sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

A mulher do poeta

ADELAIDE BERNARDO

A mulher do poeta sabe que apenas algumas palavras são sobre si.

Derrama lágrimas ocasionais ao perceber outros corpos nas suas palavras.

Mas a beleza das palavras surpreende-a sempre, porque a mulher do poeta ama-o por amor à poesia.

A sua dádiva é o lar de alguém que não pretende subjugar as palavras. Ela sabe-se há muito subjugada por elas. Elas são as grandes subjogadoras.

A mulher do poeta acarinha-o puerilmente. Aceita que não haverá outras crianças. Que o poeta apenas tem olhos para as palavras mesmo quando estes se distraem noutros corpos ávidos de palavras, mas sem a sua serenidade.

A mulher do poeta sente o que este não sente, vê o que este não vê.

Mesmo sem o registo do seu corpo, ela sabe que aquelas palavras também são suas.

Só ela sabe a humildade das palavras por interposta pessoa.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

O Jardim da Castro


ADELAIDE BERNARDO


Licenciada em Português/Inglês, com experiência profissional nas áreas 
 Vivi grande parte da minha vida na Praceta Ferreira de Castro, em Agualva. Foi um óptimo lugar para se viver uma infância: tinha um parque infantil e um jardim. O parque, aquando do programa Polis, deu lugar a um estacionamento. O jardim foi perdendo ao longo da duas últimas décadas o esplendor de outrora, em que era o único jardim da freguesia e o cenário das tradicionais fotos de casamento.
A praceta foi habitada, na década de 60, por muito casais oriundos da migração do interior do pais, em busca de melhores condições de vida do que as que teriam na exploração dos pequenos terrenos agrícolas familiares. Aqui, cresceu uma geração de rapazes (eram quase 30), entre os quais os meus irmãos (nós, raparigas, éramos em menor número), que se reuniam nos seus bancos, sempre sob o olhar de uma qualquer vizinha. O jardim era um espaço familiar, vigiado (pelo olho de falcão da D. Ana e restantes vizinhos) e respeitado.
Mas as gerações crescem e vão à sua vida fora da praceta. Alguns vizinhos mudam-se, outros despedem-se desta vida. As casa recebem novos moradores. Moradores para quem a praceta é o local onde dormem e não o local onde os seus filhos crescem em comunidade na rua. Pessoas com outros valores que não o de vigiar um jardim que o descaso de uns, a falta de empenho de outros e o vandalismo de estranhos foi votando ao desleixo.
Que solução para este local? Muitos gostariam apenas de vê-lo transformado em mais lugares de estacionamento. Esquecem que o verde, uma vez perdido, nunca mais retorna. Outros, a velha guarda, querem o esplendor de há 45 anos. Desenganem-se. O tempo segue em frente e já nada será como era e há que perceber que a solução não pode passar só pela afectividade, que também não pode nem deve ser negligenciada pelos decisores. No entanto, é possível devolver a dignidade a este espaço.
Eu acredito na valorização deste espaço. Terá de ser um jardim renovado, mas diferente de outras décadas. Hoje, os valores e as prioridades são outros.
Hoje, as novas gerações crescem dentro de 4 paredes em frente aos computadores. As mães e avós trabalham a tempo inteiro. Isto é, se não estiverem à procura de um trabalho, o que lhes ocupa igual tempo. Hoje, o medo da violência e represálias de uns quantos vândalos impede a resistência dos mais velhos. Hoje, os valores da cidadania são praticados mas só a nível das exigências e não no que está ao nosso alcance e à nossa frente: a preservação de um espaço que é de todos.
Sempre que retorno à praceta onde os meus pais se estabeleceram após o casamento, criaram três filhos e fizeram amizades de toda uma vida, fico triste com o estado do meu jardim. Tecnicamente, não sei quais as melhores soluções, mas sei que já todas foram apresentadas. O meu senso diz-me que a vigilância e cuidados regulares, a rega e a plantação apropriadas darão os seus frutos. Talvez demore ainda uns meses a ver os resultados desejados. Mas também acredito que um jardim cuidado possa fazer com que novas gerações voltem a sentir o afecto que todos sentimos.
Se mais não posso pedir, posso, no entanto, dar este testemunho. Peço a todos que lutem por este espaço que é de todos e para que este venha a ter um novo esplendor. Merece a freguesia e merecemos todos nós que aqui residimos e trabalhamos. 

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Anoitecer em Amarelo Scotch


FERNANDO MORAIS GOMES
Chove na mente, é um dilúvio a alma, o fim, sempre ele espreitando, sinistra silhueta da esperança fugidia. Encafuado poeta de café, apátrida dos tempos, sombra velha dos espaços, em silêncio calcorreio o pontão sem gente. Como desolada está a praia, cinzenta como o espírito, náufragos de calção circulam aflitos por miragens. Recolho ao carro, e ao cúmplice rádio de roufenhas melodias.

É Inverno no país das flores, de vez foram os cravos furtados das armas, agora apontadas a subjugados prisioneiros no país que foi de Zeca. Volta Zeca, volta de teu túmulo, adormecida guitarra talhada no ventre dum povo culpado por sonhar. O mar provoca, desafia a vencer, qual Gama da nau catrineta, cavalgar a onda, ousando, e logo um atávico apelo a desistir, vencido de si, temeroso. Os amanhãs perdem cor, pardacentos, longe, muito longe, no chamuscado purgatório entre o pesadelo e a ilusão. No rádio do carro passa Kurt Weil, por onde o caminho para o próximo whisky bar?

Escrevo. Apago. Escrevo de novo. Rasgo, despótico. Que fazer? Dar o corpo à arma? Recomeçar, com novos cravos em cano agora apontado a nós? Brancos, desta vez querem-se brancos, alvos e puros. A Primavera fugiu… Volta, és nossa, és Sul, és Sal, e tão longe de Portugal…

Ululantes hordas de conformados patrulham a Cidade, raptada pelo tédio e pelo spleen, assustam-te, confessa. Mudaram as madrugadas, antes límpidas e ledas, agora ameaçadoras, promessa de castigos, cruéis e castradores, estivais armagedeões relampejados. Que fazer para não despertar, para voltar ao filme onde todos são felizes?. Ah, como é puro o cheiro do iodo!

Caneta, papel, umas linhas esculpidas com uma cana no areal, ao lado ujm trilho de passos na areia molhada. Empolga, a canção do CD, são os Doors, albergue de errantes, trôpegos de futuro e sem pedras de gelo. Vamos para Alabama, acolhidos ao whisky bar! Cheers! Lá vai a Sílvia com o caniche, a caminho do Angra, e eu sóbrio ainda...

O Chico emigrou, cansado de desesperar. Emigrou não, globalizou-se. O Zé Luís morre aos poucos, licenciado em currículos e catedrático de bares. Ao Manel surpreendi ouvindo o Zeca, cinco aguardentes durou, no esconso da casa do Gil, só pela madrugada alcançou o nirvana, enroscado no sofá do canto.

No quiosque da praia, anoréticos jornais vendem insegurança e medo, intranquilos, invasores, cardíaco relato dum diário crepúsculo. Aconselhado deixar de ler jornais. Aliás, deixar de ler em absoluto. De tão abusadas, gastaram-se as palavras e analfabetos não descobrimos novas, entre silêncios soltamos enredos, esboçamos adjectivos, talvez se salve o mundo aí pelo quinto gin. Limão. É o limão que tira a piada à vida.

Deixou-me, a Mafalda. Cansou-se. Também eu a havia deixado já, amancebado com o álcool redentor e concubino. Amigo certo, presenteou-me com uma poética cirrose, maleita de intelectual, é o mínimo. Não morrerei de pijama, mas de fraque, não se vai para o outro mundo de pijama. Espero que no tal Céu haja Visa, parece que não deixam levar dinheiro. De partida agora, posso pensar em novas madrugadas com cravos brancos, quero cravos brancos sobre uma laje fria, fica bem nas fotos, com Chopin em fundo, talvez o Fernando faça um poema. Campa, sim, quero uma campa, quero alistar-me no exército das cruzes, entre memoriais de defuntos imortais, nada do irrespirável e tórrido crematório, coisa para frango ou Joana d'Arc.

Neste último texto registo silenciosos gritos, cúmplices cirroses servidas com caneta de aparo. Passou a Ângela no calçadão, trauteio baixinho uma canção de Brel, pelo retrovisor vejo o Max no banco de trás. Grande Max, já partiu, e de fraque, sete Outonos atrás, aguarda-me Max, vou a caminho!

É cruel, a caneta de aparo. As palavras sangram e impiedoso o aparo mata, invasiva arma contra palavras vãs, com tinta preta se deviam proclamar revoluções, gritar esperanças, borrar epitáfios, apunhalar palavras errantes em confidenciais cadernos. 

É sábado. Cristo morreu, Marx também, e eu não me sinto lá muito bem.. São cruéis os dias, e convocam à lassidão do corpo. O homem de Nazaré morreu numa sexta. Aninhado entre pregos de aço, ressuscitou num sábado, hora de Greenwich. Todos os dias ressuscito para tornar a morrer. Melhor ir a mais um gin, no bar. Esfíngico, o sol põe-se no horizonte, não serviu de nada hoje, fugido do Verão, o CD no carro repete o Brel em looping, aguarda, Max, vou já!…. Eis-me poeta de cirroses, servidas em copo alto, em vésperas de Libertação.


quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Telefonia sem licença

CARLOS CAMACHO

Domingos da Silva “Carrenquita”, ou “Esguicho”.

Personagem digno de referência em qualquer parte. Nunca nada nem ninguém o fez ficar sem resposta. Falava rápido e com resposta na ponta da língua.

Não o conheci, já que faleceu antes de eu nascer. Contudo é figura que vem bastas vezes à conversa quando se quer ter piada e apresentar um exemplo. Conheço os descendentes vivos, e conheci os falecidos, quase todos com a mesma resposta directa e mordaz. O falecido “Patíco” ou Pé-De-Chumbo, Francisco Rodrigues da Silva de seu nome, era o que se podia apontar como sendo uma pessoa com graça genuína, impar. Trabalhava com uma junta de bois, salvo erro herdada do pai, o Galante e o Formoso, animais para amanho das terras antes da entrada em cena dos tractores. Foram a última junta de bois de Fontanelas e Gouveia. Ainda me lembro da chamada aos animais “Ó Galante, ó Formoso”, quando queria comunicar com eles, dar-lhes alento, confortá-los.

Também Henrique Rodrigues da Silva, de alcunha entre dentes “Caricoso”, Riques na sua presença,  meu vizinho de 50 anos, porta com porta, carteiro reformado e barbeiro enquanto as pernas e a  vista o permitirem, sempre com uma conversa engraçada e um ditote apropriado. Enquanto miúdo fui quase criado por ele e pela a Ti Isabel, mulher do Ti Riques. Quando ao Domingo de manhã atravessava o caminho para casa deles, ia directo à “Casa das Barbas” a assistir à conversa dos velhotes que lá iam cortar o cabelo e fazer a barba. O meu avô Domingos Tanoeiro, o Henrique Borracho, Lourenço Maçanico, o Domingos Carrombão, falavam entre si se o tempo ia “à chuva”, “borriçava” ou “ia para Nordeste”. Com sete anitos ninguém me calava. O Ti Riques, farto de me ouvir, perguntava: “Queres ganhar 5 Tostões?” “Quero, Ti Riques.” respondia eu. “Então deixa-te estar calado”, fechava o Ti Riques.

O Domingos “Carrenquita” era assertivo e mordaz na argumentação e discurso, ninguém lhe conseguia dar troco verbal, em qualquer que fosse a situação.

No tempo da guerra em que a fome apertava, era comum os rapazes e raparigas de famílias numerosas irem “servir” para casas de famílias abastadas, aliviando a mesa da cozinha. Normalmente não ganhavam nada, apenas sopas de pão, uma manta carregada de pulgas, umas calças com fundilhos e um pontapé no cú. 

Quando um dos filhos aos 9 anos foi servir para Janas para casa do Minguitos Bordalo, este ficou espantado quando ouviu do Carrenquita: “Não é preciso dar de comer ao rapaz”.

 Ah não? inquiriu o Minguitos.

 Remata o Carrenquita “É só pôr à frente que ele come sozinho”.

Noutra ocasião andavam os fiscais à procura de quem tinha telefonia sem licença. Quem não tivesse licença a telefonia era confiscada, com direito a apreensão imediata.

Vinha o Carrenquita a caminho da Taberna da Viúva, estavam os fiscais na mercearia. Abordaram-no e perguntaram se ele tinha telefonia. Responde: “Tenho sim, senhores.” “E tem licença?” perguntaram. “Não senhores, não tenho.” retorquiu o Carrenquita.

Como é que se chama e onde mora?”- perguntaram.

Chamo-me Domingos da Silva “Carrenquita”, mais conhecido pelo “Esguicho” e moro em tal parte.” Vão andando que eu já lá vou ter”.

Assim foi. Foram andando e perguntando e lá chegaram, quase ao mesmo tempo que o dono da casa.

Ao chegar à porta perguntaram: ”Então onde é que está essa telefonia?”

Grita o Carrenquita: “Ó Maria Domingas”.

Sai de lá a Maria Domingas a ralhar com ele quanto podia: “O gado está todo para tratar, foste para a taberna, não tiraste a cama aos bois, as vacas para mugir, és um malandro, só pensas em beber vinho, ... “ .

Vira-se o Carrenquita para os fiscais: ”Aqui está a telefonia! Não tem licença, não se cala, toca alto e podem levá-la quando quiserem”.

Mas ficou...

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

A Crise

EURICO LEOTE


Retomo a minha viagem iniciada há dois dias, quando decidi sair do meu país rumo a um país estrangeiro.

São oito horas da manhã. Já com o pequeno almoço tomado, e pronto para uma nova aventura, faço-me de novo à estrada no meu veículo casa. Trata-se de uma autocaravana com seis anos de vida, que possui as condições mínimas e necessárias para que nela se possa habitar, usufruindo de todas as belezas que a mãe natureza nos oferece.

Apesar da hora matinal sou surpreendido com bastante trânsito, e em especial por verdadeiras caravanas de carros pesados de transporte de mercadorias. São filas a perder de vista, alguns tentando ultrapassar outros mais lentos, o que origina autênticos rolhões no trânsito, apesar das duas faixas para circulação em cada um dos sentidos.

Nas áreas de serviço e de descanso, vou-me cruzando com outras dezenas de carros pesados de todo o tipo e feitio, os quais transportam as mais variadas cargas conhecidas e outras inimagináveis.

A vista não consegue enxergar tantos veículos estacionados, quer nas áreas situadas à esquerda, quer nas áreas localizadas à direita. Sou levado naturalmente a questionar-me sobre a brutal quantidade de veículos em circulação. Sobre o monstruoso consumo de combustível, bem como para a incrível libertação de CO2 para a atmosfera. Ocorre-me à memória a recente paralisação dos camionistas exigindo redução do preço dos combustíveis. Sou assaltado por fortes preocupações relacionadas com a crise dos combustíveis, nomeadamente no diminuir das reservas, da exploração intensiva, dos limites, porque tudo tem um ponto final, e da excessiva e porque não total dependência da civilização moderna pelo ouro negro.

É facto que os camionistas com os seus transportes e movimentos, percorrendo todas as partes e todos os lugares, num mercado totalmente aberto, são uma força de respeito, e suporte financeiro das várias economias por esse planeta fora. E se é verdade que sabemos perfeitamente o que pensam e desejam os homens de negócios, e todos aqueles que vivem e são satélites destes, de certeza absoluta que poucos são os que se preocupam com os comportamentos e reacções que o planeta vai sofrendo, e a maneira como este vai reagindo às ofensas que sofre a todo o instante.

É urgente repensar as políticas energéticas e aplicar as alternativas já conhecidas e menos poluentes. É necessário rever os meios de transporte, reduzir consumos, trabalhar com alternativos, inverter a política consumista e do deita fora para trocar por novo. Estamos a delapidar recursos. Estamos a comprometer as gerações futuras, deixando uma terra esgotada graças à prática da política da terra queimada.

O sol sobe no horizonte apesar de algumas nuvens teimosas, que de vez em quando insistem em cobri-lo por breves momentos. Decido fazer aquilo a que costumo chamar de fazer uma parada técnica. Saio na primeira área de repouso, que me aparece assinalada na estrada. Apeio-me da viatura e dirijo-me para os serviços de apoio. A minha atenção é automaticamente disparada para uma torneira que se encontra aberta, vertendo e desperdiçando água. A nossa água potável. A escassa e cada vez mais poluída água que constitui toda a nossa existência. O elemento fundamental na existência do homem. Aquela mesma água pela falta da qual morrem dezenas de humanos diariamente. Que falta de consciência e sensibilidade planetária.

Alto! Mas o que é isto?

Se por causa dos preços dos combustíveis e da paralisação dos camionistas foi o que foi, como será quando a água potável escassear? Ou estamos demasiado ocupados com o nosso umbigo, que não nos apercebemos do resto, desse resto que é ao mesmo tempo tudo?

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

A imagem do documento

RUI OLIVEIRA


Durante décadas, no contexto da investigação da História Local, quer do concelho de Sintra, quer dos concelhos vizinhos, a Inquirição Régia de 1220 desempenhou e desempenha papel importante. Por este documento ficamos a saber quais as propriedades que as importantes Instituições Canónicas, na época, detinham na Estremadura Medieva do século XIII. O mesmo documento tem, incluso, um Rol das Igrejas Paroquiais da região estremenha, da Cidade de Lisboa e seu termo.

Assim sendo, a vetusta Inquirição Régia, é um documento relevante para a História Local da Região Metropolitana de Lisboa; conhecido há décadas sobretudo devido ao trabalho de Silva Marques e seus alunos de Paleografia, que forneceram várias leituras, nem sempre condizentes devido a vários factores entre eles a natural complexidade de um Latim bárbaro.

Era, sempre o foi, fácil o acesso a tais leituras, deste e de outros documentos, muitas das quais religiosamente coligidas, encadernadas e disponibilizadas em Bibliotecas, em arquivos municipais como é o caso do Arquivo Histórico de Sintra. Acontece que sabíamos do seu conteúdo, mas faltava-nos a imagem do mesmo. Neste caso, podem crer, a imagem é importante porque é desafiadora. Finalmente, a imagem do documento foi disponibilizada ao “mundo”, aos investigadores de História Local, pela Torre do Tombo mercê as novas tecnologias.

É uma bela e esclarecedora imagem!