segunda-feira, 27 de outubro de 2014

O Chalet das Cotovias – Um policial clássico passado em Sintra

MIGUEL REAL

Com força literária inusitada, publicado em 2013, O Chalet das Cotovias, de Carlos Ademar, antigo inspector da Polícia Judiciária e professor na Escola Superior de Polícia, resgata para a literatura portuguesa o romance policial clássico segundo o tradicional modelo de Georges Simenon e Agatha Christie (o policial como espelho das taras sociais e psicológicas da comunidade) e dos seus famosos inspectores da polícia Maigret e Poirot.

Trata-se de uma narrativa de intriga e mistério, de pendor realista que, extrapolando a ocorrência policial específica, intenta constituir-se como espelho histórico da sociedade, afirmando a fidelidade ao real e a veracidade escrupulosa da História, determinada a partir do ponto de vista dos documentos objectivos. No caso de O Chalet das Cotovias, aborda uma história real a partir de fontes reais, envolvendo-as numa trama narrativa exigente.

Em O Chalet das Cotovias, trata-se de retratar os grupos sociais emergentes do Estado Novo ao longo das décadas de 1930 e 40, bem como a especial comunidade de habitantes femininos do Chalet das Cotovias em Sintra. Perfazendo as vezes de Maigret, desponta o chefe de polícia Manuel do Rosário, tão heterodoxo nas investigações quanto o seu homólogo francês.


Assim, por via das investigações em torno do desaparecimento do advogado Luís Lencastre e do aparecimento do seu corpo num descampado em Sintra, o autor, vocacionado por ofício e mestria para a escrita do romance policial, como a sua obra romanesca o prova e este romance o manifesta de um modo absoluto, explora tanto o universo de possibilidades de resolução do mistério policial, segundo metodologias de investigação próprias do período em questão, quanto a descrição de costumes sociais e de mentalidade psicológica do momento histórico, tendo em conta, sobretudo, a aversão moral na época ao lesbicismo, uma época puritana, fundada numa ética rural e católica fundamentalista, que intenta morigerar o liberalismo e o positivismo morais da I República.

No caso da investigação policial, o romance explora todas as possibilidades urdidas pela caracterização das personagens e pelo desenvolvimentos dos factos, desde a possibilidade de vingança política e de ciúme (Arnaldo Veiga, cuja mulher, Margarida, se tornara amante de Luís Lencastre,  e os seus dois serventuários, descritos como autênticos “cães-polícia”) até à de ajuste de contas financeiro (o advogado Costa Valente), passando pela hipótese de roubo e assassinato (os mendigos “Matagatos”  e “Zarolho”).

A solução, só atingida no final do romance, constitui um verdadeiro achado e corre o risco (justo e legítimo) de ficar na história do policial português devido ao seu carácter insólito, ainda que perfeitamente lógico.

No caso da segunda vertente, o de se constituir como retrato da sociedade, João Céu e Silva escreveu no “QI” do “Diário de Notícias” de 3 de Agosto de 2013, que O Chalet das Cotovias opera a “perfeita reconstituição histórica de uma época fundacional do país que sobrevive até hoje”, isto é, evidencia com rigor a formação da polícia política (a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado) e a criação da Legião Militar, mostrando que o modo como ambas as instituições arregimentam os seus servidores tem mais a ver com interesses pessoais do que com a defesa de propósitos ideológicos.

No Chalet das Cotovias, em Sintra, sucedem-se reuniões de senhoras que não se limitam ao chá, à quermesse ou bazar ou ao jogo de distracção. Frequentado por Florbela Espanca e Fernanda de Castro, intelectual e mulher de António Ferro, o ideólogo de Oliveira Salazar, as reuniões são animadas por Ju, dona do Chalet, que mantém relações de sentimento carnal com Gabi, Zefa e Maria. A irmã de Luís Lencastre, Rosinha, participa nestas soirées, e o advogado sai de Lisboa e dirige-se para o chalet, em Sintra, onde desaparece.

Ju, avassalada por uma sociedade puritana, fundada nos bons costumes da família burguesa, e por uma ideologia salazarista nascente, baseada na tripla instituição moral purista de Deus, Pátria e Família, fecha o chalet de Sintra e parte para o estrangeiro.

Sob a repressão política, a censura intelectual e a pobreza social, Portugal dormirá o longo sono de 48 anos do Estado Novo, até ressuscitar no dia 25 de Abril de 1974 e as novas Jus não precisarem de exilar-se para darem livre curso à sua sexualidade.

O Chalet das Cotovias,

Parsifal, 332 pp., 14,94 euros.

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