segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Apontamentos para a história de vida de um sintrense (século XVI)


CARLOS MANIQUE

Lourenço Correia Ribeiro nasceu em Sintra, nos meados do século XVI. Era filho de Simão Dias e de Inês Correia Ribeira, também eles naturais de Sintra. Porventura, o pai era o mesmo Simão Dias que figura como provedor da Santa Casa da Misericórdia de Sintra nos anos de 1569-1570, 1575-1576, 1579-1580 e 1583-1584 (Silva, 1997). A tratar-se desse indivíduo, era bisneto de André Gonçalves, almoxarife de Sintra e primeiro provedor da Misericórdia local.

A história de vida de Lourenço Ribeiro tem alguma singularidade e interesse, justificando o presente apontamento histórico. Em larga medida, a minha narrativa basear-se-á nos dados publicados por Silva Marques (1949).

O percurso de vida de Lourenço Ribeiro conhece maior notoriedade na sua aventura por terras do Oriente. Na verdade, em abril de 1586, parte para a Índia na armada de D. Jerónimo Coutinho, vindo a falecer em Macau, em 14 de fevereiro de 1598.  Nesse período, por essas paragens combateu e comercializou. Sabe-se, igualmente, que permaneceu em Moçambique e Sena, onde negociou em escravos e emprestou dinheiro; algo que nem sempre lhe correu pelo melhor. Também na China se dedicou ao tráfico de escravos, conforme deixa perceber o seu testamento, lavrado em Goa, corria o mês de março de 1597 (Silva Marques, 1949). Por meio dessas andanças e aventuras de guerra, acabou por ser ferido.

Silva Marques (1949) assegurou que as motivações de Lourenço Ribeiro para a empresa no Oriente não estiveram associadas a problemas de natureza financeira, pois, à data de sua morte, não possuía dívidas passivas e tinha, em Sintra, 50000 reis de “legítima paterna”. Os inúmeros legados com que contemplou a Misericórdia, Igrejas e Conventos da sua terra natal confirmam essa ideia.

Interessa também dizer que, sendo solteiro, Lourenço Ribeiro contemplou parcialmente no testamento os seus herdeiros diretos. Ou seja, a mãe e dois irmãos, os últimos dos quais se encontravam, na época, na Índia.

É particularmente nas disposições testamentárias que percebemos a fortuna de que era detentor, assim como a sua intensa fé e espírito solidário para com os mais necessitados do concelho de Sintra. De facto, Lourenço Ribeiro, ao instituir a Santa Casa da Misericórdia de Sintra como sua testamenteira, atribui a essa instituição uma verba de 500 cruzados para dotar e casar dez órfãs de Sintra, assim como 50 alqueires de trigo para dar de esmola aos pobres na véspera de Natal.

A Misericórdia de Sintra acusa a receção do testamento no ano de 1601, enviado pela sua congénere de Macau. A partir daí segue-se a aplicação do legado conforme vontade do testador, decorrendo tudo de forma lenta, como facilmente se compreende dadas as distâncias geográficas. Todavia, para que todas as disposições testamentárias fossem cumpridas muito contribuiu a ação das Misericórdias do Oriente, reflexo do seu papel preponderante na sociedade da época.

Para termos uma ideia do alcance do legado em questão, basta afirmar que, no ano de 1634, havia ainda raparigas de Sintra a receber dotes de casamento.

Por outro lado, outras dimensões assistenciais ficam bem presentes quando, na véspera de Natal do ano de 1625, os pobres se dirigem à porta da Misericórdia de Sintra, onde se distribuíam alqueires de trigo do legado instituído. Em sinal de reconhecimento deslocam-se depois para junto do cruzeiro, onde rezam pela alma de Lourenço Ribeiro – cumpria-se assim a vontade de quem, certamente, esperava obter a redenção.

 

Referências

 

Silva, Carlos Manique da (1997). Provedores da Santa Casa da Misericórdia de Sintra. Santa Casa da Misericórdia de Sintra.

 

Silva Marques, João Martins da (1949). Sintra e Sintrenses no Ultramar Português. S.n.

 

 

sábado, 1 de fevereiro de 2025

Nos cem anos do livro de sonetos Verbo Austero, de Francisco Costa







CARLOS MANIQUE


A produção literária de Francisco Costa (1900-1988) centra-se, numa primeira fase, na poesia, revelando o autor especial gosto pelo soneto. Publica, então,  (1920) e Verbo Austero (1925), dando ainda à estampa, em 1933, Algemas de Ouro (odes). Regressaria à poesia no final da vida, publicando Última Colheita (1987). No entanto, importa sublinhar que no espólio do escritor encontramos alguns poemas inéditos, sobretudo sonetos, escritos ao longo da vida (a merecerem a luz do dia!).

É certo que a fase de maior afirmação literária no panorama nacional ocorre a partir de 1943, quando Francisco Costa lança o primeiro romance, A Garça e a Serpente (Prémio Eça de Queirós), prosseguindo depois nessa senda até ao início da década de 1970 (Promontório Agreste, 1973).

Por outro lado, é também conhecido o interesse de Francisco Costa pela ancestralidade de Sintra. Com efeito, os Estudos Sintrenses constituem obra de referência para quem quer conhecer as vertentes da história local.

Mas, aquilo que me leva a escrever o presente texto, ou melhor, a revisitar um artigo que publiquei há exatamente 20 anos, é o facto de querer assinalar os cem anos da publicação de Verbo Austero. Honra seja feita ao Dr. Ricardo Alves, que, no Colóquio Francisco Costa e a Biblioteca Municipal de Sintra: 85 anos de Cultura, Literatura e Património (maio de 2024), chamou, justamente, a atenção para essa circunstância.

Começo então por dizer que, em 2002, em diálogo com a filha de Francisco Costa, fiquei a saber que na biblioteca pessoal de seu pai figuravam algumas obras de António Sérgio. Solicitei-lhe e disponibilizou-me, para além dos Ensaios, a Antologia Sociológica e as Notas sobre os Sonetos e as Tendências Geraes da Philosophia de Anthero de Quental. Este último livro, publicado em 1909, terá sido importante para o crescimento intelectual de Francisco Costa, tanto mais que, para o ilustre sintrense, Antero, de entre os poetas nacionais, era o seu preferido. A confirmar essa ideia está o facto de as Notas sobre os Sonetos… estarem profusamente sublinhadas e, mesmo, anotadas em algumas passagens. Esses registos devem ter sido feitos em 1921, a julgar pelo soneto que Francisco Costa escreveu, a lápis, no verso da última página, intitulando-o “Ad philosophos” e datando-o de março do citado ano. Mais tarde, à semelhança, aliás, do que fez com muitos outros sonetos – de que será paradigma maior “Domus mea (1930), posteriormente transmudado em “Domus nostra” (1938) e em “A Casa” (1987) –, essa composição foi reescrita, selecionada e incluída em Verbo Austero. Apanágio de quem, longe de ser repentista, buscava a perfeição!

Apesar de não se tratar de um inédito, colhe algum sentido divulgar o soneto “Ad philosophos”. Na verdade, o dito poema permite não só perceber a filiação da criação artística como também, no cotejo com a versão definitiva, vislumbrar o processo de aperfeiçoamento da escrita. Merece igualmente destaque a ambiência em que Francisco Costa terá lido as Notas sobre os Sonetos…, ou seja, num período de convalescença (salutaris morbus, assim o designou), do qual soube, aliás, retirar frutos duradouros, fundamentalmente pela entrega à leitura, ao estudo e à reflexão.

Interessantes são, certamente, os comentários que o jovem de 21 anos faz a alguns trechos da obra de Sérgio, deixando transparecer as suas ideias estéticas e a sua teoria filosófica dos valores, ainda em formação. Essas observações, exaradas a lápis nas margens das páginas, têm de ser compreendidas à luz do período vivido – “clausura e conversão”. Veja-se, por exemplo, como Francisco Costa reage a uma passagem de as Notas sobre os Sonetos…, na qual António Sérgio afirma, depois de tecer algumas considerações sobre o nirvana, “a vontade irracional explica a ruindade deste mundo”. Num primeiro ímpeto, o poeta sintrense sente a necessidade de dizer “nada explica a vontade irracional…”. Depois, mais aprofundadamente, explana na interrogativa a seguinte tese: “se o nirvana, a abolição da vontade individual, é o alvo de ser, por que motivo esse alvo não foi atingido na eternidade que está antes e há de sê-lo na eternidade que está depois do Ser? Melhor: se o nirvana é a vontade absoluta sendo a abolição das vontades individuais, por que motivo houve um dia vontades individuais e o nirvana não existiu ab aeterno?”.

Mais expressivo do que a transcrição supra é o soneto, uma vez que sintetiza o pensamento de Francisco Costa a respeito da globalidade da obra. De facto, nela foi colhendo as impressões que presidiram à elaboração de “Ad philosophos”, sendo patente que a ideia geral (mote) está definida na anotação feita a página 170 de as Notas sobre os Sonetos…, onde regista: “falta a explicação do Mal. Ah, filósofos! Chegar a Deus por vosso pé! Vaidade! Só podereis achá-lo na humildade. E Ele é que há de baixar, piedoso, a vós…”. Este é, amiúde, o processo adotado por Francisco Costa na elaboração dos sonetos, conforme explica: para fazer um soneto escolho uma ideia diretriz e prevejo a sua realização nas suas linhas gerais. Não sei, no entanto, como a ideia, reforçada de ideias complementares, se distribuirá ao longo dos 14 versos…” (Documento do espólio pessoal de Francisco Costa, anos de 1920).

Celebremos os cem anos de Verbo Austero, lendo as duas versões do soneto “Ad philosophos”. Ambas as versões, na sua essência, não são muito distintas, acontecendo até que a segunda quadra foi mantida na íntegra.


“Ad philosophos”

 

Homens, pigmeus, que insânia vos instila

a vaidade grotesca de pensar

que podereis com vossos pés de argila

subir a Deus, a fim de o desvendar?

 

 Tudo o que a vossa sôfrega pupila

não pode, embora estrénua, divisar

vêem-no os olhos que, por fé tranquila,

se deixaram, atónitos, cegar…

 

 Que fale o coração! A ideia é fria.

rezai! Na prece e não na rebeldia

é que, submissa, deve erguer-se a voz.

 

 Chegar a Deus por vosso pé! Vaidade!

só podereis achá-lo na humildade,

e ele é que há de baixar, piedoso, a vós!

 

(Francisco Costa, março de 1921)

 

 

 

 

 “Ad philosophos”

 

Homens, se toda a crença em vós oscila,

porque vos resta a crença singular

de que podeis, com vossos pés de argila,

subir a Deus a fim de o desvendar?

 

 Tudo o que a vossa sôfrega pupila

não pode, embora estrénua, divisar

vêem-no os olhos que, por fé tranquila,

se deixaram, atónitos, cegar.

 

 Que fale o coração: a ideia é fria.

Rezai! Em prece, e não em rebeldia,

é que deveis erguer a débil vós.

 

 Subir a Deus por vosso pé! Vaidade!

só podereis achá-lo na humildade,

e ele é que há de baixar, piedoso, a vós.

 

 (Francisco Costa, Verbo Austero, 1925)