domingo, 27 de dezembro de 2015

Fim de Tarde

FILOMENA MARONA BEJA



      Eram quatro cadeiras e uma mesa.

     Era um sofá e, em frente, o aparelho de televisão.

       Era a sala.



     Na sala, ela passava a maior parte do dia. Almofada ao canto do sofá, caneca ao lado.

     Olhava o tecto, olhava as paredes. A mancha de humidade ao lado da janela, a mosca que se fora enredar numa teia de aranha.

     Ninguém para contar o que não acontecia. E as horas, umas atrás das outras.



     Um golo de café.

     Na lembrança, uma campainha a marcar o intervalo de dez minutos que parava a oficina. Deixavam-se as mesas de corte, as máquinas de costura. Corria-se para os sanitários.

     “Despacha-te!”

     “Estou aflita...”

     “Aflita!”

     “Olha... adiantou-se-me a coisa, este mês!”

     “Antes isso...”

     “...antes isso!

     A água remoinhava, as portas batiam. E já se estava na fila diante da máquina das bebidas.

    De copo na mão, tornava-se ao giz e às tesouras. Às máquinas que juntavam, cosiam, rematavam.

     Por quanto tempo, até à saída do turno?



     Era ele quem saía, de manhã, para fazer as compras. Trazia o pão, a hortaliça, alguma fruta, algum peixe.

     Carne? Quase nunca.

     “Faz melhor não comer”, dizia. “ E ao preço que está...”

     Era ele quem governava o que ambos recebiam de reforma.

    “É pouco, e tem de ir chegando...”

     Quando ele voltava da rua, ela ia para a cozinha. Fazia a sopa e amanhava o peixe, se havia peixe.

    “Já quase não sei assar um frango!” – dizia, às vezes.

     Entrecosto? O que levava de tempero? E fritar, como se fritava?

     Ao passar do meio-dia, punham a sopa na mesa e comiam.

     Depois, ela levantava-se e lavava, arrumava os pratos. Voltava para o canto do sofá.

     Outro golo de café.

     E, se precisava dar algum ponto, ia buscar o dedal, agulha e linhas.



     Guardava a caixa da costura no móvel da televisão.

     Armário em madeira, baixo, de um modelo que se usara muito noutro tempo.

     “Estilo rústico”.

     A caixa era de folha, o fundo picado pela ferrugem, tampa amolgada. Tinham-lha trazido de Espanha, cheia de caramelos.

     Emparelhava as peúgas que acabara de pespontar.

     “Estão a ficar usadas. Mas, por agora...”

     Ele ainda as iria calçando.

     Recostava-se na almofada e olhava para cima, para o tecto. Depois para a parede, onde a humidade continuava a entranhar-se.



     Ele olhava para fora

     Arredara da mesa uma das cadeiras e fora sentara-se no vão da janela.

     A rua por baixo, feita de gente a pé, postes de candeeiros, um ou outro toldo. Água de uma ruptura a jorrar para as sarjetas. Os carros à pressa pelo asfalto, e um autocarro que dava a curva para outra rua.

     A outra rua tinha árvores dos dois lados. E ia dar a um jardim.



     Ela tornou a ouvir a campainha.

     Agora a do fim do turno, que as punha de corrida para os vestiários. E de corrida, transpunham a porta, o portão.

     Ela também corria.

     Ao princípio porque era rapariga e ia namorar. Depois mulher casada, com pressa de chegar a casa, compor os desalinhos, fazer o jantar.

     Um dia, depois das férias, ela e as outras encontraram as oficinas vazias. Em duas semanas, as máquinas tinham sido vendidas. A fábrica fechada.

     Gritos. Vigílias. Desemprego.

     “Pois foi...”

     Até que chegara a idade da reforma.



     Levantou-se para ir buscar mais café.

     Voltou.

     Sem deixar de olhar a rua, ele disse que o dia estava no fim e era Outono.

     Engano:

     “Já é noite... e o Outono só acontece com o cair das folhas”.

     Com o vento que as leva, e outras coisas que desencantados e poetas costumam inventar.

     Não. Não era Outono.

     Mas talvez já se estivesse chegado ao Inverno.





     Ele chamava-se Camilo. Ela Cassilda.

     Alguém lhes quer dar outros nomes?

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