terça-feira, 13 de agosto de 2013

Uma carta de Castilho a D.Fernando II

CARLOS MANIQUE DA SILVA

António Feliciano de Castilho (1800-1875), poeta, jornalista, tradutor e pedagogo, foi autor de vasta e diversificada obra escrita. Das facetas enunciadas, merece-nos particular atenção a última, particularmente por ser através dessa condição que vislumbramos um Castilho mais preocupado com a emancipação dos seus cidadãos; se quisermos, com a criação de um certo “espírito coletivo”. É nesse âmbito que se situa a carta anunciada em epígrafe. Todavia, antes de a abordarmos, impõem-se algumas considerações em ordem a contextualizar o seu conteúdo.

Em 1848, quando reside nos Açores, na ilha de S. Miguel, António Feliciano de Castilho, que até então não se interessara diretamente por assuntos relativos à instrução pública, toma contacto, através de um amigo francês, com o método de aprendizagem de leitura de Lemare. Na sede da Sociedade dos Amigos das Letras e Artes, em Ponta Delgada, Castilho abre três escolas primárias, nelas promovendo um “novo” método de ensino da leitura, exatamente resultante do seu trabalho (nem sempre feliz) de adaptação do método de Lemare.

Regressado ao continente, abraça uma tenaz campanha de difusão do método em questão, verdadeiramente iniciada em 1850, quando publica a 1.ª edição da cartilha Leitura Repentina; obra que conhecerá posteriores edições (2.ª e 3.ª em 1853, 4.ª em 1857), diga-se com poucas mudanças de conteúdo, sendo nas duas últimas intitulada Método Português de Castilho.

Durante os primeiros anos da citada década, Castilho desdobra-se em contatos com entidades governamentais, promove cursos noturnos e diurnos, cria aulas de “primeiras letras”… perseguindo, no fundo, um desiderato muito próprio: a imposição exclusiva do método de “leitura repentina” nas escolas primárias do país. No entanto, o método não colhe a aceitação que o seu autor esperava, sendo que, como resposta do governo, obtém apenas, em 1853, a atribuição do cargo de comissário geral de instrução primária pelo método português no reino e ilhas. Ora, após essa data, seria de esperar que as condições fossem favoráveis à disseminação do método. Porém, por paradoxal que possa parecer, é a partir desse momento que Castilho sofre críticas mais contundentes por parte dos seus opositores, centradas na imposição exclusiva do método, pouco consentânea com o ideário liberal, sem esquecer argumentos vários de natureza pedagógica.

Até 1854, ano em que o poeta-pedagogo leciona vários cursos dirigidos a professores do ensino primário (em Lisboa, Leiria, Coimbra e Porto), o mencionado clima de hostilidade cresce de tom. Um ano depois, certamente desiludido, mas sem nunca abandonar a luta, Castilho parte para Terras de Vera Cruz; estadia que demoraria cerca de seis meses, abnegadamente passados na promoção do método de leitura.

A partir de 1856, António Feliciano de Castilho modifica a sua ação pedagógica, passando a pugnar, em termos mais abrangentes, pela generalização de ensino popular; para o efeito, faz inúmeras concessões ao valor e à originalidade do “método português”, como fica, de resto, expresso no prólogo da 4.ª edição.

Traçado este quadro, centremo-nos agora na carta que Castilho endereçou a D. Fernando II, corria o dia 13 de outubro de 1855[1]. O autor da missiva começa por referir que já solicitara ao “Rei-Artista” uma visita às escolas onde se praticava o “método português”. Porém, segundo faz saber, tal não sucedera por negócios e afazeres do monarca, numa altura em que este tinha por dever a regência do reino[2]. Agora, que, como relata, o rei se afastara da “espinhosa gerência das coisas públicas ao remanso dos seus amados estudos, e à plena fruição dos seus gostos artísticos e filosóficos”, era o momento ideal para a renovação do primeiro pedido. É nesse sentido que solicita a D. Fernando II “o seu exame e juízo como de sábio, e a sua proteção efetiva como de rei”. No entanto, revela ignorar se o monarca conhece o “método português”, ou mesmo se lhe chegara alguma informação negativa a tal respeito; é que, do seu ponto de vista, “todas as inovações contam inimigos”.

Não obstante alguma reserva, o comissário geral de instrução primária pelo método português mostra-se esperançado, advogando a ideia de que se o rei tiver “assistido duas ou três horas aos trabalhos de uma destas classes, terá colhido convicção, para toda a vida, que a qualquer luz que se considere o novo ensino, as suas vantagens sobre o antigo são incontestáveis”. Castilho sugere depois a D. Fernando II a fundação e a proteção de duas escolas do sexo feminino para as camadas desvalidas da sociedade. Uma das escolas, como indica, situar-se-ia em Lisboa, “às abas do Paço”, e teria como protetoras as filhas do monarca. Em relação à outra escola, o apelo é mais veemente e direto ao rei: “V. M. mesmo, na sua Sintra, já tão favorecida, tão aformosentada, e tão célebre, pelo seu coração, pelo seu gosto, pela sua inata e ilustrada generosidade, poderia coroar tantos benefícios […] com a fundação e manutenção de uma escolazinha aldeã”. O autor da missiva discorre depois, em jeito poético, sobre as vantagens de uma escola em Sintra: “Os viajantes que fossem, já no próximo Verão, procurar as belezas e as inspirações de esse país, tão arcádio, e tão romântico ao mesmo tempo, folgariam de ouvir nos cânticos dessas vozes ingénuas, as ações de graças à providência terrestre”. Todavia, Castilho, que em 1841 fizera o elogio do “Rei-Artista” (o cognome é, aliás, de sua autoria) nas páginas da Revista Universal, vai um pouco mais longe. Na verdade, estabelece um paralelo entre o espírito do monarca – que “deu um culto ao passado, restaurando ruínas históricas e estendendo mão régia ao régio castelo mouro que se aluía” (como que resgatando, segundo se infere, as raízes da nacionalidade) – e os tempos que adviriam, aos quais a escola daria um contributo decisivo para a “edificação dos futuros nacionais”.

Apresentados os argumentos essenciais para captar a atenção de D. Fernando II, António Feliciano de Castilho passa a nomear as escolas de Lisboa que, pela proficiência com que nelas se aplicava o método, deveriam ser visitadas; cita, para o efeito, os Asilos de Infância Desvalida da rua dos Calafates e da rua da Junqueira, as escolas oficiais das freguesias das Mercês e da Lapa e, entre as privadas, o Colégio Artístico (à Estrela) e a do Menino Jesus dos Atribulados (a S. Roque).

Mas por que não era suficiente exaltar as virtudes do “ensino novo”, o autor do método traça um quadro negro da generalidade das escolas primárias do país. E, sendo certo que as grandes obras precisam de timoneiro, Castilho coloca-se à disposição de D. Fernando II para organizar os dois “futuros hospícios da inocência”.

Desconhecemos de que forma o “Rei-Artista” reagiu à referenciada carta. Sabemos, porém, que os projetos propostos não vingaram. Todavia, se a ação pedagógica de António Feliciano de Castilho pode parecer algo utópica, não podemos olvidar que, à época, representou um verdadeiro apostolado da causa da instrução pública. Como metaforizou Tomás Ribeiro, Castilho entrou “só pelas aldeias e cidades, a proclamar, a oferecer, a semear a mãos largas a luz para todos, o luminoso amor para os deserdados; porque ele era como o sol, que também não vê, e alumia”.


 [1] A carta em questão, que constitui “o quarto brado de Aqui-D ‘El-Rei em favor da escola primária”, foi publicada no volume Correspondência Pedagógica. António Feliciano de Castilho, Lisboa, Instituto Gulbenkian de Ciência, 1975, pp. 104-107.

[2] D. Fernando II foi regente do reino entre 15 de novembro de 1853 e 16 de setembro de 1855.

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