a subir, até à casa apalaçada.
A um pouco menos de metade do caminho, os autores passaram junto ao cemitério das personagens, o local mais plano daquele percurso. Ali não moravam protagonistas, pois apenas as personagens perdidas pelo caminho tinham o direito de ali permanecer.
Se não fosse o conde Péricles a chamar a atenção dos companheiros, todos, com a exceção de Joseph, ter-se-iam esquecido de ficar em silêncio, como ditava o hábito já ancestral, quando por ali se passava.
A Joseph causava um profundo desgosto estar perto daquele local. E tinha razões para isso: As suas personagens falhadas compunham já cerca de um terço das sepulturas do cemitério. Não tinham passado da condição de rabiscos. Rabiscos que, quem tivera a oportunidade de ler, considerava assaz geniais, mas que, não chegando a compor-se a sua comunhão com um mundo, com o mundo, permaneciam sepultadas na escuridão. Com quarenta anos de idade, numa aldeia onde se vivia da escrita, Joseph ainda não tinha ainda escrito um livro. Nem ele percebia como os outros ainda acalentavam tamanha esperança em relação à sua primeira obra, cuja publicação acreditavam estar sempre…para breve. Joseph sabia que não ter publicado ainda nada numa aldeia de escritores era um escândalo.
Joseph sentia talvez que não estava no sítio certo para escrevê-lo... 
Pensava nisto e em soluções de inspiração, praticamente esgotadas, quando o poeta Verniz Nunes, sempre atento aos sintomas da introspeção alheios, lhe oferece uma palmada nas costas e uma tampinha de absinto a transbordar. Joseph apercebe-se do frio que faz. Acena agradecidamente a Nunes e bebe com prazer. Tinha-se quase esquecido de que se ia festejar um grande acontecimento.
 -“Vá…hoje não é dia para pensamentos sombrios, Joseph. Vamos comer e beber em honra a deus Baco e, talvez depois de amanhã, poderás retomar livremente os teus raciocínios”, encorajou com boa disposição Nunes.
Iam subindo agora, e já bastante tontos, as monumentais escadas das citações, onde em cada degrau estava inscrita uma pequena frase da autoria dos ilustres habitantes. Aqui, Joseph também tinha gravado um pensamento:
Vale mais partilhar o engano do que conservá-lo na escuridão. Sozinhos não podemos suportar o mistério da existência”.

CONTINUA

domingo, 9 de novembro de 2014

De Belas a Mafra, evitando … “rodeios grandes”.

RUI OLIVEIRA

                        

É inegável que a construção do Convento, Basílica e Paço de Mafra foi um esforço titânico, tanto do ponto de vista económico, como, do ponto de vista dos recursos humanos. Estimulou e aumentou a mobilidade de bens, materiais e de pessoas na região do Termo da Lisboa setecentista e, naturalmente, dos concelhos limítrofes em que Sintra teve um papel importante, nomeadamente, com o fornecimento de materiais pétreos ornamentais.
  O documento, escrito, que aqui trazemos hoje é ilustrativo dessa forçosa mobilidade que o Monumento de Mafra impôs. Sua Majestade, D. João V, manda que se dê início a reparações e construção de novas vias com destino a Mafra. Desses tempos e das décadas seguintes, que levou a construir a via Belas-Mafra, ficou-nos o itinerário atual, a ordem escrita para a sua construção e, derrubados ou perdidos nas suas bermas, alguns marcos de estrada altivos de bom talhe e acabamento.   

Leitura do documento:

S. [Sua] Mag. de [Magestade] hé servido |1 que  Sn. [senado (?)] mande logo acabar a es |2 trada que vay desta Cid.e [cidade] para |3 Bellas e também passará a mandar |4 fazer a calçada q [ue] vay da d.ª [desta] villa |5 para Mafra; examinado por |6 onde se poderá fazer com mais co |7 modo evitando rodeios [isto é curvas desnecessárias] grandes q [ue]|8 tendo S. [Sua] M. [Magestade] entendido que a es |9 trada hade ser capaz de rodar |10 por ella coches. De(……(?)) |11  Belem Paço a 5 de Setr.º [Setembro] de 1730 ||12

                                                               D.º [Diogo] de Men.ça [Mendonça] Corte Real | 11



Caetano de Brito de Figueiredo||12

        Norma aplicada nesta transcrição documental: Mantivemos o texto na sua máxima pureza, tanto na grafia como na fonética e discursiva. Desdobramos as abreviaturas em parêntesis retos “[]”, bem os nossos comentários ao texto. A mudança de linha no texto foi assinalada por barra vertical “|” com numeração respetiva, sendo que o sinal de parágrafo é assinalado com barra dupla “||”. As palavras que não conseguimos interpretar são assinaladas com reticências entre parêntesis curvos (…) assinalados com ponto de interrogação “?”. Leitura da responsabilidade de Rui Oliveira.