EURICO LEOTE
O vento irritado soprava intenso e
vigoroso. O homem teimoso insistia em cobrir com um oleado a lenha disposta em
camadas alinhadas e tranquilas.
As árvores com os seus ramos vergados
e torcidos gemiam, enquanto buscavam um abrigo impossível face à desolação que
as cercava.
Por detrás das vidraças uma criança
brincava olhando de tempos a tempos para o exterior, sobressaltada pelo troar
do vento.
O céu cobriu-se de negro o que levou
a criança a espreitar mais de perto, agora de nariz colado na vidraça. O bater
ruidoso e rápido das lágrimas caídas do céu, levou a criança a recuar num misto
de defesa e de susto, pelo inesperado da cena. Uma luz forte que por breves
momentos surgiu, anunciou um forte ribombar que estremeceu toda a casa, pelo
que o salto dado pela criança, seguido de uma rápida corrida para junto de sua
avó sentada no seu canapé, apostada em dar vida a um par de meias, fundiram-se
numa só acção.
Uma vez aninhada junto da avó e
perante a tranquilidade desta, a criança serenou regressando às suas
brincadeiras. O dia deu rapidamente lugar à noite e as luzes da casa surgiram
de pronto acesas pela atenta serviçal que era dona de toda aquela casa, uma vez
que era ela que punha e dispunha, procurando sempre ir ao encontro das
necessidades de avó e neto, aos quais era dedicada.
A entrada do Inverno fazia-se assim
anunciar, contrariando algumas previsões, e augurando a saída do período de
seca que até então a população da aldeia havia sentido, e pela qual passara nos
últimos meses, com fortes problemas e dificuldades para plantas e animais. A
população da aldeia apesar de ver secar a água nas suas torneiras, conseguiu
ultrapassar a situação e a carência de água recorrendo a cisternas e poços
comunitários providenciais. A aldeia embora pequena era auto suficiente pois
possuía igualmente um forno comunitário de onde se elevava um cheiro
reconfortante e doce, especialmente quando se faziam os bolinhos típicos de
mel, ou quando se assavam batatas doces.
Um moinho agora com as suas pás
travadas e as respectivas mós paradas, não fora o vento mandar tudo pelos ares
e estragar o engenho, era responsável pela moagem dos cereais usados na
confecção. Do milho ao trigo usado pelo homem a outras farinhas utilizadas na
alimentação do gado, tudo era triturado por aquelas mós já gastas pelo tempo,
onde o Sr. José com o seu saber gosto e esforço se empenhava em manter a
funcionar, consciente da importância do mesmo para toda a aldeia.
A avó com os seus óculos na ponta do
nariz, acabara de compor a meia e jogava agora a mão a uma peça de roupa do
menino, de onde se soltara um botão cansado de estar sempre no mesmo lugar, e
que de vez em quando espreitava da sua casa.
A avó era a tranquilidade em pessoa,
trabalhando com os seus gestos lentos mas eficientes e perfeitos, pois a pilha
de roupa já composta e reparada ía ganhando altura no tabuleiro. De ali
seguiria para as gavetas da cómoda e do roupeiro, levadas e arrumadas pela
Carlota. Era bonita a avó apesar da idade que aparentava e das rugas que
sulcavam a sua cara. Os óculos de aro de tartaruga balançando na ponta do seu
nariz conferiam-lhe um ar de pessoa sapiente, meiga e amiga. Volvidos vários
anos e após ter criado o filho, cabia-lhe agora e ainda tomar conta do neto.
Não que isso lhe não desse prazer. Sempre se sentia mais acompanhada, e as
correrias e diabruras da criança ajudavam a preencher os espaços da casa e a
quebrar os silêncios que em nada ajudavam a passar o tempo, em quanto aguardava
que os seus filhos como os tratava, regressassem de outras paragens para as
quais foram compulsivamente atirados face à impossibilidade de encontrar
trabalho dentro de portas. Este era um panorama generalizado por todo o país,
com os jovens a sair em busca de trabalho e buscando a independência, cansados
de viverem debaixo do mesmo tecto com os pais e os irmãos. Há uma altura para
tudo, e por muito que custem os cortes e separações, é preciso partir em busca
de realização pessoal. As saudades serão mitigadas dentro do possível e sempre
que surjam as oportunidades.
Agora mais tranquila a criança e
passada que fora a borrasca, regressou à janela para ver recolher a casa e de
enxada às costas o homem teimoso que conseguira vencer por agora o vento, e
cobrir a sua lenha para a manter seca para os tempos mais frios que se aproximavam.
Lançou um adeus à criança que por detrás da janela e a coberto da intempérie
assistia ao que se passava no exterior. A criança timidamente correspondeu
reconhecendo de pronto e a coberto do capote o Sr. António que por vezes
aparecia lá por casa para dar um jeito no jardim. Sorriu, e agora sim
manifestou toda a sua simpatia com um aceno mais violento e contínuo. O Sr.
António sorriu igualmente e afastou-se no seu passo permitido pelo ainda forte
vento que se instalara, e que de acordo com as previsões viera para ficar toda
a santa semana.
O acalmar da chuva trouxe à rua o
cachorro do Sr. Filipe, animal meigo que se mantinha normalmente por aqueles
lados, recebendo as carícias dos vários amigos que por ele passavam. Era vê-lo
deitado dormitando ou de orelhas à escuta, atento aos ruídos e à vizinhança.
De dentro a voz soou trazendo o
menino à realidade. Chamavam-no para ir tomar o seu lanche. Menino em idade de
crescer precisa de estar bem alimentado dizia a avó. Até porque tinha contas a
dar aos pais, quando estes aparecessem, ainda que por um curto período de
tempo. Não estavam ainda criadas as condições que permitissem o retorno, e
estava fora de causa fazer deslocar o menino para um outro meio mais hostil,
onde a língua seria indubitavelmente uma forte barreira ao crescimento e
desenvolvimento. Pelo menos assim o pensavam os pais, que estavam de comum
acordo nesta matéria.
Por vezes o silêncio da casa era
perturbado por suspiros mais profundos da pobre senhora, que sentia o peso da
responsabilidade. Acontece que os anos não perdoam, e uma pobre velha tem
dificuldade em criar uma criança, a qual necessita do convívio de outras
idades, e de ter por perto os pais, para ser criada de acordo com os padrões e
exigências familiares.
A aldeia era o espelho do país no
tocante à constituição da população. Os muito novos e os muito velhos como ela,
o Sr. António, o Sr. Filipe e a tia Maria que sempre viveram agarrados à terra
e aos animais. Os braços produtores e as cabeças sãs e instruídas haviam
emigrado em busca de trabalho que mitigasse a fome e permitisse uma satisfação
pessoal, uma lufada de ar e uma esperança no futuro, em oposição a um país
moribundo, cheio de velhos do Restelo, sem uma visão globalista, antes pelo
contrário fechada e monolítica. Haviam de regressar um dia. Essa era a
esperança e o sonho que os mantinha longe e ao mesmo tempo tão perto.
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