Introdução
No presente ensaio defenderei que a
existência de Deus é compatível com a existência do Mal. O argumento que
apresento para fundamentar a minha posição pode ser apresentado da seguinte
forma: (P1) O Deus Teísta* existe; (P2) Deus* criou o Homem; (2.1) A criação do
Homem resulta da acção criativa de Deus*; (P3) O mal existe; (P4) O mal
é livremente praticado pelo Homem; (P5) O mal é resultado da criação
realizada por Deus*; (C) A existência de Deus* e do mal são compatíveis.
Começarei por clarificar algumas
noções conceptuais como Deus*, bem, mal e compatibilidade, procurando
reformular a abordagem clássica ao conceito de suma bondade divina. Analisarei,
em seguida, cada uma das premissas do argumento que proponho, tratando, como é
natural, ao longo do ensaio, o chamado Problema do Mal – outras formulações
deste problema são também, de modo geral, conhecidas, como o famoso Problema
Lógico do Mal, desenvolvido por Alvin Plantinga.
O meu objetivo último é provar que a
existência de um Deus* sumamente bom e a indexação de mal (natural ou
moral) à sua criação não apresentam qualquer tipo de incompatibilidade lógica,
e portanto, que a existência de Deus é compatível com a existência do mal.
Clarificação Conceptual
Deus Teísta*, Bem e Mal
A que Deus nos referimos quando
afirmamos que a sua existência é compatível com a existência do mal?
O asterisco que acrescento a Deus
Teísta* denota uma ligeira modificação na forma como apresento este conceito.
Por Deus* referir-me-ei, ao longo do ensaio, ao tradicional Deus Teísta
ou Deus dos Filósofos, omnipotente, omnipresente, omnisciente e sumamente bom*.
A modificação que introduzo tem precisamente que ver com a noção de suma
bondade divina. Começarei, portanto, por clarificar esta última noção, que me
parece ser o mais problemático ponto de análise no argumento que proponho para
a compatibilidade de existência entre Deus* e o Mal.
Porquê, então, este peculiar asterisco?
O Deus Teísta assume tradicionalmente as três caraterísticas supramencionadas
(omnipotência, omnisciência e omnipresença), acrescentando-se-lhe a suprema
bondade. O meu argumento pressupõe uma reconfiguração ou diferente abordagem ao
conceito de suma bondade divina – ou perfeição moral – e por isto mesmo
me referirei ao Deus Teísta* e não ao Deus Teísta, sem ter, contudo, claras
certezas se a reformulação desta qualidade altera significativamente o impacto
do argumento apresentado.
Para a consistência da posição que
defendo, considerarei que as proposições (a) Deus Teísta é sumamente
bom., e (b) Deus Teísta é moralmente perfeito., são equivalentes,
utilizando-as, ao longo deste ensaio, como sinónimos. A abordagem corrente ao
problema da compatibilidade de existência entre Deus e o mal adultera
confusamente as noções preliminares de suma bondade e perfeição moral
aceitando gratuitamente que as valorações morais divinas correspondem
necessariamente às valorações morais humanas, e, portanto, indexando à ação-divina
e à ação-humana a consideração de que existem conceitos morais idênticos
partilhados por uma e outra entidades. Apenas deste modo se torna possível
afirmar-se, contrariamente ao que aqui argumentarei, que ser-se “sumamente bom”
ou “moralmente perfeito” é ser-se necessariamente benevolente.
Argumentando contra esta
consideração, afirmo que um tipo de Deus sumamente bom ou moralmente perfeito
não é necessariamente um Deus benevolente. Para compreendermos esta posição,
temos, antes de mais, de conceptualizar bem e mal, termos com que
trabalharemos ao longo do ensaio.
A que mal nos referimos, então,
quando afirmamos que a existência de Deus* é compatível com a existência do
mal?
Considerarei que mal corresponde
a determinado fenómeno que resulte nalgum estado-de-coisas indesejável por
determinado sujeito. Inversamente, considerarei que bem corresponde
a determinado fenómeno que resulte nalgum estado-de-coisas desejável por
determinado sujeito.
Tomarei, assim, mal e bem como
conceitos antagónicos, mas não mutuamente exclusivos, com relativa autonomia.
Existindo Deus* e o Homem, estes poderão, naturalmente, tecer considerações
morais inversas sobre um determinado fenómeno – por simples exemplificação: o
que é bem para Deus* pode ser mal para o Homem e vice-versa, em
relação a determinado fenómeno – sem que uma delas esteja objetivamente errada
ou certa.
Seja a dor e um fenómeno em S.
a é mal para S se, de a resultar, por parte de S, o desejo
da sua extinção. Assim se segue necessariamente que a extinção de a é
bem para S. O argumento segue, assim, as seguintes ordens:
(P1) a é um fenómeno em S.
(P2) S considera a indesejável.
(C) a é mal para S.
E, ainda,
(P1) a é um fenómeno em S.
(P2) S considera não-a desejável.
(C) Não-a é bem para S.
Considerarei que a perfeição moral ou
suma bondade atribuídas ao Deus* que consideramos consistem na prática
inexorável 1 das ações que o próprio deseje, e que são, portanto, bem-para-Deus.
Necessariamente se segue que, não praticando o que deseja – ou, como considero
neste contexto, toma por bem -, Deus* pratica mal. Esta não parece ser,
numa abordagem inicial, uma possibilidade considerável, dada a incapacidade
divina de atualização de um mundo não correspondente às suas qualidades. Se
Deus* pratica mal, não é sumamente bom, e portanto, não é o Deus* a que nos
referimos. Daqui necessariamente se segue que Deus* não pode contrariar as suas
qualidades particulares na atualização de um qualquer mundo, possível ou atual.
Há, contudo, que clarificar o ponto a
que tento aqui chegar. Entendendo a suma (ou suprema) bondade (ou perfeição
moral, etc) como condição fundamental da ação divina do Deus* que
consideramos, a tendência para a prática do bem é inalienável, uma vez
que por esta caraterística tradicionalmente atribuída ao Deus Teísta se
considera uma ação tendencialmente orientada para o bem
– ao que é desejável para a entidade praticante . Indo (ou agindo) contra esta caraterística, não é deste Deus* (do Deus Teísta) que falamos, e o problema não se põe. O que aqui tento demonstrar é que, em primeiro lugar, o bem veiculado nesta suma bondade não é necessariamente o bem-para-o-Homem, mas o bem-para-Deus. Assumo, portanto, aqui, uma perspetiva moral plenamente relativista.
Desta perspetiva não se segue que as
ações morais praticadas por Deus* sejam as absolutamente corretas, mas sim, que
a sua suma bondade, i.e., a incapacidade de praticar outras ações que
não as que convirgam moralmente com as suas orientações éticas, são as ações
morais efetivas, do ponto de vista do sujeito praticante – de Deus* - e não dos
sujeitos diretamente afectados pela ação praticada. Naturalmente, este tipo de
raciocínio é igualmente aplicável à ação moral humana – o que é bem para
Deus* pode ser mal para o Homem; o que é mal para o Homem pode
ser bem para Deus.
O argumento que proponho para a
compatibilidade lógica entre a existência de Deus e o do mal poderá apenas ser
considerável se se verificar que o Homem, que considero ser o agente executor
do mal, ainda que criado, age livremente. A premissa 4 do argumento – O mal é
livremente praticado pelo Homem – não só afirma isto mesmo como é uma condição sine
qua non para que possamos considerar verdadeiramente este relativismo
moral. Se há possibilidade de livre ação, há possibilidade de erguimento de
posições morais particulares, não atingíveis se a ação fosse totalmente
determinada e seguisse padrões morais necessariamente impostos.
Alguns argumentos contra a
compatibilidade de existência mútua de Deus e do mal assumem que, considerando
como dado adquirido a existência do mal (moral - doenças, genocídio -,
ou natural - desastres naturais -) se anula quase automaticamente a
possibilidade de existência de um Deus sumamente bom. Note-se que é este
conceito de suma bondade, o que pressupõe que a bondade divina segue
necessariamente o que o Homem considera por bem – e, portanto, a que considera
suprema bondade e benevolência como sinónimos - a que veementemente rejeito.
Afirmar que Deus Teísta* é sumamente
bom é, na minha ótica, afirmar que Deus Teísta* age de acordo com a sua própria
moralidade, ou seja, necessariamente seguindo o que considera ser bem e mal.
Afirmar que o bem praticado por Deus Teísta* tem de corresponder
necessariamente ao bem humanamente considerado é afirmar infundadamente
que toda a ação que resulte em prazer divino tem, também, de resultar em prazer
humano, e vice-versa, anulando a independência moral dos agentes e
absolutivando as fundações éticas da sua ação.
Inversamente, afirmar que Deus
Teísta* é benevolente é afirmar que esta entidade age de tal modo que
proporcione para S aquilo que S toma por bem. Seja X um indíviduo que
considera que viver é bem [ou que preservar a vida é objetivamente bom]
e matar é mal [ou que matar é uma ação fundamentalmente má] e Y um
indivíduo que considera que matar é bem [ou que matar é uma ação
moralmente admissível] e viver é mal [ou que preservar a vida não é
necessariamente uma ação melhor do que matar]. X é benevolente se, trespassando
as suas próprias conceções morais, agir para Y segundo aquilo que Y considera
por bem. Y é, também, benevolente se, trespassando as suas próprias
conceções morais, agir para X segundo aquilo que este último toma por bem.
X é sumamente bom ou moralmente perfeito se agir de acordo com aquilo que são
os princípios da sua ética individual. O mesmo se toma para Y.
Ora, em última análise, a ideia de
que o bem praticado por Deus Teísta* tem de corresponder necessariamente
ao bem humanamente considerado não é compatível com a possibilidade de
Homem ser livre e capaz de orientar moralmente a sua ação de modo autónomo.
Havendo liberdade de ação, há liberdade de valoração moral, e portanto, a ação
não se regerá por qualquer tipo de padrão moral determinado e rígido. Se sou
livre e delibero sobre as minhas ações, adotarei valores morais – uma diferente
conceção de bem e mal – diferentes daqueles que adotaria não o
sendo, ou seja, estando inexoravelmente condenado a agir segundo determinados
padrões impostos.
O livre-arbítrio, isto é, a
possibilidade humana de agir (e escolher agir) de forma autónoma no meio,
adequando individualmente a ação que se pretende efetivar, é a via pela qual
podemos compreender que o bem veiculado na suma bondade divina
não é necessariamente o bem-para-o-Homem, mas o bem-para-Deus, e que considerar
que a benevolência divina deve corresponder rigidamente à atualização de
estados do mundo que resultem num saldo positivo para o Homem – bem moral
humano – é absolutivizar as relações morais entre Deus* e o Homem. A
possibilidade de livre-arbítrio resulta, em último caso, na capacidade de
progressiva alteração dos padrões morais segundo os quais determinada ação é orientada.
Não há, portanto, a considerar-se plausível afirmar que o homem delibera
autonomamente e age, por força dessa mesma deliberação e consequente escolha
autonomamente realizadas, de forma livre, razões para considerarmos que os
padrões morais divinos não têm de seguir os padrões morais humanos, uma vez que
estes, não se submetendo aos ditames de uma ação não-livre e que se paute
apenas pelo natural seguimento de uma cadeia de ocorrências deterministas,
podem ser totalmente modificados. Por esta razão, vejo uma diferença
circunstancial entre considerar que Deus* é sumamente bom ou moralmente
perfeito e considerar que esta mesma entidade é benevolente,
conceito demasiadamente vago e indefinível (e nem sequer referi a normalmente
considerada “infinita benevolência”).
A consideração de que um Deus*
sumamente bom não pode, de modo algum, criar mal no mundo tem, na maior parte
dos argumentos apresentados a favor desta posição, um desfecho comum: a
afirmação de que reformular o nosso posicionamento face às qualidades
particulares desta entidade é anular a possibilidade lógica de existência das
duas entidades em análise. Segundo esta ótica, considerar que a existência de
um Deus* sumamente bom, omnipotente, omnisciente e omnipresente, não é
compatível com a existência do mal, é assumir como única conclusão possível a
impossibilidade de existência desta entidade.
Não se tende a considerar, assim, a
substituição deste tipo de Deus por um outro que, de algum modo possibilite a
sua coexistência com o mal ou a possibilidade de reformulação de uma das
qualidades particulares desta mesma entidade. Ora, este tipo de posicionamento
peca por considerar de forma demasiadamente rígida as qualidades em análise.
Reconheço abertamente que esta é uma
das vias centrais através das quais me poderão ser tecidas contra-argumentações
diretas, no entanto, não vejo nas alterações que proponho uma diferenciação
significativa entre o conceito de Deus* abordado e o do clássico Deus Teísta.
Aponto, sim, uma alteração necessária na tradicional forma analítica de
conjugação das noções de suma bondade, perfeição moral e da
necessidade de considerar como equivalentes o que é mal-para Deus* e o
que é mal-para o Homem. Isto é não mais que reformular noções que devem
estar abertas à reformulação justificada, pois que a rigidez dogmática com que
muitas vezes são encaradas impossibilitam o avanço de alguns merecedores de
análise.
Convém ainda referir que, por
omnipotência divina considero (a) a capacidade de tornar real qualquer estado
logicamente possível de coisas**., e não (b) a capacidade de tornar real
qualquer estado de coisas., ou (c) a capacidade de tornar real qualquer estado
fisicamente possível de coisas. Assim, a entidade considerada é incapaz de, por
exemplo, criar um triângulo com quatro lados – integrando a alínea (a) e
rejeitando as alíneas (b) e (c).
Parece-me ser aqui esclarecedor
intercalar brevemente (a) com a possibilidade de Deus* praticar mal, prática
esta que intuitivamente nos parece contraditória com a sua suma bondade, como a
defino (“a incapacidade de praticar outras ações que não as que convirgam
moralmente com as suas orientações éticas, i.e., com o que deseja”).
Considerando (a), assumo que a compatibilidade entre a existência de Deus* e do
mal não poderá admitir contradições entre as qualidades particulares do Deus*
considerado e a sua efetiva existência conjunta com o mal, como o definimos.
Considerar (b) implicaria admitir um
mundo possível em que Deus* necessariamente seria capaz de superar o alcance de
aplicação das suas próprias qualidades, isto é, por exemplo, ser capaz de,
sendo sumamente bom, agir contra as implicações da sua qualidade, o que
implicaria uma contradição explícita. Esta posição resolveria facilmente o
problema em questão. Se (b) então Deus* tem de ser capaz de existir
compativelmente com o mal, sejam quais forem as suas qualidades e as
implicações de aplicação das mesmas, pois que, não havendo limites lógicos,
todas as perspetivas seriam toleráveis.
Compatibilidade
Convém, assim, clarificar a que nos
referimos quando afirmamos que a existência de X é compatível com a existência
de Y. A existência de X é compatível com a existência de Y (e, portanto, a
existência de Y compatível com a existência de X) só e apenas se a existência
de um dos singulares considerados [x V y] não compromete a existência do outro.
A existência de uma cadeira é compatível com a existência de um sofá porque
ambos os conceitos utilizados [cadeira ˄ sofá] se referem a entidades
diferentes, passíveis de serem consideradas individualmente sem mutuamente se
excluírem, não havendo nenhuma contradição direta entre estes dois termos.
Dizer que uma mesma entidade é, ao mesmo tempo, azul e vermelha,
tem de ser, nesta ótica, desconsiderado, uma vez que as qualidades de ser-se
azul e ser-se vermelho são fenómenos cuja ocorrência simultânea numa
mesma entidade é logicamente impossível.
Penso ser aqui necessário distinguir
pontualmente a compatibilidade existencial de entidades físicas e de entidades
metafísicas, situando fenómenos como Deus* e mal nesta rede conceptual. As
entidads metafísicas aqui abordadas têm uma forma puramente referencial, sendo
desfazadas de uma representação física que nos assegure, pelo menos
indutivamente, que não há mútua exclusão entre os termos abordados, pois é este
o caso que tratamos, uma vez que lidamos com dois conceitos abstratos, Deus e
mal.
A compatibilidade de existência aqui
discutida não se prende com as ocorrências físicas que os precedem ou a partir
das quais os conceitos que abordamos se constroem, mas sim destes últimos.
Assim, ainda que mal como o que é indesejado por determinado sujeito
corresponda, fisicamente, à dor que determinado sujeito sente, causada por
determinada entidade física, a comptabilidade que aqui analisamos não se prende
com este tipo de fenómenos particulares, centrando-se, antes, na análise das
relações entre as entidades conceptualizadas (Deus*; mal), bem como das
relações partilhadas entre as suas qualidades particulares.
Dizer que a existência de Deus* é
compatível com a existência do mal é, assim, afirmar que a existência de uma
destas entidades não compromete, exclui ou impede a existência da restante. A
compatibilidade de existência entre Deus e o mal terá, assim, de preencher os
seguintes requisitos:
(a) não haver contradição direta
entre os conceitos de Deus e Mal;
(b) a existência de Deus não
condicionar a existência do Mal;
(c) a existência do Mal não
condicionar a existência de Deus.
Parece-me que o argumento que
proponho para a resolução da questão que abordamos segue esta ordem lógica.
Argumento central:
(P1) Deus existe. [axioma 1]
(P2) Deus criou o Homem. [axioma 2]
(2.1) A criação do Homem (estrutura)
resulta da acção criativa de Deus (estruturador).
(P3) O mal existe. [axioma 3]
(P4) O mal é livremente praticado
pelo Homem.
(P5) O mal é resultado da criação
realizada por Deus.
(C) A existência de Deus é compatível
com a existência do mal.
Primeiramente, devemos questionar: o
que é algo – um argumento - logicamente inconsistente? Como afirma James Beebe,
um conjunto de afirmações é logicamente inconsistente se e apenas se:
(a) o conjunto de afirmações inclui
uma contradição na forma p & não-p;
(b) uma contradição direta pode ser
deduzida do conjunto de afirmações.
Note-se que, à primeira observação,
as premissas (4) e (5) poderão sugerir uma contradição direta. Abordarei de
seguida cada uma das premissas do argumento que apresento, tentando provar que
não existe nenhuma contradição nas suas relações.
Os termos de trabalho utilizados, como
é caso dos conceitos de Deus* e mal clarificados no início da análise, são
necessários precisamente na medida em que não é intuito deste ensaio abordar
longamente o problema da existência de Deus e das suas qualidades. Por isto
mesmo, repito, tratamos aqui a noção clássica do Deus Teísta, salvaguardando a
conceção da sua suma bondade que procurarei reconfigurar.
As premissas (1) e (2) são axiomas
fundamentais do raciocínio que proponho. Se não assumirmos a existência de
Deus, resta-nos afirmar logicamente que qualquer manifestação de mal no mundo é
da total responsabilidade do agente que a efetiva, do Homem, ou de eventos
naturais [mal humano VS mal natural], mantendo Deus e Homem a sua
inteira autonomia conceptual, ou seja, não existindo qualquer tipo de relação
entre estas duas entidades. A questão da compatibilidade de existência entre
Deus e o mal fica, assim, simploriamente respondida.
O meu argumento parte, assim, do
pressuposto contrário. Por isto mesmo afirmo que o Deus Teísta* existe e que é
ele o agente criador do Homem (e do cosmos). Da premissa (2) segue logicamente
o acréscimo (2.1). Afirmo que Deus* e Homem assumem uma relação de
estruturador-estrutura. Tal como o arquiteto projeta o prédio, tal como o
relojoeiro projeta o relógio, tal como o ensaísta projeta o ensaio, Deus*
projeta o Homem. A diferença de projetos entre entidades passíveis de escolher
totalmente o futuro dos seus projetos e a criação divina é que,
presumivelmente, Deus* não terá possibilidade de atualizar o mundo – e, portanto,
a sua própria criação – de um modo que vá contra as suas próprias qualidades
absolutas.2 Isto significa que não poder agir contra o que o próprio deseja,
pois que, sendo sumamente bom, terá de agir em conformidade com o que toma
autonomamente por bem.
O raciocínio rápido que daqui podemos
inferir é que, sendo a criação divina perfeita e indo de acordo com as suas
próprias caraterísticas particulares, criando Deus* o Homem que é ele mesmo um
ser ativo na prática do mal (que afirmo ser, aqui, o mal-para-o-Homem),
Deus* deseja (ou planeia, para caírmos afirmarmos menos tendenciosamente)
indiretamente a ocorrência dessas mesmas ações (e que podem ser, aqui, bem-para-Deus).
Deus* pode ser, assim, sumamente bom – agir total e inexoravelmente de acordo
com aquilo que toma por bem – despoletando indiretamente no mundo, por
via de uma criação a que ofere
livre-arbítrio (o Homem), aquilo que ela mesma tomará por mal, mas que pode,
naturalmente, assim não ser objetivamente considerado.
Admite-se, portanto, que o Homem é
parte do projeto divino e que o projeto divino implica deliberação, uma vez que
a criação não é apenas uma atualização espontânea que parte das qualidades
rigidamente estabelecidas de Deus*. Dentro do espólio das suas próprias
qualidades, tem de haver espaço de deliberação, uma vez que há diferentes graus
de possibilidade de atualização de um mundo que vá de encontro com as suas
caraterísticas – há bens maiores e bens menores, há diferentes tipos de criação
de estruturas que respeitem a suma bondade divina, etc -. Tendo em conta
que defini mal como determinado fenómeno que resulte na menor quantidade
de bem possível e inflita dor a determinada entidade, e que facilmente
encontramos casos explícitos de existência de mal no mundo – o genocídio
judaico, doenças mortíferas, fome, etc -, é plausível considerarmos que (3) o
mal existe.
Temos necessariamente de supor a
liberdade do Homem para advogar que o mal manifestado no mundo é da sua inteira
responsabilidade?
Uma resposta positiva a esta questão
terá necessariamente de assumir que, para que o mal seja da inteira
responsabilidade moral do ser que a pratica, neste caso, o Homem, este tem de
ser livre. Ser livre é, aqui, ter a capacidade de deliberar e escolher o rumo
da sua ação. Uma resposta negativa a esta questão terá necessariamente de
assumir que o mal pode ser da inteira responsabilidade moral do ser que a
pratica, neste caso, o Homem, ainda que este não seja livre. Não ser livre é,
aqui, não ter a capacidade de deliberar e escolher o rumo da sua ação.
A última hipótese parece quase
intuitivamente falsa. Isto é, (a) não ser livre e (b) ser moralmente
responsável pela ação praticada, não parecem ser condições correlacionáveis.
Afirmando (4), que o mal é livremente praticado pelo Homem, não podemos omitir
que a própria estrutura-
Homem é, como afirmado em (2), parte
da criação divina; é, portanto, projetada. A não existir um Deus* estruturador
omnisciente – e que, pela sua omnisciência necessariamente tenha de conhecer os
possíveis desfechos da concessão de livre-arbítrio ao Homem -, poderíamos
advogar inteiramente a responsabilidade da prática do mal ao Homem.
Considerando-se que o Homem-estrutura
é o resultado de um plano maior, de uma arquitetura (ou de um comumente
afirmado inteligent design) efetivada por um Deus-estruturador, penso
ser admissível afirmar que o mal despoletado no mundo pelo Homem é um espelho
da ação criativa da divindade, e portanto, considerando centralmente a sua
omnisciência, da sua responsabilidade.
O facto de (P4) o mal ser livremente
praticado pelo Homem, uma vez que se considera a concessão de livre-arbítrio ao
Homem no processo de criação divina, e portanto, que este tem capacidade para
autonomamente deliberar e escolher agir de forma individualizada ainda que o
livre-arbítrio a que nos referimos seja (1) concedido por Deus*-estruturador,
parte da sua vontade criativa e (2) razão fundacional da existência de mal,
encaminha-nos à constatação de que (P5) o mal é resultado da criação de Deus*.
O problema do mal prende-se com a
incapacidade de conciliação da existência do Deus classicamente considerado e
do mal experienciado no Mundo, e assume a seguinte forma lógica:
(1) Deus é omnipotente
(todo-poderoso).
(2) Deus é omnisciente (totalmente
conhecedor).
(3) Deus é sumamente bom.
(4) O Mal existe.
Considerando (a) que Deus* existe e é
Ele o criador do Homem, (b) que a ação criativa de Deus* pressupõe deliberação
e não pode contrariar qualquer das suas caraterísticas individuais, (c) que o mal
existe no mundo e que é livremente causado pelo homem – e daqui se infere que o
homem possui livre-arbítrio, ou a capacidade para agir livremente, (d) que,
sendo esse mal colocado em prática por uma estrutura criada e que, possuindo o
estruturador (criador da estrutura) omnisciência ou total conhecimento das
potencialidades da estrutura que cria, o mal praticado no mundo é resultado
indireto da criação de Deus* - o homem -, somos forçados a considerar
não existir uma contradição entre as afirmações apresentadas.
Afirmo ser, portanto, possível, que
Deus* seja omnipotente – como afirmado, tendo a capacidade de tornar real
qualquer estado logicamente possível de coisas -, omnisciente, sumamente
bom – como afirmado, agindo de acordo com a sua própria moralidade, ou seja,
necessariamente seguindo o que considera ser bem e mal – e que o mal exista
compativelmente com a existência divina, sem que exista entre estas qualidade
uma incapacidade de conciliação.
Considero, portanto, que a existência de Deus* e a existência do mal são perfeitamente compatíveis.
2.Ver, reitero, The Free-Will Dilemma: On Human and Divine Freedom and The Existence of God, de John Peloquin
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