quinta-feira, 28 de maio de 2015

O meu "eu" sintrense- Parte I

NUNO MIGUEL GASPAR



Cumpriram-se, no passado mês de Abril, catorze anos, sobre a data em que vim trabalhar para a Serra de Sintra.



Julgo que este é um momento auspicioso para iniciar a minha participação neste “blog”. Por um lado, porque começo sob a égide do número 5 [1+4=5]; número expressivo do “Homem Vitruviano” e ímpar, como se impunha… afinal, numero Deus impare gaudet [1]… por outro, porque depois de todo este tempo ao serviço da Serra, ela, magnanimamente, me permitirá já tecer considerações acerca do que se vai passando em seus domínios.



Devo confessar que tardei um pouco a aceder ao amável convite que me foi lançado, no sentido de contribuir com algumas publicações para este “blog”. Desde logo por me não considerar um homem das escritas mas, antes, movido por indómita curiosidade, um pesquisador, mormente das coisas da História, e, porque irremediável amante das palavras ditas, um contador de estórias…



Resolvida essa questão, e porque me apraz verdadeiramente deixar-me conhecer por quantos vão cruzando a minha vida, proponho começar a minha participação partilhando com os leitores, em jeito de esquiço, alguns dos aspectos impressivos que têm enformado o meu percurso sintrense e, bem assim, contribuído decisivamente para a construção da pessoa que hoje sou.



A Serra de Sintra sempre me encantou, como é aliás natural, e desde criança me tinha cativo…



Mas, nesse Abril de 2001, longe estavam já os tempos das tardes soalheiras rebolando incessantemente pelo relvado de Monserrate, dos momentos mágicos passados no aconchego nanico do Convento dos Capuchos, ou, já mais grandinho, das romagens à Serra para presenciar o frenesim emocionante de máquinas e pilotos, nas incomparáveis classificativas da Peninha e da Lagoa Azul, aquando da realização rally de Portugal - que eu tentava mimetizar quando, depois de carta tirada e sofrendo algum revés de amores, me atirava em alucinada condução pelas tortuosas e estreitas estradas serranas, na tentativa desesperada de exorcizar os meus cúpidos demónios…



A coisa foi muito natural. Tendo terminado a realização de um teste, na faculdade, da cadeira de “Paleografia e Diplomática II” – disciplina apaixonante, mas que pode dar “água pelas barbas” – no momento em que, para relaxar da tensão acumulada, fumava um cigarro no corredor (sim, na época ainda era permitido fumar dentro da maioria dos edifícios), fui abordado por uma colega de turma que me perguntou:



- Então, correu bem?



Ao que respondi, como de costume:



- Não faço ideia, logo se vê…



Ambos andávamos, havia anos, para concluir a dita disciplina e era a única em que nos encontrávamos, pois seguíramos planos curriculares distintos; já que ela era de História e eu de História da Arte.



Durante uns minutos de conversa ocasional, perguntou-me se estava a trabalhar e em quê. Eu respondi-lhe que fazia restauro de pintura mural e que, por isso, era uma ocupação algo irregular. Disse-me que se encontrava, havia pouco tempo, a trabalhar em Sintra, numa empresa de gestão de património recém-constituída, e disse-me, além disso, que estavam a necessitar de pessoas com formação em História, para realizar visitas guiadas nos espaços sob tutela. Deu-me o contacto da pessoa a quem me devia dirigir, para a entrevista, e assim fui recrutado.



Sei, agora, que esse momento da minha existência constituiu o início de um novo ciclo, um renascer no seio da Mãe Serra, e que o meu berço foi o Convento dos Capuchos.



Foi ali, naquele humilíssimo reduto Franciscano, tão apartado da opulência dos palácios reais e das mansões – nobres ou burguesas –, da lógica racional das coisas, que aprendi a inestimável riqueza que se nos oferece a cada centímetro deste mágico chão e a cada instante do nosso precário viver. Foi também ali que, verdadeiramente, entendi o significado de um conceito abstracto e tão debatido nos bancos da Universidade: o que era, afinal, o “espírito do lugar”.



Ali, ou por estar ali, conheci mais profundamente alguns personagens notáveis da nossa História. Conheci os “Castros” da Penha Verde e, de entre eles, o ilustre varão D. João, Governador e Vice-rei da Índia, e, por seu intermédio, o brilhante Pedro Nunes, Damião de Góis, Francisco d’Holanda, o Infante D. Luís, esse desconhecido…



Todavia, a aprendizagem mais substancial adveio do meu encontro com o legado espiritual de Francisco de Assis, e as sementes da Devotio Moderna que disseminou na cristandade do seu tempo, recuperado a posteriori, sem sofismas, pelos Capuchos Arrábidos, na esplendorosa “menoridade” do seu existencialismo místico.



Por eles, fui levado ao encontro do Crúzio Fernando Martins de Bulhões que, mais tarde, se converteria no eloquentíssimo Frade Menor, o insigne pregador conhecido como António de Lisboa, ou de Pádua – o que é indiferente, uma vez que os santos são seres universais – e, igualmente, ao mui sábio São Boaventura.



A todos eles devo o entendimento mais perfeito daquilo que se designou como Fraternidade Universal, no sentido Franciscano do conceito, da forma como ele encontrou a sua expressão simbólica e ritualizada no Culto do Espírito Santo (ou Paracleto) – idealizado pela culta e Santa Rainha, Isabel de Aragão –, que os portugueses espalharam pelas sete partidas do mundo, preconizando, assim, o Quinto Império…



Em boa verdade, tudo isso foi somente o debutar da minha “iniciação” sintrense. Concomitantemente, deparei-me com a agigantada e incontornável figura de D. Fernando II, com o seu génio criador e com o modo como determinou aquilo que, ainda hoje, é a imagem que retemos da Serra de Sintra… mas, isso, são outras estórias…



 [1] Tradução: “são gratos aos deuses os números ímpares”, Virgílio, Bucólicas, 8, 75.

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