segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Em Reunião



FERNANDO MORAIS GOMES

Filipe Corujão acelerava a construção da casa em Janas, com a licença prestes a caducar, obras não eram a sua praia. Médico no Amadora-Sintra, viu-se embrenhado em desenhos e alvarás, a burocracia fazia qualquer um envelhecer. O arquitecto da Câmara, um tal Henriques, um caso sério para contactar, o telemóvel não atendia e sempre que ligava, diziam estar em reunião.

As alterações metidas no projecto já estavam executadas, mas a Câmara não aprovava. O Plano da Orla Costeira, a Rede Natura 2000, a certificação do ruído, tudo era preciso. O Conrado, empreiteiro de manhã e alcoólico à tarde, dizia-lhe que avançasse a construção, a obra não podia parar, tinha outra no Algarve para começar a seguir e se não fosse nessa altura não sabia quando poderia voltar. O projecto das alterações tinha dois meses na Câmara, mas ainda não saíra das mãos do arquitecto. Tentou uma reunião, telefonou para vários lados, tente mais tarde, era a resposta, que o senhor arquitecto foi almoçar. Um fiscal passou uma vez, a ameaçar embargo, as pesadas multas desaconselhavam aventuras.

Tentou ser recebido pelo arquitecto, não logrando senão uma marcação para daí a três semanas, a licença caducaria entretanto e o fiscal não deixaria de actuar. Impossível, muito trabalho, reuniões, faça uma exposição. Passados uns dias, a obra foi efectivamente embargada e o Conrado partiu para o Algarve, não sem apresentar a factura, a licença na melhor das hipóteses só daí a meses, depois de reduzida a volumetria e pagas taxas agravadas. Havia que ser paciente, com um pouco de sorte talvez em seis meses recomeçasse a obra.
O banco do Amadora-Sintra era uma montra violenta e desumana, rotineiro, o movimento de ambulâncias e sirenes, a música mais escutada na noite do hospital. Filipe estava de banco essa quarta-feira, preparado para mais um desfile de acidentados e aflitos. Comeu uma sopa no bar e avançou para o primeiro paciente, uma queda de motorizada, luxação, guia de marcha para o raio X. Logo a seguir, um choque frontal no IC-16, perto do Tribunal de Sintra. A vítima sangrava muito, o outro ocupante falecera e Filipe mandou avançar para a observação. O doente tinha hematomas e quase não falava, angustiadas, a mulher e filha acompanhavam-no.
Debruçando-se sobre o sinistrado, Filipe reconheceu o arquitecto da Câmara, o Alberto Henriques. Atordoado, o caso inspirava cuidados. Momentaneamente lembrou-se do processo e do embargo, ir-lhe-ia custar cinco mil euros, e bastaria ter pegado no processo uns dias antes. Depois dos exames e de medicado, recolheu ao internamento, os bombeiros entregaram à mulher uma pasta com papéis que se espalharam com o choque. Depois, informou a família, não corria perigo mas tinha para dois ou três meses.
Só dois dias depois o infausto arquitecto recuperou a consciência. Durante a visita matinal, reconheceu o médico, o da casa de Janas, entre o silencioso e o encavacado perguntou-lhe pelo seu estado:
-Há-de ir ao sítio, arquitecto. Com três meses de “estaleiro”…-respondeu, distanciado e profissional, agora com o arquitecto de “baixa” é que o projecto nunca mais seria aprovado.
Passadas duas semanas, o arquitecto teve “alta” e repousaria em casa, muletas três ou quatro meses e longe da Câmara. No dia em que saiu do hospital e ainda combalido, procurou Filipe por uma enfermeira, queria agradecer a assistência e prometer celeridade no processo. Iria telefonar a um colega para lhe dar andamento na sua ausência, os prazos tinham de se cumprir e era o dinheiro dos contribuintes que estava em jogo, afinal. Minutos depois, a enfermeira voltava, o senhor doutor pedia desculpa mas não podia receber o arquitecto, estava em reunião.

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