terça-feira, 12 de abril de 2022

O Anjo da Incerteza



 MARCOS PAMPLONA

Marcos Pamplona (Curitiba, 1964) é poeta, cronista e editor. Os seus poemas foram selecionados para três edições do Prémio Off Flip de Literatura, integrando as coletâneas de 2006, 2008 e 2010. Publicou o livro de poemas Tranverso, pela Kotter Editorial, em 2016; e o livro de crónicas Ninguém nos Salvará de Nós, também pela Kotter, em 2021. Vários textos seus podem ser encontrados em suportes eletrónicos ou de papel, tais como Mallarmargens, Jornal Relevo, Cândido, Pássaros Ruins, Radiocaos e Musa Rara (Brasil); Revista InComundade e Leiria Poetry Festival (Portugal). Vive em Lisboa, onde é editor da Kotter Portugal. Desde abril de 2019 escreve crónicas para o Jornal Plural, nascidas das suas andanças pelas terras portuguesas.

  

Ontem pela manhã o telefone começou a tocar. Pessoas próximas me desejavam um feliz aniversário: os filhos, a mãe, alguns amigos, o irmão. Eu agradecia, satisfeito por terem se lembrado de mim. Uns ligavam do Brasil, outros daqui de Portugal, mas era como se estivessem todos por perto. O calor do seu afeto ia aquecendo o fundo frio que acompanha meus pensamentos nestas datas. Graças a eles e à companheira, que me dedicou uma atenção carinhosa ao longo do dia, passei razoavelmente bem pelo ligeiro incômodo que os aniversários me causam. Pensar que os outros podem me esquecer ou que falam comigo por mero protocolo me deixa contrafeito ou desoladamente efusivo.

Quando fui me deitar, à noite, respirei fundo: estava livre do “meu dia”, da terrível convenção segundo a qual aquela data reserva algo de especial para mim. Já podia voltar ao tempo verdadeiro, ao tempo anônimo de toda gente. Adormecer com a cabeça confortavelmente acomodada em minha ineludível insignificância.

 

            Hoje é domingo. Escrevo diante desta janela bem no alto do prédio, de onde vejo a cidade ainda meio adormecida, sob o azul esbranquiçado onde às vezes some uma gaivota. Procuro responder à pergunta que meu filho mais velho me fez ontem. “Como você se sente?”, disse ele, num tom ambíguo que hesitava entre me provocar e não querer a resposta. Na hora falei algo banal, “vou bem”, “vou levando”, não lembro ao certo. Na verdade fui pego de surpresa. Mas a pergunta dormiu ao meu lado, levantou-se da cama comigo hoje, ficou me rondando como um cão à espera de atenção.

            “Como você se sente?”

           

            Depois de conhecê-la por cinquenta e oito anos, não vejo grandes motivos para festejar a vida. O que houve de melhor foram respingos de alegria, fumos de prazer numa senda de monótonas inquietações. O trágico disso é que também não chego a deplorar a existência, pelo menos nunca a ponto de querer abandoná-la. De tal maneira que me arrasto aos pés do que quase sempre me faz sofrer, como um amante maltratado e servil. E a sabedoria que se supõe colher desta experiência excruciante não vai além de algumas técnicas para diminuir a humilhação, como fingir indiferença ao futuro (carpe diem!) ou buscar na arte o sopro divino que me nega o carrasco.

             Essas considerações poderiam levar você a me supor um homem triste. Ou ultrajado pela sua condição, no fundo fraco. E você estaria certo, mas também errado. Porque ao mesmo tempo sou (absurdamente) forte, como o protagonista de O Castelo, aquele agrimensor que não desiste de buscar o alto, apesar dos labirintos insolúveis que lhe oferecem os poderes terrenos. Então você também poderia, claro, me perguntar o que é o “alto”, mas tal qual o agrimensor jamais chegarei lá, não sei nem nunca saberei o que seja. Simplesmente sou impulsionado pela força cega da vida, o eros que pode conceber e pode matar, jamais deter-se. (Toda a civilização oscila entre estes dois extremos, de criação e destruição, e senta-se diante do prato de sopa como um pássaro exilado do céu.) O alto é talvez apenas o contrário do baixo, do reles, do chão, daquilo a que estamos condenados. Às vezes acredito que é também uma lembrança, a nostalgia de uma completude perdida. O que há em nós de obscuramente divino, se você quiser. Mas outras vezes acho que é apenas nosso corpo com uma saudade oceânica da matéria inanimada, liberta de existir. Não sei; por mais que lhe digam o contrário, ninguém realmente sabe. Não saber parece ser o combustível indispensável para que a roda do mundo gire.

            E aqui, talvez, eu consiga dizer algo que pode ser útil neste espetáculo a que somos lançados nus, sem saber o texto, divisar a plateia ou conhecer o diretor. Digo a você que fuja dos que sabem, dos que professam certezas, dos que “conhecem o caminho”. Tudo que eles querem é escravizar o elenco, amealhar para si a bilheteria e os aplausos. Não lhe trarão nada que sequer se aproxime de amor ou afeto, porque estão comprometidos com a mentira até os ossos.

Você pode achar esquisito, mas o que sinto agora é ternura e respeito pelos confusos, pelos hesitantes, pelos tímidos, perdidos, céticos, por todos aqueles que caminham sobre a mais profunda ignorância, sem impor seu exemplo a ninguém. Os que não querem dominar os outros porque não transformam em matéria de ressentimento ou menosprezo a sua própria insuficiência e, pelo contrário, olham com fraterna largueza para a nossa pequenez.

Para estes abro minha porta, com eles compartilho água, comida, calor. Sei que não irão me devorar nem exigir de mim um predador nauseado.  

Mas evito os que “sabem”, os que se arrogam os poderes do céu e da terra, os que escravizam os outros com verdades que não passam de ilusionismo tirânico, destilado por uma vaidade rasa, violenta, estúpida. Evito os pastores como uma ovelha que sabe que vai ser abatida pelo seu zelo.

 

O que sinto hoje, meu filho, é essa paz relativa que só a derrota pôde me dar. E a presença protetora de um anjo cabisbaixo, esquivo. Poderia chamá-lo de anjo da nossa incerteza.



           

           

            

Sem comentários:

Enviar um comentário