terça-feira, 1 de abril de 2014

Um testemunho a respeito da procissão em honra da Visitação de Nossa Senhora


CARLOS MANIQUE DA SILVA

O movimento confraternal das misericórdias portuguesas, nascido em finais do século xv graças à intervenção da rainha D. Leonor, distanciou-se em muitos aspetos da praxis das confrarias medievais. Um dos traços idiossincráticos das novas agremiações foi seguramente a dimensão penitencial, associada então à vivência de uma intensa espiritualidade. Essa dimensão é patente em algumas práticas processionais, designadamente nas que são dedicadas à Paixão de Cristo. De resto, a procissão de Quinta-Feira Santa, denominada das Endoenças, constitui um dos atos mais significativos das confrarias de misericórdia (consignado, deve dizer-se, desde o primeiro Compromisso). No que concerne à referida procissão, é ainda hoje possível reconstituir a encenação do ciclo da Paixão, isto é, perceber a sua ordenação, seguir itinerários, identificar a simbólica presente, detetar relações de poder entre os intervenientes mais diretos…
Mas há uma outra manifestação processional que teve extraordinária relevância na vida das misericórdias. Falo da procissão em honra da Visitação da Virgem Maria, instituída em 1516 pelo rei D. Manuel I e cuja celebração acontecia no dia 2 de julho. Durante séculos, esse foi precisamente o dia oficial das misericórdias, no qual tinha anualmente lugar um dos momentos solenes da sua vida institucional – a eleição dos corpos sociais.

Se é verdade que a historiografia tem dedicado algumas páginas ao estudo da procissão das Endoenças, já no que concerne à procissão da Visitação (sem clara definição regimental) o seu ritual permanece, em larga medida, desconhecido.

Dito isto, afigura-se-me útil analisar um documento de arquivo que faz alguma luz sobre a procissão realizada a 2 de julho. Trata-se de uma carta que o Senado da vila de Sintra dirigiu ao Provedor e Mesários da Misericórdia. A missiva, datada de 30 de junho de 1792, permite, mais do que conhecer pormenores relativos à saída processional, entrever algo relativamente à sua significação no contexto local.

Com efeito, o documento em questão deixa perceber que, em finais do século xviii, a procissão em dia de Visitação tinha perdido o brilho e a solenidade de outrora. É justamente nesse sentido que aponta a interpelação do Senado, reclamando a observação de antigos costumes, consignados na lei desde há muito, conforme se refere na citada carta. Todavia, o ponto fulcral prende-se com o facto de o Senado querer reassumir a posição de destaque que ocupava nessa celebração. Ou seja, a pretensão ia no sentido de os seus membros terem um lugar reservado (e privilegiado) na igreja da Misericórdia, com o objetivo de assistir à missa do dia 2 de julho. Mas o propósito é mais amplo. Na verdade, diz igualmente respeito ao acompanhamento, da mesma forma em situação privilegiada, do cortejo processional (que partia da matriz da vila em direção à igreja da Misericórdia).

A posição do Senado demonstra que, em finais do século xviii, mesmo tendo perdido algum fulgor, a procissão da Visitação continuava a ser considerada uma importante via para a representação e afirmação públicas das corporações locais.

Fiquemos agora com a transcrição do mencionado documento, cuja ortografia foi atualizada.

Carta do Senado da Vila de Sintra ao Provedor e Irmãos Mesários da Misericórdia de Sintra para que se lhe destine um lugar na igreja para assistirem à missa no dia de Visitação

1792 – junho – 30

O Senado tomando em sua série consideração o quanto não pode deixar de ser do desagrado de Deus e do de Sua Majestade, a falta de observância e esquecimento em que tem caído o antigo e religioso costume suscitado pela muito piedosa cristandade do Senhor Rei Dom Manuel, e recomendado da mesma sorte por muitas leis extravagantes de alguns dos Senhores Reis seus Augustos sucessores de assistirem e solenizarem os Corpos das Câmaras de todas as Cidades e Vilas do Reino à festividade que a Igreja celebra no dia 2 do mês de julho em honra da Visitação de Nossa Senhora, e possuído do justo sentimento de que tendo a procissão que no mesmo dia se faz da sua própria e privativa expressão, bem como algumas outras, tenha contudo o Senado deixado de muitos tempos a esta parte de assistir a ela, procedendo assim na falta de sua observância muito culpavelmente para com Deus e muito escandalosamente para como os Homens, ao mesmo tempo que os Reverendos Eclesiásticos, com dignidade de seu caráter e ministério, têm sempre até o presente continuado no exato cumprimento do que uma vez a este respeito lhes foi ordenado vem por estes muito poderosos motivos acordados, respeitar para o efetivo e cumprir exatamente com esta sua impreterível obrigação que além de tão religiosa bastava ser ordenada por lei para dever ser observada; e determina em consequência acompanhar a procissão que sai da Matriz desta Vila, no referido dia 2 de julho, à igreja da santa Casa da Misericórdia e assistir à missa que depois dela na mesma se deve celebrar. O que assim pareceu participar(?) a Vossas Mercês, muito particularmente pela suma veneração que em tudo deve sempre mostrar a uma corporação distinta e respeitável pela santidade de seu emprego, e também para que Vossas Mercês mandem destinar para as cadeiras do Senado o lugar que em outro tempo por semelhante ocasião costumavam ter, e quando por desgraça nem memória disso já haja, recomenda que se lhes destine aquele que a atenção de Vossas Mercês julgar pertencer e ser decoroso ao Senado pela sua representação.

aa) José Inácio da Silveira Cordeiro
      Manuel Caetano de Sousa Prego
     Manuel de Abreu de Sousa Prego
(Arquivo Histórico da Misericórdia de Sintra, cota: SCMS/C/03/Cx. 2, doc. 10)

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