terça-feira, 26 de maio de 2015

O cofre

FERNANDO MORAIS GOMES

Passava das duas e meia da manhã quando Luís e Pedro saíram do Legendary, o bar junto à Câmara onde habitualmente se detinham a beber longas horas. Em frente, o torreão do edifício de Adães Bermudes vigiava um sonolento vigilante dormitava no átrio.
Respirando o ar quente dum inesperado outono, cálido e atípico, começaram a andar na direcção do edifício, a construção era elegante, construída em cima do cemitério de S. Sebastião, dizia-se, alguns asseveravam mesmo ouvir os mortos uivando em noites luarentas, em protesto pelo desaforo de erigir em cima de um local sagrado.
Segundo o velho Porfírio, fiscal reformado, a morar não longe do Legendary, nos anos trinta o filho de um Presidente da Câmara fora surpreendido pela noiva com uma amante no primeiro andar do torreão, e com uma faca de cozinha terá posto termo à vida de ambos. Só que nunca os corpos foram encontrados, tudo não passando de coisas do feitiço de Sintra, como, incrédulo, afirmava o Luís, pouco dado a histórias de fantasmas, não obstante durante o dia as impingisse aos turistas, entre flashes e selfies com o telemóvel. O calor da noite e os vapores do álcool levaram-nos a afoitar-se junto ao torreão, onde uma luz trémula parecia brilhar no primeiro andar, hoje ocupado por serviços, o Pedro sabia haver nessa sala um cofre onde em tempos se guardavam as receitas da Câmara, mas que há muito não era aberto, nem se sabia quem tivesse a chave.
Temerários, e movidos pela bebida, propuseram-se escalar o torreão, ante o olhar circunspecto dum gato que deambulava perto da Tasca do Manel. O vigilante dormia, quem sabe o tal cofre contivesse ainda algumas notas esquecidas, ou documentos de interesse sobre a história de Sintra, tão do agrado do Pedro.
Curiosamente, a luz trémula e fraca parecia aumentar de intensidade ao aproximar do edifício. Na ânsia de subir pela parede, Luís aleijou o nariz pontiagudo, ficando a sangrar um pouco. Alcandorando-se à janela, de fora tudo parecia normal, sem sinal de candeeiro ou candelabro, mas, curiosamente, o cofre estava entreaberto, não deixando contudo ver o interior.
Entraram. A sala era uma ampla divisão, com um pé direito grande e arejado, sobre as secretárias silenciosas dos funcionários que ali trabalhavam, papéis e fotos de Sintra espalhavam-se numa mesa. Ao longe, à porta do Legendary os últimos copos eram sorvidos por tipos cambaleantes, o Rui, professor de desenho, gesticulava e ensaiava poemas a Sintra, entre dois goles e abraços a um amigo a quem tratava no plural. 
Luís foi atraído pelo cofre cinzento e entreaberto,quem sabe um mini bar retemperador.Sobre uma secretária, Pedro deu de caras com um recorte de jornal dos anos trinta, relatando o desaparecimento do filho do então presidente e duma moça da Vila, até hoje ainda envolto em mistério. O Faias e o Parracho já tinham abordado o assunto nos jornais, mas sem conclusões palpáveis.
Curioso, Luís  aproximou-se do cofre com a porta encostada, e antes que lhe tocasse, uma mão esquálida vinda do interior agarrou-o pelo pescoço, logo desaparecendo com ele para dentro do cofre. Em pânico, Pedro reconheceu o rosto macilento do filho do antigo presidente, igual ao que o jornal na secretária retratava, desaparecendo com o atarantado Luís.
Precipitando-se para o cofre, donde exalava um  cheiro  nauseabundo a enxofre, ainda mal descortinava o buraco fundo por onde Luís e o vulto haviam desaparecido, quando uma mulher vestida de branco, lhe piscou o olho, surgida não se sabe de onde, logo o empurrando para o interior, e entrando atrás, fechando o cofre por dentro, e levando-o para uma cripta nos fundos do torreão, onde os mortos de S. Sebastião se deleitavam num festim, e Luís, com os olhos baços, se divertia, bebendo cidra com um esqueleto de mulher. Também Pedro, atónito, sentiu o corpo a transformar-se, os tecidos a encolher e a pele a ficar roxa. Olhou nos olhos a mulher que o agarrara, e identificou a amante do filho do presidente, ambos desaparecidos no torreão setenta anos antes e de cujo paradeiro ninguém mais ouvira. Foi a sua última visão, antes de definitivamente ficar cataléptico e dormente.
Na sala do cofre, de novo fechado, nada deixou antever a presença dos dois amigos, apenas a janela entreaberta que Diana, uma funcionária, na manhã seguinte atribuiu a esquecimento da empregada da limpeza. No Legendary, Joana, neta da noiva do filho do presidente, que entretanto casou com um industrial de Montelavar, sorria, enigmática, aviando as últimas cervejas e olhando para o torreão, de novo sepulcral e às escuras.
Ninguém mais voltou a ver os dois amigos, constando-se mais tarde que terão partido para um Erasmus em Barcelona, sem se despedir de ninguém. Coisas de Sintra...

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