Cumpriram-se,
no passado mês de Abril, catorze anos, sobre a data em que vim trabalhar para a
Serra de Sintra.
Julgo
que este é um momento auspicioso para iniciar a minha participação neste
“blog”. Por um lado, porque começo sob a égide do número 5 [1+4=5]; número
expressivo do “Homem Vitruviano” e ímpar, como se impunha… afinal, numero Deus
impare gaudet [1]… por outro, porque depois de todo este tempo ao serviço da
Serra, ela, magnanimamente, me permitirá já tecer considerações acerca do que
se vai passando em seus domínios.
Devo
confessar que tardei um pouco a aceder ao amável convite que me foi lançado, no
sentido de contribuir com algumas publicações para este “blog”. Desde logo por
me não considerar um homem das escritas mas, antes, movido por indómita
curiosidade, um pesquisador, mormente das coisas da História, e, porque
irremediável amante das palavras ditas, um contador de estórias…
Resolvida
essa questão, e porque me apraz verdadeiramente deixar-me conhecer por quantos
vão cruzando a minha vida, proponho começar a minha participação partilhando
com os leitores, em jeito de esquiço, alguns dos aspectos impressivos que têm
enformado o meu percurso sintrense e, bem assim, contribuído decisivamente para
a construção da pessoa que hoje sou.
A
Serra de Sintra sempre me encantou, como é aliás natural, e desde criança me
tinha cativo…
Mas,
nesse Abril de 2001, longe estavam já os tempos das tardes soalheiras rebolando
incessantemente pelo relvado de Monserrate, dos momentos mágicos passados no
aconchego nanico do Convento dos Capuchos, ou, já mais grandinho, das romagens
à Serra para presenciar o frenesim emocionante de máquinas e pilotos, nas
incomparáveis classificativas da Peninha e da Lagoa Azul, aquando da realização
rally de Portugal - que eu tentava mimetizar quando, depois de carta tirada e
sofrendo algum revés de amores, me atirava em alucinada condução pelas
tortuosas e estreitas estradas serranas, na tentativa desesperada de exorcizar
os meus cúpidos demónios…
A
coisa foi muito natural. Tendo terminado a realização de um teste, na
faculdade, da cadeira de “Paleografia e Diplomática II” – disciplina apaixonante,
mas que pode dar “água pelas barbas” – no momento em que, para relaxar da
tensão acumulada, fumava um cigarro no corredor (sim, na época ainda era
permitido fumar dentro da maioria dos edifícios), fui abordado por uma colega
de turma que me perguntou:
- Então, correu bem?
Ao
que respondi, como de costume:
- Não faço ideia, logo se vê…
Ambos
andávamos, havia anos, para concluir a dita disciplina e era a única em que nos
encontrávamos, pois seguíramos planos curriculares distintos; já que ela era de
História e eu de História da Arte.
Durante
uns minutos de conversa ocasional, perguntou-me se estava a trabalhar e em quê.
Eu respondi-lhe que fazia restauro de pintura mural e que, por isso, era uma
ocupação algo irregular. Disse-me que se encontrava, havia pouco tempo, a
trabalhar em Sintra, numa empresa de gestão de património recém-constituída, e
disse-me, além disso, que estavam a necessitar de pessoas com formação em
História, para realizar visitas guiadas nos espaços sob tutela. Deu-me o contacto
da pessoa a quem me devia dirigir, para a entrevista, e assim fui recrutado.
Sei,
agora, que esse momento da minha existência constituiu o início de um novo
ciclo, um renascer no seio da Mãe Serra, e que o meu berço foi o Convento dos
Capuchos.
Foi
ali, naquele humilíssimo reduto Franciscano, tão apartado da opulência dos
palácios reais e das mansões – nobres ou burguesas –, da lógica racional das
coisas, que aprendi a inestimável riqueza que se nos oferece a cada centímetro
deste mágico chão e a cada instante do nosso precário viver. Foi também ali
que, verdadeiramente, entendi o significado de um conceito abstracto e tão
debatido nos bancos da Universidade: o que era, afinal, o “espírito do lugar”.
Ali,
ou por estar ali, conheci mais profundamente alguns personagens notáveis da
nossa História. Conheci os “Castros” da Penha Verde e, de entre eles, o ilustre
varão D. João, Governador e Vice-rei da Índia, e, por seu intermédio, o
brilhante Pedro Nunes, Damião de Góis, Francisco d’Holanda, o Infante D. Luís,
esse desconhecido…
Todavia,
a aprendizagem mais substancial adveio do meu encontro com o legado espiritual
de Francisco de Assis, e as sementes da Devotio Moderna que disseminou na
cristandade do seu tempo, recuperado a posteriori, sem sofismas, pelos Capuchos
Arrábidos, na esplendorosa “menoridade” do seu existencialismo místico.
Por
eles, fui levado ao encontro do Crúzio Fernando Martins de Bulhões que, mais
tarde, se converteria no eloquentíssimo Frade Menor, o insigne pregador
conhecido como António de Lisboa, ou de Pádua – o que é indiferente, uma vez
que os santos são seres universais – e, igualmente, ao mui sábio São
Boaventura.
A
todos eles devo o entendimento mais perfeito daquilo que se designou como
Fraternidade Universal, no sentido Franciscano do conceito, da forma como ele
encontrou a sua expressão simbólica e ritualizada no Culto do Espírito Santo
(ou Paracleto) – idealizado pela culta e Santa Rainha, Isabel de Aragão –, que
os portugueses espalharam pelas sete partidas do mundo, preconizando, assim, o
Quinto Império…
Em
boa verdade, tudo isso foi somente o debutar da minha “iniciação” sintrense.
Concomitantemente, deparei-me com a agigantada e incontornável figura de D.
Fernando II, com o seu génio criador e com o modo como determinou aquilo que,
ainda hoje, é a imagem que retemos da Serra de Sintra… mas, isso, são outras
estórias…
[1] Tradução: “são gratos aos deuses os
números ímpares”, Virgílio, Bucólicas, 8, 75.
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