JORGE LEÃO
Vamos falar
de um sítio antiquíssimo, lindíssimo, e com uma história especialmente dignificante.
Mas primeiro, precisamos de ir ao Castelo dos Mouros.
Estamos no
castelo. Sabemos que estamos no castelo edificado pelos mouros, com a função de
atalaia, de vigia, e de reduto em caso de invasões. Cumpriu a sua função de
proteger a população moura e os seus bens, nas sucessivas invasões cristãs e
normandas, nos séculos IX e seguintes. Em tempo de paz, dele se controlava a
imensidão do Atlântico e a vasta planície do território, a Norte e a Oeste. Mas
e o Sul? A Sul temos dois montes muito próximos e que nos tapam a visão do
resto. Proporcionam-nos hoje uma vista magnífica do Palácio da Pena, com Santa
Eufémia à esquerda. Mas na altura seriam dois montes que já impediam a
visualização do sul, tanto a costa, que actualmente corresponde à Linha do
Estoril, como o mar, especialmente a barra do Tejo e a sua aproximação. E os
mouros prescindiam disso podendo fazê-lo, nesses conturbados tempos? Pensamos
que não. Como? Ocupando um local da serra suficientemente elevado, a Sul desses
dois montes e também evitando o monte da Cruz Alta que fica ainda a Sul e é o
ponto mais elevado deste conjunto. De preferência o mais perto possível do
castelo, porém, com uma condição: ter
água e madeira com abundância, necessidades primárias na época para a boa
habitabilidade de um sítio. Qual é a zona mais perto com estas características?
Vamos descer
do castelo. Vamos contornar o monte de Santa Eufémia. É muito perto. Descemos
em direcção à actual Igreja de Santa Maria (Arrabalde) mas antes dela viramos à
direita. Vamos pela Rua da Trindade, entramos em São Pedro de Penaferrim
(Calaferrim), passamos o Largo da Feira, entramos na Rua Dr. Leão de Oliveira e
ao fundo desta rua temos a Fonte do Forno. Olhemos. Aqui já temos tudo que
precisamos. Uma magnífica vista sobre o mar a Sul, a barra do Tejo e as praias
da Costa da Caparica, e Lisboa a nascente. Com água abundante, madeira e terra
fértil. Mais à frente, com os mesmos requisitos, temos um recatado sítio,
orograficamente muito curioso, muito bonito, a que os árabes deram um nome que
chega ainda a 1312 (1) como Alcubela (2),
e que hoje se chama Covelo.
Este encantador sítio foi habitado por
população árabe. População que por lá deve ter ficado após a reconquista. É o
mais provável nos casos em que a toponímia não muda imediatamente após a
vitória militar e a ocupação do território por colonos cristãos. A pródiga
toponímia árabe de Sintra é o resultado da permanência dessas populações após a
reconquista, com a anuência de D. Afonso Henriques, a quem também interessava
essa permanência. E lá continuou a vida.
Com o andar
dos tempos e a vontade dos homens acaba por perder o artigo arábico Al,
latinizou-se, e no início do século XVII já se chama, na maior parte das vezes,
Cobello.
Uma volta à Serra
A
Chancelaria de D. Filipe II, em 1606, a propósito da regulamentação das
actividades na serra, considerada coutada real, traça-nos dela o perímetro,
como ela era entendida na época, começando exactamente aqui, em São Pedro.
Vamos lá então, para desanuviar um pouco, dar uma volta à Serra, segundo este
documento:
São Pedro de Penaferrim, Ano Bom, Covelo, Linhó, Ranholas, Penha
Longa, Ribeira da Penha Longa, Açamassa, Porto Covo, Zambujeiro, Janes,
Malveira, Almoinhas Velhas, Figueira, Biscaia, Azóia, Ulgueira, Pé da Serra,
Almoçageme, Penedo, Colares, Eugaria, Vinagre, Ribeira de Galamares, Rio (de
Colares?) para a Serra até Sintra com seus arrabaldes, até chegar novamente a
São Pedro.
(3)
14 filhos em 24 anos
Neste
século, mais precisamente em 1645, o “Cubello” faz parte do morgado de Baltasar
Peles Sinel, mercador, filho de mercadores, abastado e com pretensões à
nobreza. Desse morgado, com casa mãe em Barcarena, fazem ainda parte outras
propriedades nesta freguesia, em Leceia, Queijas, Santarém, Manique, Outeiro da
Boa Vista. O “Cubello” consta de “...terras
de pão, E hua Vinha, e mattos, e outras pertenças que trás de Arendamento
Rafael Luís, morador no Lugar do Linho junto ao dito Lugar do Cubello...”(4). E
o Rafael Luís deve subarrendá-lo, pois por lá moram alguns casais e respectiva
criançada. E houve pelo menos um casamento feliz; Semeão Roiz e Maria Jorge
levam a baptizar à igreja de São Pedro, entre 1648 e 1672 a seguinte prole, por
ordem de vinda ao mundo: Maria, Sebastianna, João, Catharina, Manoel, Engrácia,
Domingos, Caterina, Domingas, Domingos, João, Jerónima, Antonia e Antonio. 14
filhos em 24 anos. Foram felizes ou não? Saudáveis parece que foram!(5)(6)
Entre brenhas
Estamos
agora no século XVIII. Nas “Memórias Paroquiais” de 1758, o prior Antonio de
Souza Sexas que, na maior parte das vezes nomeia laconicamente os lugares só
para indicar o número existente de casas e moradores, destaca o “Cobelo” pelo
seu carácter algo áspero, e pela vista privilegiada que tem sobre o mar e o
Tejo:
“Ha sim na falda desta sera, hum pequeno Lugar chamado o Cobelo,
situado entre brenhas, e sô tem de bom, nos poucos dias, em que o deixaó as
nevoas, descortinar huma grande parte de mar, e rio de Lisboa; e sô por esta
parte da Sera athe o Convento de Penha Longa, he q se cria alguá Cassa de
perdizes, e coelhos: tem suas ortas, e pumares de espinho(7) em cujos fructos
se entereçaó muito seus donos, recolhendo naó menos algum trigo, e Sevada: tem
este lugar 8 fogos, em que rezidem 36 pessoas...”.
O Cubêlo agora é Quinta.
No século
XIX, o nosso Covelo sobe pela primeira vez à condição de Quinta e aparece
empertigado, em 1825, na Gazeta de Lisboa, orgão oficial do Reino:
“Vendem-se duas quintas, sitas, huma no Linhó, e outra no Cubêlo,
termo da Villa de Cintra, que constão de casas, pomares de espinho e caroço,
terras de semear curraes etc., ambas tem agua nativa, e são muradas: quem as
quizer comprar, falle na loja de livros de viuva Bertrand e Filhos, junto á
Igreija de Nossa Senhora dos Martyres, em Lisboa.”
Se na altura
foi vendida, não sabemos. Mas o pacato lugar não irá ficar sossegado por outra
razão. A propósito da campanha da tomada de Lisboa por D. Afonso Henriques, e
se havia ou não tomado Sintra antes de Lisboa, lembra-se o Visconde de
Juromenha, em 1838, na sua “Cintra Pinturesca”, de propor, tentando conciliar
dados diferentes:
“Podia comtudo ter acontecido a D. Affonso
haver tomado Cintra, e perdida, recupera-la; ... podia tambem acontecer ter o
mesmo Rei tomado antes alguma fortificação exterior fóra da linha das muralhas,
talvez no monte que ainda conserva o nome de Cubello.”
Na verdade,
a posição privilegiada do lugar parece não passar despercebida a ninguém e
António A. R. da Cunha, na posterior edição de 1905, anota:
“Cubello, ou, como hoje se escreve: - Covêlo, - é o monte situado
entre a Costa do Pó, e a Cruz Alta. Tem actualmente tres casas de habitação, e
a quinta, que é propriedade da Congregação do Espirito Santo, da quinta do Bom
Despacho. Disfruta-se d’ali um vasto panorama para o sul e nascente.”
O século XX
No início
referimos que iríamos falar de um sítio antiquíssimo, lindíssimo, e com uma
história especialmente dignificante. Sim, o sítio é muito antigo, é muito
bonito, mas o que tem de especialmente dignificante? A sua história na primeira
metade do século XX, que começará exactamente em 21 de Agosto de 1915. Mas já
subimos ao Castelo para explicar a utilidade árabe da Alcobela, já descemos, já
demos uma volta à Serra, já andámos mil e tal anos. Estamos cansados. Essa
história fica para a próxima ocasião. Até lá.
(1) -
Chancelaria de D. Dinis, Livro III, p. 78 vs.
(2) –
Segundo José Pedro Machado: “Deve tratar-se duma palavra derivada com o sufixo
românico-ela. A palavra primitiva era Alcuba, do ár. Al-qubba, a cúpula.
Alcubela será, portanto, cupulazinha e deve referir-se possivelmente a algum
monumento religioso que outrora existisse nessa região.” Ver nºs 332, 333, 334,
do Jornal de Sintra de 1940, ou separata Sintra Muçulmana, editada em Sintra
pela “Imprensa Mediniana”, com estes artigos, ainda em 1940.
Nós
acrescentamos, com uma vénia ao ilustre mestre: religioso e/ou defensivo. Uma
edificação (com cúpula?) melhoraria a capacidade de visão. Também a orografia
do sítio sugere uma cúpula. Veja-se o que refere o Sr. Visconde de Juromenha,
mais à frente.
(3) – Chancelaria de D. Filipe II,
Privilégios, Livro I, Fl. 96.
(4) - Cadernos do Arquivo Municipal de
Lisboa. Janeiro-Junho 2015.
(5) – A repetição de um nome próprio deve-se
ao óbito do 1º titular? É o mais provável. Neste caso, a insistência no nome
tem razões afectivas: Domingos Jorge e Catherina Jorge também são moradores no
Cobello. Domingos Jorge parece ser irmão de Maria Jorge. Ele foi o padrinho do
7º filho do casal, Domingos (1658). Mais tarde, a mulher, Catherina Jorge, será madrinha do segundo Domingos(1665). Além
disso, Semeão e Maria baptizam duas filhas com o nome Catarina (1654 e 1660). A
par, Domingos Jorge e Catherina Jorge
tiveram quatro filhos, entre 1659 e 1671: Maria, Manoel, Simão e Francisca.
(6) – Paróquia de São Pedro de Penaferrim,
Livro de registos mistos, 1648/1682, Arquivo Nacional Torre do Tombo.
(7) - Laranjeiras e limoeiros.
Artigo publicado no Jornal de Sintra de 26 de Fevereiro de 2016