sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Sintra e a defesa costeira da cidade de Lisboa ao tempo dos muçulmanos


JORGE LEÃO

 
AS ATALAIAS E A COMUNICAÇÃO À DISTÂNCIA
A necessidade de comunicação à distância deve ser inerente à existência de grupos humanos e é, por isso, muito remota a história dos procedimentos de envio de sinais à distância, que se empregaram em diferentes sociedades humanas, em diferentes épocas e em diferentes espaços geográficos.
Ao que parece, analisada a forma como os antigos utilizaram os métodos de envio de sinais à distância, estes podem-se dividir em dois grupos: acústicos (tambores, cornetas, sinos, etc.) e visuais (fogueiras, fumadas, bandeiras, espelhos, etc.). Consoante os condicionamentos geográficos ambientais (planícies, montanhas, bosques, etc.), um dos procedimentos vencia melhor a distância e se tornava mais eficaz. Também foram utilizados os dois em simultâneo: os soldados romanos usavam os seus escudos bem polidos para enviarem sinais reflectindo a luz do sol. Também usavam fogos e, na coluna de Trajano, podem-se ver esculpidas torres com tochas que seriam o modelo que se usaria na altura.
Aqui, no ocidente da Europa, hoje Espanha e Portugal, na idade média, foram utilizados sobretudo fogos e fumos. As fumadas, ahumadas em castelhano, seriam fogueiras feitas especialmente para produzir grande quantidade de fumo, mais visível durante o dia, consumindo principalmente palha da região. À noite, usando madeira e produzindo fogo, visível na escuridão.
Emitidos de atalaias ou torres de vigia, ribats, castelos, etc., estes sinais foram o sistema de mensagens mais incrementado no período islâmico e baseava-se no contacto visual entre diferentes pontos, no sentido de fazer chegar o mais rapidamente possível ao próximo castelo e ao conjunto do território, a informação importante sobre a presença e o comportamento do inimigo.
Escreve assim Aly Mazahéri: «Entre as cidades costeiras, escalonavam-se ribats, cuja guarda velava dia e noite, e acendia fogos, logo que via aproximarem-se navios normandos, a fim de prevenir a cidade mais próxima; esta enviava imediatamente reforços e barcos de guerra.
Todas as costas do Egipto, da África e da Andaluzia Setentrional estavam defendidas segundo este sistema»(1).
A toponímia revela-nos essa função exercida no passado em vários pontos do nosso território, sendo o mais comum o topónimo Atalaia.
 
O CASTELO DOS MOUROS
O Castelo dos Mouros, do período muçulmano, serviu para abrigar a população local protegendo pessoas, bens e animais, de ataques inimigos. E serviu também como elemento dessa linha defensiva que, comunicando com outros pontos, também estrategicamente colocados, ajudava a defender o conjunto do território e, especificamente, Lisboa, a cidade mais importante.
A essa tarefa defensiva, deram os muçulmanos especial importância após o ataque de uma frota de navios Vikings que, em 844, investiu sobre o Garb Al-Andaluz, atacando Lisboa e vários pontos da costa, até Sevilha. Naturalmente perplexo, o poder militar muçulmano intensificou então a vigilância da costa marítima, especialmente para Norte, tendo sido edificadas ou reedificadas várias estruturas vocacionadas para essa função. Foram, como já se referiu, de vários tipos: castelos, ribats, morábitos, atalaias ou simples torres de vigia, etc.
Na prática, no caso da defesa costeira da cidade de Lisboa, e para o caso que nos interessa estudar, vindo o inimigo do Norte, além de proteger a população local e preparar eventual combate, deveria o Castelo dos Mouros, como qualquer outra atalaia, avisar Lisboa e o resto do território, o mais rapidamente possível, da vinda de uma frota inimiga.
Usando o sistema de mensagens à distância, utilizando o fumo durante o dia e o fogo durante a noite, estas chegariam primeiro ao castelo de Lisboa que os emissários que, a cavalo, também poderiam ser enviados.
Entretanto, já foi observado que o Castelo dos Mouros não tem contacto visual com o castelo de Lisboa e que só por um sistema de triangulação de mensagens a informação chegaria a Lisboa (2). O Castelo dos Mouros também não tem a possibilidade de avistar o Sul nem parte do Sudeste. Não avista parte essencial do tejo, a sua foz. Tem exactamente a Sul o monte da Pena e um pouco mais para Sudeste o monte de Santa Eufémia, que o impedem de controlar a barra do Tejo.
Porém, sabemos que a Serra de Sintra tem, na mesma freguesia de São Pedro de Penaferrim, pontos com excelente visibilidade para Sul e Sudeste, em que se avista o território desde o cabo Espichel até Almada, controlando excelentemente a barra do Tejo. E isso era muito útil para observar o comportamento do inimigo.
Por outro lado, mesmo que do Castelo dos Mouros se aviste Almada, o que acontece por já não se ter os montes atrás referidos (Pena e Santa Eufémia) a impedir a visualização, esta é ténue. É distante. Distante demais para ser eficaz o sistema de comunicação à distância que, como vimos, se utilizava na época. Seriam necessários pontos intermédios, onde a percepção dos sinais fosse rápida, e eficaz a sua retransmissão.
Por isso, observando a toponímia e as características geográficas, pensamos ser necessário acrescentar às localidades já apontadas (3) como vocacionadas ou utilizadas para esta função, outras duas: o Covelo, em São Pedro de Penaferrim, ainda não analisada, e Talaíde, de que já se tinha uma noção, porém não suficientemente enquadrada.
 
O COVELO
Em São Pedro de Penaferrim, na vertente Sudeste da serra, na direcção que parece ser a melhor para o fim que se pretendia, temos alertado para a existência passada de um pequeno povoado, hoje já desabitado e em ruínas, que se chama Covelo. Este povoado é conhecido desde os primórdios da nacionalidade e em 1312 ainda é designado como Alcubela, o que deixa perceber a sua existência já durante o período de domínio muçulmano desta região.
Alcobela, segundo quem entende, vem do termo Alcoba, que em árabe quer dizer “a cúpula” ou “o morábito”(4). Alcobela seria provavelmente a pequena cúpula, ou seja, pequena edificação, eventualmente de carácter religioso, com dignidade para se distinguir com uma cúpula e com eventuais funções de vigilância. Sabe-se que foi muito comum na sociedade muçulmana medieval, a utilização de espaços estrategicamente colocados, com a dúplice funcionalidade de espaços religiosos e de atalaia, como os ribats.
Em Murfacém, na freguesia da Trafaria, concelho de Almada, ainda se pode ver uma destas estruturas, acompanhada por outros vestígios de permanência muçulmana. No ponto mais elevado da zona, com vasto controlodo território para Sul (Cabo Espichel) e para Norte (Tejo e serra de Sintra), o morábito de Murfacém, terá sido uma construção de arquitectura religiosa com nítida função de vigilância.
O caso de Sintra parece ser simétrico a este. Assim como Almada tinha Murfacém, utilizando um morábito, para vigiar uma vasta dimensão de território, também Sintra parece ter tido algo similar, sendo o eixo dessa “simetria axial”, o rio Tejo. Nos dois casos parece ter havido e com razão, com objectiva utilidade, um ponto que, sendo de carácter religioso, era também uma atalaia. E um ponto de comunicação intermédia com contacto visual mais próximo e mais eficaz, entre os principais pontos, os castelos.
O Covelo e Murfacém têm contacto visual entre si. Em ambos se avista o Cabo Espichel. Em ambos se pode controlar a barra do Tejo. Murfacém controla melhor o Sul e a barra do Tejo, por estar mais próximo. O Covelo controla melhor a vasta charneca a Sudeste de Sintra, controla a barra do Tejo, e recebe informação directamente do Castelo dos Mouros sobre a costa atlântica do Norte.
No caso de Almada temos lá o morabito. No caso de Sintra temos a toponímia (Alcobela)a propor-nos que haveria ali um morábito, no sítio certo...(5)
 
O morábito de Murfacém, freguesia da Trafaria,
concelho de Almada.
 
 
TALAÍDE
Seria possível enviar sinais do Covelo para Murfacém? sim, já vimos ser possível por haver contacto visual. Mas, mesmo assim, são 19 quilómetros em linha recta. Põe-se, parecida, a mesma questão da distância que já referimos. Para qualquer sinal que se emitisse, seria necessária bastante atenção do outro lado para que essa informação não passasse muito tempo despercebida. E não se devia descurar isso, para que Lisboa e toda a região se preparasse, com a maior antecedência possível, para um ataque, eventualmente para um cerco ou para a defesa contra uma tentativa de saque (6).
 O Covelo e Murfacém estavam em pontos realmente estratégicos e viam-se entre si mas a distância entre eles já torna falível a rapidez na percepção de mensagens. Havia ainda a necessidade de, pelo menos, um ponto de retransmissão de mensagens, preferivelmente a meia distância, que servisse para isso mesmo, para retransmitir mensagens e torná-las, pelo fumo ou pelo fogo, obrigatoriamente notadas e interligadas.
Havia que procurar para Sudeste da serra, nessa charneca que começa no seu sopé e vai direito a Paço de Arcos e a Oeiras, algum lugar em que se pudesse acreditar poder ter sido ali sítio de óptima visualização e retransmissão de mensagens. Outra atalaia.
Chega-se assim à existência de um topónimo de origem árabe num povoado que satisfaz em pleno o que se esperava para o efeito: Talaíde.
Talaíde é um topónimoque vem de talaia, de origem árabe, que é o mesmo que atalaia (ex: Penalva do Castelo, Feira, Senhora da Talaia em documentos antigos). O sufixo “ide” vem do grego e pode significar semelhança ou equivalência nas suas características ou funções. Talaíde seria então um lugar semelhante ou com equivalentes funções de uma atalaia?
O local, é uma das elevações que existe nessa zona e é a que está mais para Sudoeste, tendo por isso, com 175 metros de altitude, uma vista privilegiada desde Almada até à Serra de Sintra, ou seja, para o Covelo, para a barra do Tejo e para a outra banda.
 
O núcleo central do Taguspark, no Alto dos Cabeços, em Talaíde, concelho de Oeiras.
Provavelmente baseada no topónimo, uma atalaia projectada pela arquitectura
contemporânea.
 
Quando, do Covelo ou de outro ponto da parte Sudeste de São Pedro de Penaferrim, se olha para a charneca, Talaíde está à frente.
O povoado, no sopé do monte, já é conhecido em 1253.
No alto, foi construído há poucos anos o Taguspark, parque de ciência e tecnologia. A “arquitectura”, podia não suspeitar desta parte da triangulação de sinais, nos tempos islâmicos. Mas provavelmente suspeitava, pela origem do topónimo e pela paisagem, da sua função de atalaia. A torre do núcleo central, belo exemplo de arquitectura contemporânea, lá tem um mirante virado para Sudeste, para Murfacém, para Almada e para o Tejo.
Além de outros pontos com igual função que podem ainda ser desconhecidos, Talaíde receberia as mensagens do Covelo para as retransmitir a Murfacém, do outro lado do Tejo para, por aí, chegarem a Lisboa? é o que nos parece, compreendendo os usos do tempo e a toponímia existente.
 
Pontos do sistema de triangulação de sinais entre Sintra e Lisboa. Mapa extraído do Google Earth.
 



  1. – “A vida quotidiana dos muçulmanos na Idade Média”, Aly Mazahéri.
  2. – “Fortificações de iniciativa omíada no Gharb al-Andalus nos séculos IX e X”, Fernando Branco Correia.
  3. – A obra referida na nota anterior refere estas, sendo que algumas, perante a falta de intervenção arqueológica, devem ser consideradas como propostas para investigação futura: castelo de Alcobaça, castelo de Alfeizerão, castelo de Óbidos, castelo da Atouguia da Baleia, Lourinhã, Torres Vedras, Alto da Vigia (Praia das Maçãs), Castelo dos Mouros, Murfacém, Alcolena (Restelo), castelo de Almada e Almaraz.
  4. –Morábito: «eremita», «sufi» - membro da Cavalaria Espiritual islâmica que vigiava e defendia as fronteiras; eremitério onde o sufi está sepultado; cp. Cuba. Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa – Adalberto Alves.
  5. – O Covelo tem hoje um acesso difícil, como difícil é a percepção deste assunto no local, invadido de eucaliptos. Muito próximo do local, pode ter o leitor uma percepção do que dizemos e contemplar confortavelmente a foz do Tejo e a paisagem que relatámos. Procure a Rua Dr. Leão de Oliveira. No seu termo encontra-se a Fonte do Forno, num dos extremos do povoado de São Pedro de Penaferrim.
       Sobre a pertinência da escolha do local (vista ampla para Sul, abundância de água, terra arável, acesso fácil), ver artigo do autor destas linhas no Jornal de Sintra de 10 de Fevereiro de 2017. Sobre a história do povoado ver de 26 de Fevereiro de 2016.
  6. – Mais tarde, já durante a vigência do Reino de Portugal, a vigilância pelas atalaias continuou a ser exercida. Os atalaeiros que adormecessem no seu posto ou que de outra forma descurassem o seu serviço, eram considerados traidores e severamente punidos, pois disso dependia a vida de muitas pessoas.
     
     
     
    Artigo publicado no Jornal de Sintra de 26 de Outubro de 2018