domingo, 28 de fevereiro de 2016

Os banhos de Santa Eufémia e a Sintra medicinal da Idade Média

JORGE LEÃO
Morador em São Pedro de Penaferrim e amador da história do lugar. Reabriu a Sala de Banhos de Santa Eufémia e concebeu o Roteiro Medieval de São Pedro.



A reabertura em 2013

  

Por ocasião do IV Encontro de História de Sintra, numa das comunicações, ouviu-se falar  da distinção, na idade média,  entre a Sintra militar e a Sintra do desenfado. Ou seja, da existência, na idade média, de, primeiro,  uma Sintra militar, com funções militares, com o seu castelo. E mais tarde,  uma Sintra do desenfado, do veraneio, do prazer.

Podemos então falar de uma Sintra militar e do desenfado, e estudá-las,  neste momento em que nos orgulhamos de sermos uma Sintra turística, comentada em todo o mundo.

Mas há ainda, durante a idade média, uma Sintra, da qual muito pouco se tem falado. A Sintra medicinal. E é dela que se escreve um pouco, como introdução ao relato da reabertura, em 2013, dos Banhos de Santa Eufémia da Serra.

A primeira provável fonte escrita, surge-nos no Séc. XII, escrita por Osberno, um cruzado inglês, homem erudito,  que vem na missão estrangeira e ajuda D. Afonso Henriques a tomar a cidade de Lisboa, em 1147. A carta é muito conhecida e é o relato da tomada da cidade, traduzido do latim para português pela primeira vez em 1935.

E o que nos diz este homem estrangeiro sobre Sintra, onde provavelmente nunca esteve, no Séc. XII,  num território que ele não conhecia, ocupado pelos mouros há séculos? O que ouviu ele, à distância, sobre Sintra ?

“Fica-lhe próximo (de Lisboa) o castelo de Sintra, à distância de quási oito milhas, no qual há uma fonte puríssima, cujas águas, a quem as bebe, dizem, abrandam a tosse e a tísica ; por isso quando os naturais dali ouvem tossir alguém, logo depreendem que é um estranho...”.

Ou seja, houve tempo em que Sintra era conhecida pelo seu castelo, mas sobretudo por uma fonte. Uma fonte com características medicinais especiais.

Que fonte era esta? Não sabemos ao certo. Mas, por tudo o que se pode supor sobre a antiquíssima aura de Santa Eufémia da Serra; por tudo o que se sabe sobre a antiquíssima utilização da sua água para fins medicinais, não se podendo considerar como certo, pode-se, contudo, aceitar como o mais provável, ser a de Santa Eufémia a fonte de que nos fala Osberno, nesse remoto século XII.

Félix Alves Pereira, em  1931, afirma-o implicitamente: “Não se trata de qualquer nascente de água comum, mas de uma que, na grande antiguidade, foi alvo de culto pagão, cuja natureza, a cristianização dos povos transformou, coroando a construção fontenária com uma cruz, e erigindo, próximo do sítio, uma ermida...”.Vid. “Sintra Do Pretérito”.

É desta opinião também Francisco Gonçalves,  em “Arquivo do Concelho de Sintra”, de 1941, recentemente reforçada por José Cardim Ribeiro em “Contributos para o conhecimento de cultos e devoções de cariz aquático relativos ao território do Município Olisiponense”, de 1983, disponíveis na excelente Sintriana, da Biblioteca Municipal de Sintra. O IGESPAR também assim o considera.

Em Março de 2013, os Banhos de Santa Eufémia (fonte e sala de banhos) estavam em perfeito descuido e a sala dos banhos estava fechada, pensa-se que desde os anos setenta. Um ácer de algumas centenas de quilos tinha crescido junto ao beirado e ameaçava ruir o tecto da sala.

O autor deste artigo, no contexto da realização de um roteiro que une os peculiares vestígios da medievalidade em S. Pedro de Penaferrim, manifestou vontade de recuperar este espaço, de suprema importância para a história local.

O único relato vinha de um sampedrino, o último da última família a residir nas casas dos romeiros, junto à ermida. Lembrava-se vagamente de, pelos anos 70, sendo ele ainda muito novo, ter derrocado o frontispício da fonte,  e de seu avô e seu pai terem desentulhado o espaço para o terreno fronteiro,  continuando assim a poder utilizar a água da fonte, elevada para as casas por bomba eléctrica.

No dia 14 de Abril de 2013, obtém-se autorização da “Parques de Sintra-Monte da Lua” que, juntamente com a autorização da Paróquia, e uma parcelar colaboração financeira da Junta de Freguesia de São Pedro, por indicação do seu presidente, Sr. Fernando Cunha, permite o começo do trabalho no dia 15.

Com uma porta de chapa metálica fechada há décadas, não havia relato do interior da sala dos banhos.

Após a limpeza do perímetro exterior, a porta é aberta no dia 20 de Abril,às 11.30h, com a presença de praticamente todos os intervenientes neste processo.

Lá estava tudo como tinha descrito Félix Alves Pereira, em 1931: a pequena sala, de tecto abobadado, com o seu nicho e o seu antiquíssimo tanque de pedra, onde se banharam inúmeros enfermos, ao longo de séculos, na esperança de melhoras, graças às águas milagrosas de Santa Eufémia.  

Pelos rabiscos feitos com objectos pontiagudos ou a lápis, há algumas décadas, próprios de um vandalismo recente, sabemos datas em qua a sala dos banhos esteve aberta. Em 1942, esteve lá a Maria Helena. E outros por lá passaram em 56, 57,  58,  68, 71 (e 86 episodicamente?).
Como poder ter esta sala, tão solitária na serra, permanentemente aberta, sem ser atingida por este tipo de vandalismo?  Foi isso possível fazendo uma porta em varão de ferro de 12 mm, com varões horizontais e verticais,  possibilitando a qualquer  pessoa introduzir a cabeça e ver a sala na sua totalidade, sem nela entrar. Todo o trabalho de serralharia foi feito pelo Sr. Dan Bojan, membro da já assente comunidade romena de S. Pedro e colaborador do autor destas linhas.

Procedeu-se a uma limpeza dignificante, sem  alterar em nada o actual estado dos materiais. Foi revelada uma pedra inscrita, para além das quatro referidas no passado por Félix Alves Pereira ou desenhadas por José Alfredo da Costa Azevedo. E porque não o foi? Só parece haver uma razão. A lápide encontra-se no chão, mesmo à entrada da sala dos banhos, já do lado de dentro, encostada ao lambril de entrada. É a pedra de entrada da sala. Por essa razão, sempre com folhagem acumulada, a pedra poderá ter passado despercebida. Deve lá estar há alguns séculos, e parece ser mais uma prova da superior dignidade da sala de banhos e da fonte de Santa Eufémia da Serra. Na posição em que está, dá a entender que o texto já desaparecido foi desgastado ao longo dos tempos pela passagem dos pés, só permanecendo hoje a parte do texto junto ao eixo giratório da porta, na parte não sacrificada por essa passagem. Dessa parte, só se consegue perceber, como que premonitoriamente,  a palavra “FAZER”.

Não se referiu ainda que, no princípio do trabalho,  a “Parques de Sintra-Monte da Lua”, em jeito de recompensa, prometeu duas execuções: em primeiro, o restauro do caminho que sobe da Calçada da Pena, passa pelos Banhos de Santa Eufémia e chega à antiga abegoaria do palácio da Pena, por baixo da ermida de Santa Eufémia. Caminho medieval, mas sem carácter especial, sulcado desordenadamente pelas águas das chuvas e calcado da mesma forma pelos humanos,  desde há séculos. Em segundo, abater aquele perigoso Ácer que, crescendo mais,  adquirindo mais massa, haveria de ser uma árvore pouco frondosa mas uma perfeita alavanca para arrancar e destruir o tecto da sala. O prometido foi cumprido, e hoje nós temos o mesmo caminho mais confortável e conforme. E a indesejável árvore foi cortada. Foi muito eficaz a colaboração desta nossa empresa pública, representada neste assunto pelo Dr. João Lacerda Tavares.

Esta colaboração não ficou por aqui. Tivemos a possibilidade de visitar a mina, com a cautelosa guia do Sr. Engº Nuno Oliveira. De um dos três braços, com 48 metros de extensão,  corre ainda um persistente fio de água (já em 1880 assim era), que é, desde há anos, conduzido para um poço de onde é elevado para a ermida, não correndo por isso pela bica para a pia...

A grelha em pedra com furação redonda, para onde escorria a água da fonte que transbordava a pia, encontrou-se fragmentada e misturada com o entulho, estando recolhida para restauro.

Foi isto que, desde há dois anos se fez, nos Banhos de Santa Eufémia da Serra, testemunho vetusto do nosso passado longínquo e dessa, já quase esquecida,  Sintra medicinal.



Publicado no Jornal de Sintra de 18 de Dezembro de 2015

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Relatos de um alagamarense em Cubucaré- I

GONÇALO SALVATERRA
 


Podia começar este texto com um célebre - eu sou um cristão, e um cristão não teme! Mas eu não sou cristão.
Ao escrever tal blasfémia, fui rogado por uma praga, um morcego invadiu a minha sala - História verídica, que acabou de acontecer - voando desenfreadamente em busca do caminho que o levará ao habitual pousio de residência, o meu telhado.

Esteiras artesanais de palha nos separam, a mim e a ele, a ele e a mim. Na verdade penso que são eles e não ele, tal é a barulheira que fazem de noite, já para não falar dos ratos.

A minha relação com estes parentes afastados é complicada. e até platónica, em comum nada temos se não sermos bons apreciadores de leite, eles são activos de noite, eu de dia, eles ignoram as minhas palmas e os meus assobios para os afugentar, eu não ignoro o seu bater de asas e os seus guinchos para me despertar, enfim somos o sol e a lua, mas temos os nossos eclipses. Tal como já contei anteriormente, o encontro imediato desta noite, e ainda não tenho a certeza se já se foi embora. Depois de um longo duelo, quando finalmente pensara que desaparecera, lá estava o vampiro, descaradamente a relaxar, fazendo do meu mosquiteiro cama de rede. Se ao menos este morcego estivesse para mim como o corvo está para o João Rodil, eu estaria melhor, podia dizer para ele se calar, ou para ele fazer de pousio a casa do lado. Melhor ainda, podia ser ensinar-lhe a beber leite com café, talvez lhe trocasse as voltas ao sono, ficava acordado de dia e dormia à noite. Isso é que era.

Hoje é quinta feira, e Alá abençoou-me, pois a quarta e a quinta feira são dias de relativo silêncio -no mato o silêncio só pertence aos surdos - uma vez que não há marabu (aulas do alcorão). Os restantes dias sou torturado com miúdos a esforçar as cordas vocais com - Aláukbarr. Tão mais tortuoso o é porque me faz lembrar - HÁ LÁ AQUELE BAR, ensinamento número um do meu amigo Fernando Gomes, devo acrescentar Morais pelo meio, pois caso contrário lembra-me um jogador de futebol. Ouvir repetidamente HÁ LÁ AQUELE BAR e não ter nem bar, nem cerveja, pode abalar a cabeça de qualquer jovem que sinta na pele 35 °C.
Assim se vive há um mês no mato da Guiné, que qualquer dia, com a velocidade a que se corta arvores para nós brancos comermos caju, o termo mato dará lugar a cajueiro. Ficando a frase - Assim se vive há um mês no cajueiro da Guiné.
Os "amiguinhos"....

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Por linhas tortas, caminho a direito


JOÃO CACHADO

Não será pelo facto de, muitas vezes, fazer a mesma caminhada – entre a Estefânea e o Caminho da Fonte dos Amores, através de ruas imensamente familiares, cujos ínfimos detalhes conheço e reconheço como os da palma da mão – que desaparece ou se atenua a sensação de agressão em relação a tudo quanto de menos positivo vai aparecendo diante dos meus olhos.

Aliás, neste contexto, será em sentido oposto o testemunho a partilhar já que, na ausência de intervenções de beneficiação, as razões de queixa apenas se agravam. Se perguntarem a que tipo de agressão me refiro, confesso que, a mais desconfortável, me levará a mencionar cenários que, há décadas, constituem desgosto dificilmente suportável.

Tempos houve em que, muito provavelmente, devido a falhas de lucidez que a idade se encarregou de suprir, consentia eu que tal quadro me avinagrasse os dias. Actualmente, não. Depois de um fartar de promessas e de muitas palmadinhas nas costas, consigo caminhar serenamente, sem as dores que outros devem carregar…

E, assim, aliando os benefícios para a saúde de uma caminhada diária de seis quilómetros, tenho o privilégio de fazer um percurso invejável – que, em qualquer parte do civilizado mundo, sempre seria incensado devido aos seus incomparáveis e sucessivos ingredientes de beleza – mantendo a boa esperança de que seja transposto o cabo a partir do qual estará à vista a solução para as questões em presença.

Gerais mas bem concretos

Poderia detalhar a rua de pavimento tão irregular que até os condutores de veículos todo o terreno têm dificuldade no seu controlo? Claro que sim. Mas, se o fizesse também teria de me referir ao seu troço pedonal, cinzentão, mal feito, impermeabilizado, a coisa mais horrível de Sintra, antiga artéria comercial cheia de movimento, que, desde o início do século XXI, passou a ser um inqualificável cemitério, tantas vezes transformado em inqualificável parque de estacionamento…

Não, neste escrito, não há necessidade de ir identificando, porque são perfeitamente conhecidos os precisos objectos do desconchavo. Assim, apenas em termos gerais, é que lembro os escorregadios, sujos, irregulares e perigosos passeios, com os lancis partidos, impróprios para pessoas normais e, muito menos, cidadãos com mobilidade reduzida e pais que tenham de empurrar carrinhos ou cadeiras de bebés.

Ou os muros descuidados. E os fios eléctricos pendurados? E as casas? Várias neste percurso, em ruína imparável, decadentes, absolutamente periclitantes, algumas com arbustos crescendo na ponta do telhado, fachadas descoloridas, rachadas, a desfazerem-se, janelas podres, vidraças partidas, deixando aperceber o interior desventrado.

Trata-se de propriedade particular? Nalguns casos, é verdade. E não haverá dispositivo legal que resolva esta questão que carrega um legado de geracional mas tão característica incompetência? Contudo, também há edifícios do património municipal. Por exemplo, na Alfredo da Costa. Claro que não há necessidade de identificar…

Em pleno centro histórico, na Vila Velha, além do mais recente desmando da esplanada, multiplicam-se os casos afins do quadro e da moldura a que venho aludindo. Para quê continuar alinhando mais motivos de desgosto? Com o risco de ser contraproducente?

De uma vez por todas!

Em contrapartida, muito melhor me sinto repetindo a ideia que, tantas vezes, tenho partilhado no sentido de operacionalizar uma entidade gestora da sede do concelho, abrangendo todo o território definido pelas anteriores três freguesias. Em qualquer parte do mundo, com desafios congéneres aos de Sintra, a gestão local é extremamente exigente, totalmente focalizada para a sofisticação dos lugares únicos com que deve estar preocupada, única e exclusivamente preocupada.

De tal modo importantes e sui generis são as necessidades, deste coração do concelho que só uma entidade exclusivamente dedicada, bem dotada de recursos humanos e materiais, com uma boa transferência de competências, poderá estar à altura dos desafios. Para o efeito, porque não se trata de matéria para brincadeira, jamais pensaria na União das Freguesias de Sintra…

“(…) mantendo a boa esperança de que seja transposto o cabo a partir do qual estará à vista a solução para as questões em presença. (…)”

Com tão sincero desejo, poderia terminar. Se não o faço de imediato, é porque gostaria de recordar uma tão sincera quanto frequente atitude do Dr. Basílio Horta. Homem que tem servido a República nos mais diferentes postos da Administração, com larguíssima experiência de direcção e gestão, a quem o país deve inestimável empenho na defesa dos interesses nacionais, o actual Presidente da Câmara Municipal de Sintra queixa-se imenso da lentidão dos procedimentos administrativos.

Como não entendê-lo? Na realidade, como não concordar quanto à ideia de que tudo parece armadilhado para obstaculizar as melhores vontades de bem resolver as situações apontadas? De qualquer modo, perante o desabafo do edil, como toda a compreensão deste mundo, nada adianta para que, em tempo oportuno, os munícipes vejam satisfeitos os seus anseios, então, o que fazer?

Embora com o risco de que seja entendida como simplista ou redutora, a solução passa pela assunção plena, por parte de executivo municipal, de um dos grandes princípios da Democracia e do Estado Democrático de Direito, qual seja o do inequívoco exercício da autoridade democrática que detém para cumprir e fazer cumprir as leis em vigor.

Se tal estivesse a acontecer, em vez da institucionalizada cultura do desleixo, que subjaz a todas, todas as situações anteriormente referidas, razões não teríamos para manifestar estes desgostos.

[João Cachado escreve de acordo com a antiga ortografia]
 

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

O António latoeiro e a Maria Domingas, sua mulher

RUI OLIVEIRA e CARLOS LEITE


A mais das vezes, em documentos escritos antigos, é possível, sobretudo nos de foro jurídico e de raiz sentencial, vislumbrar histórias de vida, formas de estar e de interagir em sociedade ou, somente, a nível individual. É o caso dos processos do famigerado Tribunal do Santo Ofício. Processos volumosos, em geral, burocráticos mas, por essas mesmas razões, ricos em informação sobre pessoas, ideias e acções. A história que aqui deixamos é curiosa e bem ilustrativa de uma época, pautada por esplendor social generalizado, em que todas as classes sociais se procurava a promoção social e económica, nos mais variados títulos, desde o simples irmão da irmandade de……; ou cavaleiro de….; ou Conde de….:
Bem…. vamos então à história!
Era uma vez um António, que era casado com uma Maria…
Geralmente, as Marias (ou quase todas) são sempre casadas com um José, mas desta vez não. Até porque a Maria não se chamava só Maria (era Domingas Maria), e o António não era carpinteiro, mas sim latoeiro…de martelo.
Estamos em Lisboa, em pleno século XVIII.
Faltam alguns anos até a cidade ser sacudida por um violento terramoto, algo que irá ficar para sempre na memória de todos.
Mas isso ficará para outra história.
Dizíamos nós, estamos em pleno século XVIII, mais concretamente em 1733.
Naquela que virá a ser a futura Rua da Vitória (na actual Baixa Pombalina), mora o tal António com a Maria.
O António é latoeiro (que são aqueles artesãos que fazem trabalhos em lata ou folha da flandres), e segundo consta é muito bom no seu ofício, dado que é chamado de “Mestre Latoeiro”. E a fama dele é tal, que lhe permite viver abastadamente.
Mas uma parte do seu percurso de vida tem pormenores bastante curiosos…
Quem for à Torre do Tombo e quiser saber mais sobre este personagem da História de Lisboa, terá que consultar o seu processo da Inquisição (Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, António, Maço 80, Doc. 1538).
“Inquisição”?
Então mas esses não eram…?
Eram, sim. Mas no caso do nosso António, o seu processo na Inquisição não tem a ver com algum crime de Fé (ou contra a Fé), mas sim com o facto de ele ter pedido uma licença para pertencer ao Santo Ofício (que é outro dos nomes pelo qual era conhecida a Inquisição).
Mas, e o que era isso de querer pertencer ao Santo Ofício?
O nosso António queria pertencer à Inquisição na qualidade de “Familiar”. Um “Familiar” do Santo Ofício era uma pessoa que tinha como função policiar os demais cidadãos, cabendo-lhes, por exemplo, prender alguém suspeito de heresia (assim como confiscar os seus bens), ou até mesmo examinar os presos afim de confirmarem, ou não, se eles podiam aguentar torturas.
Aos nossos olhos, que vivemos em pleno séc. XXI e temos outra mentalidade, outra visão das coisas (graças a Deus), este tipo de atitudes podem parecer-nos um pouco estranhas e até mesmo repugnantes.
Mas….. para as pessoas daquela época, ser “Familiar” do Santo Ofício era uma honra e um estatuto. Por um lado, porque isso conferia-lhes um certo prestígio. Por outro, porque concedia alguns privilégios (como por exemplo, o não pagamento de certos impostos).
Mas, e como em qualquer história, há sempre um “mas”
Para se ser “Familiar” do Santo Ofício, tinha de ser feita uma averiguação de toda a vida do pretendente e da sua mulher, inclusive dos seus familiares (até à terceira geração). A isso chamavam, naquela época, de “Pureza de Linhagem”, ou “Limpeza de Sangue”.
E é no decorrer disto que ficamos a saber, entre outras coisas, que o nosso António não é natural de Lisboa (mas sim de Coimbra), que vive abastadamente do seu negócio e que nunca tinha sido preso nem cometera qualquer crime contra a Fé.
Até aqui, nada de surpreendente; regra geral, estas eram as primeiras informações que a Inquisição procurava saber.
Mas a partir de certa altura, ficamos também a saber que ele era uma pessoa de confiança, capaz de levar a cabo, e em segredo, certos negócios importantes.
Mas o melhor fica para o fim: segundo algumas testemunhas que foram ouvidas pela Inquisição, o nosso António era descendente de mulatos (o seu bisavô materno era mulato).
E há ainda uma outra surpresa: lembram-se da Maria, a sua mulher? Pois ficam a saber que esta Maria, aliás, Domingas Maria, era natural de, nada mais, nada menos, do que da Agualva. E a sua mãe (que também era Maria, mas desta vez Ana Maria, de alcunha a cerra bodes, lavadeira que morreu tragicamente a caminho de Lisboa…. caiu do burro, diz-se) também era da Agualva. E o avô materno desta Maria (a mulher do nosso Mestre Latoeiro, o António de quem temos estado a falar) também era de Agualva, do Casal de Rocanes, ao passo que a sua avó materna era da Rinchoa.
 

Quanto à sua admissão no Santo Ofício, não sabemos qual terá sido a decisão da Comissão de Investigação, dadas as informações rocambolescas que os investigadores foram recolhendo pelo caminho.