Do alto da Vigia, um olhar jovem sobre os sonhos, misturados com a realidade da vida
Vejo-a da janela mais alta, do castelo do seu marido,
condenado à morte, a espreitar como soubesse que me encontro dissolvido na
chuva que cai, atrás da acácia centenária e enterrado na lama que alimenta
aquelas silvas que ao pular o gradeamento me rasgaram a pele, mas ela… ela
rasgou-me o coração, quando naquele anoitecer sereno, no baile de gala, me olhou,
e aí, sem lógica, sem preliminares, sem racionalidade e explicações, tudo mudou.
Carolina Martins de Albuquerque, dama de alta sociedade,
herdeira dum grande espólio monetário, acima de tudo educacional, casara com
Francisco da Silva Mendes, sujeito pouco bem-parecido, e que tinha o que
queria devido ao dinheiro, como o tinha ninguém sabe, apenas sei que era como
um vagabundo que vestia um fato castanho caqui, e punha um chapéu de coco, um
homem sem modos, que apenas possuía uma pérola como Carolina por ter conseguido
iludir os pais dela ao casarem-se. O símbolo daquele casamento era para todos um
ponto de interrogação, assim como quem era este Francisco, de baixa estrutura,
aparentemente débil.
Ela sorria sempre que me via, um sorriso escondido, mas que
por entre uns longos cabelos castanhos cor de mel parecia uma brisa
primaveril vinda dum jardim repleto de margaridas…
Num pôr do sol e numa praia tão escondida que ainda não sei
bem onde fica, estive com ela, e ao mesmo tempo que as ondas esculpiam as firmes
escarpas com delicadeza e perfeição, eu esculpia com as minhas firmes mãos a
sua redonda face, um rosado tom na sua pele, um brilho nos olhos verde-esmeralda,
como que se pingos de água cristalina caíssem daquelas duas jóias, e o mais
importante de tudo, esculpia-lhe uma sede pela minha quente paixão, por aquele
amor proibido e eloquente, um amor secreto pelo qual me tornei viciado. Naquele
momento, tudo foi perfeito, o tempo parou, as andorinhas do mar ficaram imóveis,
assim como o ribombar das ondas e os moinhos de areia. Carolina deitada sobre o
meu colo e eu sentado… tudo isto preso num quadro de aguarelas.
Foi uma verdadeira história de amor, até que, como tal, teve um
final trágico.
Eu atrás da acácia centenária não observo minha musa! -Ai
Carolina o quanto sente o meu corpo e alma o teu ser divino! Eu debaixo desta
tempestade, imagino vê-la na janela mais alta do castelo do seu marido condenado à morte… condenado por toda a gente que o despreza, e por ter morto minha
donzela. Choro – Ai Meu Deus, porque me deste uma filha tua para depois ma
tirares e me fazeres cumprir o fim deste homem que tanto atormentou e matou
Carolina, com o mesmo descargo de consciência e paz com que o via beber aquele
vinho na janela dela…porquê eu? Porquê?
Entro pela porta dos fundos, deparo-me com uma casa escura,
decorada de modo a parecer o palácio de Versalhes, de tal modo requintado com
tapeçarias, quadros, loiças, etc. Escorrendo água e raiva, começo a subir as
escadas, sem forças, agarro-me no corrimão verde e frio com a mão esquerda,
enquanto com a mão direita mal seguro no machado…
Já no corredor do último piso, com a luz do luar vinda do
quarto do meu anjo, onde um demónio prospera, abro a porta que range, mas o
desgraçado não se move, aproximo-me passo a passo, com um resto de força
levanto o machado, e…
O machado trespassa-lhe o corpo, e este desvanece no ar… -Mas
o que é isto? Um espírito? A porta tranca-se, os estores da janela também, fico
no quarto dela às escuras, sem ninguém que me ouça… no escuro esquecido e a
lembrar-me daqueles olhos verdes… os que me prenderam neste lugar que, quando
caio em mim, me apercebo que não é no quarto de Carolina que me encontro trancado,
mas sim nas recordações do amor dela.