quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O Hospital do Espirito Santo e a Gafaria de Sintra

CARLOS MANIQUE DA SILVA

Duas instituições de caridade marcaram o panorama sintrense desde tempos medievais. Refiro-me ao Hospital do Espírito Santo e à Gafaria de Sintra. No que concerne à primeira instituição, documentos de arquivo atestam a ancestralidade da sua implantação no centro nevrálgico da vila, isto é, na contiguidade do Paço Real. Por outro lado, a Gafaria, diferenciada do Hospital do Espírito Santo (apesar de com ele formar um único organismo ou instituição jurídica), situava-se primitivamente nas imediações do “cabeço do Ramalhão”, mais precisamente, segundo relata Silva Marques (cf. Cartório da Misericórdia e Hospital do Santo Espírito e Gafaria de Sintra, 1940), na atual rua do Fetal, em S. Pedro de Penaferrim. Em finais do século xv, a Gafaria é transferida para uma zona relativamente próxima mas mais a poente (sobranceira à Praça D. Fernando II), onde ainda hoje é possível observar a Capela de S. Lázaro (foto abaixo), remanescente imóvel do complexo aí instalado.


Se é verdade que o Hospital manteve atividade até à década de 1980, a Gafaria, por seu turno, entrou em rápido declínio no decurso do século xvi, à medida que a lepra dava evidentes sinais de retrocesso no nosso país.

A cronologia de acontecimentos que a seguir se apresenta pretende, no essencial, revelar aspetos marcantes da vida das duas instituições; tanto quanto seja possível desde que há memória documental até ao ano de 1545, momento em que são anexadas à Santa Casa da Misericórdia de Sintra, então fundada.



1368 (outubro, 8) – O juiz, vereadores e procurador da vila de Sintra, reunidos no “Chão de Oliva”, em frente do Paço Real, tomam conhecimento de que o rei (D. Fernando) não concorda que os rendimentos do Hospital e Gafaria de Sintra sejam despendidos em outros “negócios do concelho”.



1369 (abril, 22) – O juiz e vereadores reúnem a fim de corrigirem a irregularidade apontada, reconhecendo que o melhor será elegerem um “homem bom de consciência” que seja provedor do Hospital e Gafaria. Para o efeito, nomeiam João Anes, “homem bom e sem cobiça”, residente “à Fonte da Pipa”.



1403 (setembro, 28) – Gonçalo Anes, tabelião, pede escusa do cargo de provedor do Hospital e Gafaria, para o qual havia sido nomeado por ser “homem de boa fama”. O requerimento é indeferido.



1403 (dezembro, 22) – Gonçalo Anes, tabelião e provedor do Hospital e Gafaria, reclama o pagamento de “pão e dinheiros” devidos à instituição pelo Município de Sintra, sob pena de proceder à venda de bens do concelho até ao montante da dívida.



1545 (março, 10) – A rainha D. Catarina, mulher de D. João III, escreve ao juiz, vereadores, procurador e homens bons da vila de Sintra dizendo-lhes, com prévia autorização do rei, que deseja muito que em Sintra haja uma Confraria de Misericórdia.



1545 (julho, 8) – A rainha D. Catarina escreve aos citados destinatários, respondendo à carta em que estes lhe deram conta da formação da “Confraria da Santa Misericórdia”, e agradece-lhes que tudo tenha sido “tão bem feito como eu de vós confiava que havíeis de fazer”.



1545 (setembro, 23) – D. João III, a pedido de sua mulher, resolve anexar o Hospital do Espírito Santo e a Gafaria de Sintra à recém criada Confraria de Misericórdia.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Um pescador de almas em S.Pedro

DIOGO NUNES POCARIÇO

No dia 21 de Dezembro de 1926, nascia na paróquia da Campanhã, no Porto, o Padre António David Lencastre de Ribeiro e Silva, filho de David Ribeiro da Silva e de Maria da Glória de Queiróz Lencastre Ribeiro da Silva. Em 1947, entrou para a ordem religiosa beneditina, iniciando os seus estudos eclesiásticos no Seminário de Singeverga, onde esteve até pouco depois da sua ordenação presbiteral. Daqui transita para o Colégio de Lamego. Foi ordenado presbítero na diocese do Porto, no dia 19 de Julho de 1953, pelas mãos de D. António Ferreira Gomes, o bispo que “bateu o pé” a Salazar. Em Outubro de 1962 desempenha a função de Coadjutor na igreja da Graça, em Lisboa, permanecendo aqui até 1970. Neste mesmo ano é nomeado pároco da freguesia de São Pedro de Penaferrim. Homem de notável cultura foi professor de religião no Conselho Presbiteral de Sintra e um grande defensor do património. Não é de estranhar que o seu nome esteja gravado numa lápide no Museu de S. Miguel de Odrinhas. Em Novembro de 1970 assume a missão de capelão dos reclusos da Colónia Penal de Sintra. A população reclusa da Colónia sempre lhe cativou de maneira especial, tentando semear e cultivar valores sociais e cristãos, oferecendo sempre a sua palavra amiga. Os mais desprotegidos foram sempre para ele, motivo de grande preocupação. Conseguiu como seu último desejo, o acontecimento solene e histórico da visita da imagem peregrina à Colónia Penal. Já no final da sua vida, atingido pela doença de Parkinson, nunca deixou de celebrar missa na capela da prisão, juntando o seu sofrimento ao do Senhor, como ele dizia. No escritório da sacristia da igreja de S. Pedro passava os seus dias a escrever e a rezar, seguindo a máxima dos beneditinos, Ora et Labora (reza e trabalha). No dia 31 de Janeiro de 2005, falecia em Cascais o Padre Lencastre.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Em Reunião



FERNANDO MORAIS GOMES

Filipe Corujão acelerava a construção da casa em Janas, com a licença prestes a caducar, obras não eram a sua praia. Médico no Amadora-Sintra, viu-se embrenhado em desenhos e alvarás, a burocracia fazia qualquer um envelhecer. O arquitecto da Câmara, um tal Henriques, um caso sério para contactar, o telemóvel não atendia e sempre que ligava, diziam estar em reunião.

As alterações metidas no projecto já estavam executadas, mas a Câmara não aprovava. O Plano da Orla Costeira, a Rede Natura 2000, a certificação do ruído, tudo era preciso. O Conrado, empreiteiro de manhã e alcoólico à tarde, dizia-lhe que avançasse a construção, a obra não podia parar, tinha outra no Algarve para começar a seguir e se não fosse nessa altura não sabia quando poderia voltar. O projecto das alterações tinha dois meses na Câmara, mas ainda não saíra das mãos do arquitecto. Tentou uma reunião, telefonou para vários lados, tente mais tarde, era a resposta, que o senhor arquitecto foi almoçar. Um fiscal passou uma vez, a ameaçar embargo, as pesadas multas desaconselhavam aventuras.

Tentou ser recebido pelo arquitecto, não logrando senão uma marcação para daí a três semanas, a licença caducaria entretanto e o fiscal não deixaria de actuar. Impossível, muito trabalho, reuniões, faça uma exposição. Passados uns dias, a obra foi efectivamente embargada e o Conrado partiu para o Algarve, não sem apresentar a factura, a licença na melhor das hipóteses só daí a meses, depois de reduzida a volumetria e pagas taxas agravadas. Havia que ser paciente, com um pouco de sorte talvez em seis meses recomeçasse a obra.
O banco do Amadora-Sintra era uma montra violenta e desumana, rotineiro, o movimento de ambulâncias e sirenes, a música mais escutada na noite do hospital. Filipe estava de banco essa quarta-feira, preparado para mais um desfile de acidentados e aflitos. Comeu uma sopa no bar e avançou para o primeiro paciente, uma queda de motorizada, luxação, guia de marcha para o raio X. Logo a seguir, um choque frontal no IC-16, perto do Tribunal de Sintra. A vítima sangrava muito, o outro ocupante falecera e Filipe mandou avançar para a observação. O doente tinha hematomas e quase não falava, angustiadas, a mulher e filha acompanhavam-no.
Debruçando-se sobre o sinistrado, Filipe reconheceu o arquitecto da Câmara, o Alberto Henriques. Atordoado, o caso inspirava cuidados. Momentaneamente lembrou-se do processo e do embargo, ir-lhe-ia custar cinco mil euros, e bastaria ter pegado no processo uns dias antes. Depois dos exames e de medicado, recolheu ao internamento, os bombeiros entregaram à mulher uma pasta com papéis que se espalharam com o choque. Depois, informou a família, não corria perigo mas tinha para dois ou três meses.
Só dois dias depois o infausto arquitecto recuperou a consciência. Durante a visita matinal, reconheceu o médico, o da casa de Janas, entre o silencioso e o encavacado perguntou-lhe pelo seu estado:
-Há-de ir ao sítio, arquitecto. Com três meses de “estaleiro”…-respondeu, distanciado e profissional, agora com o arquitecto de “baixa” é que o projecto nunca mais seria aprovado.
Passadas duas semanas, o arquitecto teve “alta” e repousaria em casa, muletas três ou quatro meses e longe da Câmara. No dia em que saiu do hospital e ainda combalido, procurou Filipe por uma enfermeira, queria agradecer a assistência e prometer celeridade no processo. Iria telefonar a um colega para lhe dar andamento na sua ausência, os prazos tinham de se cumprir e era o dinheiro dos contribuintes que estava em jogo, afinal. Minutos depois, a enfermeira voltava, o senhor doutor pedia desculpa mas não podia receber o arquitecto, estava em reunião.

domingo, 26 de janeiro de 2014

Recordo-me do teu sorriso, um poema de Henrique Rodil

HENRIQUE RODIL











Recordo-me do teu sorriso
E como nele voava
No tempo onde te amava
Tão longe, tão alto,
Pairava na nuvem mais alta,
Flutuava sob o oceano,
Respirava no pico da montanha
O ar mais doce que vinha do teu suspiro.

Tu cantavas para mim...
Recordo me dessa madrugada
Onde ao acordar os teus olhos me diziam
O quanto eras amada.

Henrique Rodil
11-05-2013

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Entrevista com os Diamantes Negros

FERNANDO MORAIS GOMES


Os Diamantes Negros foram uma das bandas mais emblemáticas de Sintra dos anos 60. Carlos José "Cainhas" (bateria), Carlos Rodrigues (saxofone), Álvaro José Silvestre (guitarra), e Carlos Henriques "Xixó" (guitarra) a que se juntou depois Luís Cardoso na guitarra baixo, foram sem dúvida uma lufada de ar fresco na Sintra da época, animando bailes e festas ao som dos Shadows, Beatles ou Beach Boys. À beira de completar 50 anos de carreira, depois da estreia a 25 de Janeiro de 1964 na Sociedade União Sintrense, falámos com eles numa solarenga tarde de Dezembro:

Querem recordar a vossa estreia em 25 de Janeiro de 1964?

25 de Janeiro de 1964, Sociedade União Sintrense, pano fechado e grande expectativa, tudo a postos. O Carlos Nascimento fez a apresentação, e surgiu a primeira música- Round and Round- às 22 horas, mais coisa menos coisa, o velho pano de boca de cena, verde pela frente e vermelho para o palco abriu-se, e apareceram quatro jovens, nervosos mas decididos, a tocar uma música dos Shadows, sem viola baixo. Foi o delírio. Mas as palmas foram tantas que daí até às cinco da manhã, cada música foi um êxito, palmas e mais palmas. O Xixó tocou piano com estrondo no Quando calienta el sol , e cantou em espanhol, o que para ele, todo virado para o inglês, era assim o mesmo que lhe arrancar os dentes todos. Mas nós queríamos ser e éramos abrangentes, tínhamos música inglesa (era a base) francesa, italiana, e no dia da apresentação até o Caínhas, sempre à bateria, cantou uma canção do Marino Marini, o Perdoname, com o Xixó ao piano, o Álvaro José na guitarra, o Carlinhos Rodrigues no sax.

Tínhamos para a apresentação coisas muito rudimentares. Quem estava melhor equipado, embora mal e por pouco tempo era o Xixó. Ele tinha uma viola nova, uma Egmond, que custou três contos, uma fortuna para a época; o Álvaro José tinha uma Tulip comprada em segunda mão; o Caínhas tinha uma bateria velha que desencantou numa casa de penhores e que, se virem bem a foto da época, concluem que era impossível tocar alguma coisa naquele instrumento, mas deu para a festa de apresentação.

Temos vários episódios giros. A aparelhagem da guitarra de acompanhamento do Álvaro José era uma telefonia e a ligação para o pick up era feita com duas bananas. E aquilo dava som? Quase nada, mas naquele tempo davam-se bailes no Parque da Vila para mil pessoas ou mais sem aparelhagem e com o Avelino Gil a cantar, ou com uma aparelhagem de 15 watts!

Qual foi o percurso da banda ao longo destes cinquenta anos?

Quando fizemos um ano foi uma festa de arromba, tivemos um banquete servido no gabinete da Direcção da S.U.S., espectacular! Seria uma grande falha não falar na Comissão de Senhoras que se esmerava em apresentar um beberete feito à custa da mobilização de quase todas as senhoras e do comércio da Vila Velha, que por ordem da D. Martinha Correia e da D. Mariana Gaspar, mais tarde também da D. Esmeralda (de Monte Santos), tudo fizeram para que os nossos aniversários fossem uma festa. Destaque para o dia 11 de Setembro de 1965 quando vencemos a terceira eliminatória do Concurso Yé Yé no Teatro Monumental, em Lisboa. Concorreram outras bandas sintrenses, eliminadas logo à primeira. Na meia-final, a 8 de Janeiro de 1966, fomos eliminados pelos Sheiks, na altura “só”, a melhor banda portuguesa, Outro momento a destacar é a edição em 1966 do nosso único disco EP, que incluiu os temas “O dia em que te vi”, “Rosas Brancas”, “Quero-te sempre a meu lado, meu amor”, e “Eu sei meu amor”.

Outro momento alto, foi o Concurso Académico de Música Moderna, organizado pela CITU, (Centro de Intercâmbio e Turismo Universitário), a 17 de Maio de 1968. Ganhámos as eliminatórias, fomos à final e ficámos em segundo lugar, só batidos pelos Espaciais do Porto, que actuaram com o pseudónimo de PSICO, e tinham nas suas fileiras entre outros o Miguel Graça Moura.

A guerra de África afastou o grupo e os Diamantes, primeira fase, acabaram em 1970, tendo havido uma tentativa de reanimação do grupo em 1974 com uma formação que tinha como meta música do tipo do conjunto Chicago. Tinha José Freitas no trompete, Álvaro Cruz no sax alto e tenor, Caínhas na bateria, Reinaldo Nunes, guitarra e voz, Jaime Pereira, baixo e voz e Augusto nas teclas. Acabou no início de 1976. Mais modernamente, o reconhecimento oficial da carreira dos Diamantes Negros, dá-se em 1997 com a inclusão do tema “O dia em que te vi”, na esgotadíssima dupla coletânea, “Biografia do Pop Rock” e em 2004 na coletânea “All You Need Is Love” com o tema “Quero-te sempre a meu lado”. Em Março de 2003, no Auditório Olga Cadaval, voltaram a juntar-se.

Os Diamantes Negros fizeram digressões por todo o país, actuaram na Madeira, Espanha, França e Itália, e em 1998 uma formação dos Diamantes Negros, com Luís Cardoso, viola baixo, Júlio Ribeiro, voz e guitarra, José Raimundo, bateria, e Dr. Mário Braga, viola solo, fizeram até uma digressão a Toronto, Canadá, onde foram muito aplaudidos e bem recebidos. Daí para cá os Diamantes Negros nunca mais pararam. Com esta formação e mais tarde com os elementos fundadores, Caínhas e Xixó.

E hoje, ainda vão mantendo viva a chama?

A amizade e união que sempre nos guiou, juntou-nos novamente no pós-reforma. Actualmente a Banda tem quatro elementos: Carlos José Santos “Caínhas”, Carlos Henriques, “Xixó”, Luís Cardoso, e Jaime Pereira. Temos feito actuações com carácter beneficente, e também em festas populares e particulares. O nosso quadragésimo aniversário, festejado no Salão da Terrugem, teve a presença de mais de seiscentas pessoas, e será de celebração o programa dos 50 anos que teremos em 2014.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

O Casino de Sintra e a Colecção Cid dos Santos

FERNANDO MORAIS GOMES


Bartolomeu Cid dos Santos foi um pintor e gravador pertencente à terceira geração de artistas modernistas portugueses. Residiu a maior parte da sua vida em Londres, onde foi professor na Slade School of Fine Art. Foi autor de uma obra de grande vitalidade, sendo considerado uma das figuras cimeiras da gravura nacional, tendo igualmente sido morador ocasional em Sintra, nas Escadinhas da Fonte da Pipa.

De 1956 a 1958 fez a sua formação na Slade School of Fine Art (com Anthony Gross),em Londres, cidade onde três anos mais tarde fixaria residência. Foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian entre 1961 e 1964. A partir de 1961 e até à data da sua reforma, em 1996, ensinou no Departamento de Gravura da Slade School. Foi Emeritus Professor in Fine Art da Universidade de Londres e Fellow do University College London; membro da Royal Society of Painter-Printmakers.A sua obra centrou-se na gravura, embora tenha produção significativa em desenho e pintura, azulejo, etc. Retomando uma técnica adaptada da água forte e que experimentara no início da carreira, nas últimas décadas realizou grandes painéis de pedra gravada para o metropolitano de Tóquio (Estação Nihonbashi) e de Lisboa (Estação Entre Campos).

Expôs colectivamente cerca de duzentas vezes em Portugal e no estrangeiro, destacando-se Avant Garde British Printmaking 1914-1960 no Museu Britânico, 1990, e Signatures of the Invisible em Londres, na Atlantis Gallery, 2001.

A obra de Bartolomeu dos Santos representa um longo e variado repositório de recursos técnicos e formais, em imagens onde convivem "a melancolia, a ironia, às vezes à beira da irrisão, e
uma espécie de desejo de redenção".

Não querendo perder a oportunidade de ter em Sintra obras suas, atenta a ligação de Cid dos Santos ao concelho, e estando subutilizado o Casino após a saída da Colecção Berardo, aprovou a Câmara de Sintra em 4 de Março e a Assembleia Municipal a 23 desse mês um protocolo de cedência ao Município dum acervo de 3600 trabalhos do autor, objecto dum protocolo de gestão aprovado em 5 de Agosto passado, entre a CMS e a viúva de Cid dos Santos, válido por 4 anos renováveis por períodos de dois.

Algumas questões contudo parecem carecer de esclarecimento:

1-Os períodos de 4 anos precludem em caso de falecimento da viúva do mestre, caso em que- nº3 da Cláusula 2ª do Protocolo de 5 de Agosto- o acervo será devolvido à OBS-Oficina de Gravura de Tavira Associação Cultural, com restituição, embalamento e transporta a expensas da CMS. Ora tal pode vir a antecipar o período de cedência, justificando algumas interrogações sobre as despesas a realizar com todo o processo, que pode vir a ser de menor duração que a da Colecção Berardo.

2-Compete à CMS contratar um curador para direcção e supervisão da colecção, por um período de 4 anos, o qual será indicado pela viúva mas pago pela autarquia. Em tempo de contenção de custos não seria mais adequado escolher de entre pessoal dos quadros da CMS ou de alguma das suas empresas alguém com o perfil adequado para tal função, ouvindo claro, a cedente para tal finalidade?

3-Igualmente a partir da primeira renovação do protocolo se prevê pagar mensalmente à viúva uma compensação monetária equivalente a 3 salários mínimos nacionais, e assume-se um valor para os 4 primeiros anos de 150.000 euros para a gestão, conservação, manutenção e divulgação da dita colecção, a que- não é claro- acrescerão remunerações do Curador e dos membros do Conselho de Tutela e seguros de valor ainda não definido, o que será precedido de avaliação.

Não se contesta a utilidade e enriquecimento cultural de que Sintra beneficiará com este acervo de arte portuguesa contemporânea. Fica porém a dúvida se atenta a obrigação de devolução com a morte da cedente e o facto de o protocolo ser apenas por 4 anos (renováveis, é certo, mas não obrigatório) se justificarão as despesas implícitas e ora protocoladas, com o risco de após despesas de alguma monta se não verá “fugir” mais um acervo, como o do comendador Berardo, para quem praticamente foi direccionada a reabilitação do ex-Centro de Arte Moderna. Daí que talvez tivesse sido curial um prazo não inferior a 10 anos, independentemente do falecimento da cedente, salvaguardando o facto de, continuando a mesma a ser plena proprietária das ditas obras, nada garantir que no período de 4 anos não se veja na iminência de as vender ou doar, e assim diminuir o valor e quantidade das obras ora cedidas. O passado recente não foi animador, nestas matérias, como é sabido.

Aproveita-se para recomendar que precedendo a abertura do novo espaço, sejam diligenciadas umas jornadas em torno da obra de Bartolomeu Cid dos Santos, facto que a Alagamares irá em breve promover, à sua escala, em homenagem ao mestre da Fonte da Pipa.

Bartolomeu Cid dos Santos foi um pintor e gravador pertencente à terceira geração de artistas modernistas portugueses. Residiu a maior parte da sua vida em Londres, onde foi professor na Slade School of Fine Art. Foi autor de uma obra de grande vitalidade, sendo considerado uma das figuras cimeiras da gravura nacional, tendo igualmente sido morador ocasional em Sintra, nas Escadinhas da Fonte da Pipa.
De 1956 a 1958 fez a sua formação na Slade School of Fine Art (com Anthony Gross),em Londres, cidade onde três anos mais tarde fixaria residência. Foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian entre 1961 e 1964. A partir de 1961 e até à data da sua reforma, em 1996, ensinou no Departamento de Gravura da Slade School. Foi Emeritus Professor in Fine Art da Universidade de Londres e Fellow do University College London; membro da Royal Society of Painter-Printmakers.A sua obra centrou-se na gravura, embora tenha produção significativa em desenho e pintura, azulejo, etc. Retomando uma técnica adaptada da água forte e que experimentara no início da carreira, nas últimas décadas realizou grandes painéis de pedra gravada para o metropolitano de Tóquio (Estação Nihonbashi) e de Lisboa (Estação Entre Campos).


Expôs coletivamente cerca de duzentas vezes em Portugal e no estrangeiro, destacando-se Avant Garde British Printmaking 1914-1960 no Museu Britânico, 1990, e Signatures of the Invisible em Londres, na Atlantis Gallery, 2001.


A obra de Bartolomeu dos Santos representa um longo e variado repositório de recursos técnicos e formais, em imagens onde convivem "a melancolia, a ironia, às vezes à beira da irrisão, e uma espécie de desejo de redenção".


Não querendo perder a oportunidade de ter em Sintra obras suas, atenta a ligação de Cid dos Santos ao concelho, e estando subutilizado o Casino após a saída da Colecção Berardo,aprovou a Câmara de Sintra em 4 de Março e a Assembleia Municipal a 23 desse mês um protocolo de cedência ao Município dum acervo de 3600 trabalhos do autor, objecto dum protocolo de gestão aprovado em 5 de Agosto passado, entre a CMS e a viúva de Cid dos Santos, válido por 4 anos renováveis por períodos de dois.


Algumas questões contudo parecem carecer de esclarecimento:


1- Os períodos de 4 anos precludem em caso de falecimento da viúva do mestre, caso em que- nº3 da Cláusula 2ª do Protocolo de 5 de Agosto- o acervo será devolvido à OBS-Oficina de Gravura de Tavira Associação Cultural,com restituição, embalamento e transporta a expensas da CMS.Ora tal pode vir a antecipar o período de cedência, justificando algumas interrogações sobre as despesas a realizar com todo o processo, que pode vir a ser de menor duração que a da Colecção Berardo.


2- Compete à CMS contratar um curador para direcção e supervisão da colecção, por um período de 4 anos, o qual será indicado pela viúva mas pago pela autarquia.Em tempo de contenção de custos não seria mais adequado escolher de entre pessoal dos quadros da CMS ou de alguma das suas empresas alguém com o perfil adequado para tal função, ouvindo claro, a cedente para tal finalidade?


3- Igualmente a partir da primeira renovação do protocolo se prevê pagar mensalmente à viúva uma compensação monetária equivalente a 3 salários mínimos nacionais, e assume-se um valor para os 4 primeiros anos de 150.000 euros para a gestão, conservação, manutenção e divulgação da dita colecção, a que- não é claro- acrescerão remunerações do Curador e dos membros do Conselho de Tutela e seguros de valor ainda não definido, o que será precedido de avaliação.


Não se contesta a utilidade e enriquecimento cultural de que Sintra beneficiará com este acervo de arte portuguesa contemporânea. Fica porém a dúvida se atenta a obrigação de devolução com a morte da cedente e o facto de o protocolo ser apenas por 4 anos (renováveis,é certo, mas não obrigatório)se justificarão as despesas implícitas e ora protocoladas,com o risco de após despesas de alguma monta se não verá “fugir” mais um acervo, como o do comendador Berardo, para quem praticamente foi direccionada a reabilitação do ex-Centro de Arte Moderna.Daí que talvez tivesse sido curial um prazo não inferior a 10 anos, independentemente do falecimento da cedente, salvaguardando o facto de, continuando a mesma a ser plena proprietária das ditas obras, nada garantir que no período de 4 anos não se veja na iminência de as vender ou doar, e assim diminuir o valor e quantidade das obras ora cedidas.O passado recente não foi animador, nestas matérias, como é sabido.


Aproveita-se para recomendar que precedendo a abertura do novo espaço, sejam diligenciadas umas jornadas em torno da obra de Bartolomeu Cid dos Santos, facto que a Alagamares irá em breve promover,à sua escala, em homenagem ao mestre da Fonte da Pipa.


domingo, 19 de janeiro de 2014

sábado, 18 de janeiro de 2014

Os Administradores de Frustrações

FERNANDO MORAIS GOMES


José Luís chegava ao Académico invariavelmente pelas oito, a bica e o jornal, a par da cavaqueira com o Alcides, funcionário das Finanças, era rotina diária. Do lado oposto da rua, a escola secundária ia-se enchendo de alunos ruidosos, muitos com paragem no café antes da entrada, Bruno, calças abaixo do rabo e boné ao lado, e Sofia, com os livros no braço, trocavam o primeiro beijo do dia, a aula de francês era só às oito e meia. Como não há opinião pública sem ler a opinião publicada, os clientes devoravam os matutinos, os mais velhos com um olho na necrologia a ver quem deixara de fumar, um dia destes calharia a deles. O Alcides, pedido o galão e a meia torrada, comentou a manifestação dos indignados:

-Esta malta…. Se fossem trabalhar, há por aí muito campo às urtigas. Os pais gastam o que têm e não têm para eles estudarem, mas trabalhar está quieto, só querem é ter emprego, é o que é! - O Mário, a meses da reforma, concordava, desde os dezassete que trabalhava no duro.

-Sabe o que é, amigo Alcides -intrometeu-se o Policarpo, dono da loja contígua, dois filhos com vinte anos na faculdade - o mal disto, é que a malta não foi educada para lidar com contrariedades. Os putos nunca foram tão privilegiados como agora. A gente é que é culpada, quisemos o melhor para eles e eles acharam que tinham direito a tudo de mão beijada!

O Pedroso, fiscal da Câmara, com uma filha psicóloga a trabalhar num call center, sentado na mesa do meio corroborou:

força de querermos o melhor para eles, demos-lhes mimos e mordomias a mais, e eles pensaram que estava tudo garantido, saídas à noite, carta e carro com gasolina, multibanco. Enfim, pai é pai, mas se calhar andámos mal…. Enquanto houve dinheiro da Europa, ainda andou, mas agora, não há Salazar que valha a isto. Olhe, é o Estado a que isto chegou!

Sofia até ali entretida a curtir com o namorado, meteu o bedelho, espicaçada pela troca de galhardetes:

-Ó senhor Pedroso, essa conversa é muito engraçada, mas agora, depois de as coisas acontecerem, é que vêm todos fazer diagnósticos da treta. Se fez isso pelos seus filhos é porque achava que era o melhor para eles, não era? Quer ver que fomos nós que pedimos para nascer?! Sem se pronunciar, Bruno concordava enquanto os clientes se entretinham a ver na televisão imagens dum atentado em Bagdad, aquilo sim era um problema sério, o nosso cantinho era sossegado, apesar de tudo. O Policarpo, deitando um olho para a papelaria, não chegasse algum cliente, alinhava com o Pedroso, velho amigo, ambos antigos juvenis no Sintrense:

-O Chico Pedroso tem razão. Os vossos pais estão à rasca para pagar a prestação da casa ou do carro, mas algum de vocês deixou de ir ao Sudoeste ou ao Rock in Rio? Agora até pegou moda irem para o McDonals ou para o shopping fazerem as festas de anos com os amigos, e nem sequer levam os pais, que é fatela. Mas para dar o dinheirinho, já não é. Em casa, é o que se sabe: mal falam com os pais, encafuados no quarto, a falar com os amigos na net, e só os conhecem para lhes sacar dinheiro para as saídas. Nós é que somos os culpados, facilitámos demais! E depois não sabem ouvir um não, que vem logo a chantagem emocional. O Júlio Machado Vaz no outro dia é que dizia e com razão: pai é para educar, não é o irmão mais velho! – um cliente entrou entretanto na papelaria e despediu-se até à bica do almoço - Até logo meus senhores, a ver é se vamos à Liga dos Campeões!

A aula das oito e meia estava a começar, Sofia e Bruno, contrariado e subindo as calças que caíam, lá foram a correr, a stôra de Francês era fixe, pelas onze iriam ao Pingo Doce comer uma fatia de pizza, que a comida da cantina não agradava, sopa e guisado com ervilhas, mandariam um kolmi ao Vasco para ir ter com eles ao jardim. A D. Palmira, empregada na câmara, chegando e apanhando o final da conversa, questionou a qualidade do ensino:

-Também gostava de saber porque é que passam a vida a dizer que esta é a geração mais qualificada. A minha Sónia está em Letras, e no outro dia veio-me perguntar quem foi o D. Quixote. Bom, fiquei para morrer. No meu tempo li esses livros todos no liceu, por obrigação é verdade, mas dá-me ideia que hoje há mais canudos que qualificações…

Despedindo-se, antes de ir processar mais umas penhoras, o Alcides ainda comentou já à porta:

-Esta malta de agora pensa que manda no país como manda na escola, a bater nos professores. Havia de ser comigo! Querem todos é tacho, trabalhar está quieto. O pior é que um dia destes vem por aí um iluminado qualquer e eles vão atrás, escrevam o que eu digo! Até logo, meus senhores! -e saiu, direito às Finanças, dois miúdos na mesa três pediam meias de leite, satisfeitos por uma aula a menos, faltara o professor de Matemática.