terça-feira, 22 de novembro de 2016

Du Narish e de outras figuras

NUNO BASTOS





Du Narish, conde de Lá, visita frequente do duque Bemcolirado, anda enamorado por ambas as filhas do duque supra citado. As formosas moças, de nomes Nárriná e Linguá, mostram frontes desejadas por locais e lacaios e gozam de privilégios de ordem vária corpo fora. E tantos são, que pretendentes não lhes faltam, desde galantes cavaleiros a galope, até quixotes que montam mula emprestada.
Du Narish, enquadrado nos aspirantes, pretende assegurar-se de ambas as donzelas, mas o duque, progenitor fero de fogo, faísca ainda pelas ventas quando observa o conde em seus domínios. Foi largada a fúria por ter Du Narish maculado com odor característico o quarto de Nárriná que se via pronta para declinar esse dia. Deveu-se o odor ao aroma nutritivo que espalha o conde sobre si e que escorre corpo abaixo enquanto cobre pilosidades pele afora. Do aroma é segredo que nem vê-lo ou não fosse o conde ciente da exclusividade promissora.
Pois que estava em dias idos o odor em quarto alheio quando o duque, em passagem austera pelos arrabaldes, fungou o cheiro que se escapava, suprimindo a porta que encerrada se fazia. Reagiu veloz à primeira deliberação lembrada que era a de haver um estranho recostado no aposento de sua prole e irrompeu quarto adentro, intentando segurar às forças o malandro que se intrometera com Nárriná. Mas qual fabuloso espanto ao descobrir, recostada nas cabeceiras da cama, a sua mui amada filha, segurando entre mãos um livro que se dizia ser bom e de qualidade. Perguntou-lhe o duque da proveniência de tal odor e respondeu-lhe a moça que lhe desconhecia o paradeiro mas que poderia dar-se o caso de haver surgido rumando pela janela que permanecera dia fora tão escancarada quanto possível. E assim, de semblante satisfeito, deu as boas noites à protegida e extraiu-se do aposento, deixando atrás de si a porta tão cerrada quanto estava.
Novamente o odor, dessa vez ao fazer evoluir o passo austero diante da porta do quarto de Linguá, parando o duque Bemcolirado de ouvido colado à escura madeira que faz a divisória. Buscou voz masculina que salpicasse dos arredores da sua filha, mas nada ouviu e surgiu imponente no interior do quarto, assustando Linguá de tão rápido que aparecera.
Linguá, que se trocava para a noite, quedou-se de susto aberto e cobriu-se veloz com a roupa tirada. Ainda de ouvido atento e de olhar esgazeado, quis o duque saber da origem do cheiro sugado por suas fossas. A moça nada sabia, sugerindo o exterior como fonte da nascente e que algum vento de passagem o havia trazido para o interior. Sossegou-se o duque mas manteve-se de vistas acesas, perscrutando o cenário com olhar caçador. E dando as boas noites à moçoila aturdida, soltou-se dos interiores do aposento e continuou viagem em passo austero.
E tinham três passados quando ao quarto passo declinou a marcha por ouvir do aposento de Nárriná um riso agudo seguido de som de macho que montava a voz de sua filha. Dessa vez, furibundo quanto baste, entrou o duque no aposento, pegando com as vistas azuis, inconcebíveis cenas desenroladas no colchão de Nárriná. Da origem do odor tomou nota também, pois que era advindo do conde desnudado que se quedava tão nu quanto a moça.
Cobrindo-se Nárriná e fugindo Du Narish, largou-se o duque atrás do conde, citando-lhe impropérios e demais palavreado realçado. Du Narish, gritando não ter culpa fez, assim, pior por acusar Nárriná, tornando-a vadia de ocasião. Bemcolirado, de ventas fumegantes, lançou-se num salto tocando ao de leve as arrecuas do conde que se encontravam esbanjantes da substância odorífera que havia escorrido desde matina do topo do crânio cabeludo. Parando depois o duque, avistando a sua mão gordurenta, içou-a rumo ao nariz para sorver bem sorvido o aroma largado. E confirmando a resposta da origem do cheiro, já Du Narish se havia surripiado porta fora, ficando o duque olhando fero para Nárriná. A moça, que cobria as vergonhas, desviava os olhos do pai, baixando-os ao colchão.
Saiu, então, o duque correndo do quarto e entrando no vizinho, pensando encontrar Du Narish com Linguá. Para espanto fantástico, nada havia às vistas de ver, mostrando-se o aposento tão vazio quanto um copo vazado. Veio-lhe às ideias a perseguição do rasto odorífero para surgir de caras com Du Narish e, possivelmente com Linguá. Mas de parte foi posta essa criação por haver odor espalhado por área indefinida e abrangente. E, assim, largou-se sentado no aposento, aguardando a chegada de Linguá na demanda de justificação a propósito do acto de fuga.
Passou a noite e já o galo cantava alto quando Linguá retornou, encontrando as fuças ventosas do senhor seu pai que fumegavam a bom vento. Suspendeu-se a filha de movimentos, pois que trazia pressas nas pernas, gelando congelada diante do duque. Em silêncio se fez a pergunta da localização exacta do tratante a quem chamam Du Narish e disse-lhe a moça que havia regressado às suas terras.
Içou-se o duque do cadeirão e mandou emissário aos domínios do conde que na rápida cavalgadura entregou ordem de duelo a Du Narish. Recebendo e concordando com o anunciado, enviou o conde de volta o emissário aos domínios de Bemcolirado. E tudo se arranjou para o dia do duelo, esperando o duque no lugar por um conde que não apareceu por se haver enrolado, em simultâneo, com Nárriná e Linguá, largando-as ainda antes do retorno do pai. Desse dia em diante, esquiva-se Du Narish das vistas observacionais do duque que se desalma pela caçada do malandro.


quarta-feira, 20 de julho de 2016

Variações sobre um tema de Almeida Garrett

PAULO BRITO E ABREU









( convoco, para a Musa, o Arcano e Arcaico do Sápido Sol )

Pescador da barca bela
Que em falua, vais à noite:
Só d' Amor, a caravela
Quer o vale e quer a vela,
Quer a Lua onde se acoite.

Pescador da bela barca:
Vê no cais Santa Luzia.
No batel, tu nele embarca
Que ele é Célio, que ele é Arca:
Tudo o mais é Poesia.

Pescador da barca doce
Que és a dor e és donzel:
Lusa é flor, e quem a fosse!!!
Sul e sal, que aí me trouxe,
É d' alísio, que é fiel.

Pescador da barca, vede
Que a Raquel é Sol e freira.
Tenho frio, tenho sede!!!
Ó clamor, ó Lia, lede
Barca bela à minha beira.

Que o Poeta sempre pesca
A Nereida, nada nua.
Toda a Flor é quixotesca,
Em Rosália, tu és festa,
- E no fundo, brilha a Lua.

IN HOC SIGNO VINCES

sábado, 21 de maio de 2016

O uso abusivo de palavras em inglês

NUNO BASTOS


O uso de palavras em inglês torna-se num hábito cada vez mais presente na nossa sociedade. E, pessoalmente, creio que essa situação está a passar para um nível abusador, ainda que as razões para tal possam surgir por via de diversas razões. Tentarei, pois, neste escrito debruçar-me um pouco sobre este assunto, não tanto para lhe encontrar uma solução mas mais como uma reflexão (mesmo que pouco profunda).
Começo, assim, por afirmar que se compreende que quando, na nossa língua materna, não existe uma palavra para designar algo, então que se utilize uma noutra língua e se lhe dê uso, integrando-a no léxico utilizado. Este é um processo perfeitamente natural de integração de uma nova palavra numa língua. Não é um processo forçado. Ao longo do tempo, dos séculos, dos milénios, essa palavra “emprestada” tornar-se-á, provavelmente, diferente da original obtida por ter sido modelada pela língua e pela cultura que a acolheu, sofrendo como que uma adaptação à cultura que a recebeu.

O que me parece de difícil compreensão é a situação em que existe uma palavra em português para designar algo e, mesmo assim, utiliza-se uma palavra em inglês para a substituir (e sobrepor-se) à sua semelhante em português. Lembro-me, por exemplo, de “personal trainer” (é o mesmo que dizer “treinador pessoal”); lembro-me também de “running” (que tal utilizar “corrida” em vez de “running”?); lembro-me de “sales manager” (utilize-se antes “gestor de vendas”); lembro-me de “coffee break” (diz-se em português “pausa para café”). E por aí adiante porque a lista é longa.

E mais ainda: nenhumas das palavras que utilizei nos vários exemplos acima caíram em desuso no português; todas essas palavras continuam a ser utilizadas no nosso quotidiano: treinador, pessoal, corrida, gestor, vendas, pausa, café (incluindo, claro, as preposições “de” e “para”).

Custa-me que uma língua tão rica como o português esteja a ser atropelada desta maneira e esteja a ser “escravizada” em prol de uma universalidade que se utiliza da língua inglesa. Nada tenho contra a língua de Sua Majestade e nada tenho contra a importância que o inglês adquire como língua universal nos tempos que correm. É sabido que o nosso mundo está cada vez mais pequeno e mais próximo e alguma tem de ser a língua comum e que sirva de forma de comunicação entre dois povos de diferentes falas (quer seja o inglês a língua de um desses povos, quer não seja e sirva apenas como língua de união); actualmente é o inglês e daqui a alguns séculos será outra língua (isto é apenas a História a avançar, servindo-se das circunstâncias que a constroem).

Bem sei que uma língua não é estática, que evolui e que está em constante mutação ao longo do tempo; o português que se falava há quinhentos anos não era igual ao de hoje. E esta evolução dá-se (ou dever-se- ia dar) por motivos naturais e não para agradar a determinados assuntos ou para parecer mais universal. E sim, já sabemos que o inglês está quase permanentemente presente no nosso dia e que se nos quisermos fazer entender num lugar algures do mundo iremos, provavelmente, expressarmo-nos em inglês (desde que tenhamos, pelo menos, algumas noções dessa língua). Mas nós estamos em Portugal e a língua oficial é o português (e também o mirandês).

Poderão alguns dizer que por estarmos num posicionamento global tendemos a usar palavras ou expressões em inglês para que noutro país se perceba aquilo que dizemos. Muito bem, certo. E compreende-se que um português diga a um vietnamita ou a um sueco “eu sou sales manager” (já traduzindo do inglês o “eu sou”). Mas parece-me abusivo que um português diga a outro português que “sou um sales manager” ou “vou comprar artigos de running” (falando ambos em português). Porquê optar por dizer a mesma coisa mas noutra língua?

Dirão outros que usamos palavras como “mail” ou “net” (de “internet”) e que se traduzem por “correio” e “rede” (que existem e se usam no nosso português quotidiano). E sobre isto podemos dizer o seguinte:

Usamos “mail” para o distinguir do correio tradicional trazido até nossa casa por um carteiro. Dizemos “vou enviar um mail” e dizemos “vou escrever uma carta” (e enviá-la pelo correio). Ou seja, sabemos automaticamente que um “mail” chegará ou será enviado virtualmente e que não é um objecto físico como o é uma carta guardada num envelope com selo. E, da mesma maneira, temos a palavra “net” que distingue um sistema virtual de comunicação do objecto físico “rede”. É claro que (para aqueles, como eu, que não estão permanentemente ligados à internet e/ou que não lhe têm acesso através do telemóvel) podemos sempre dizer “vou à rede” em vez de “vou à net” mas tornou-se usual de forma natural o uso de “mail” e de “net”. São apropriações que se juntaram ao português e que vieram preencher uma inexistência: a não-presença de palavras destinadas a habitar um espaço que é a existência de um mundo virtual e de tudo o que lhe é agregado (a internet); e assim foram integradas no léxico. Temos, claro, o “correio electrónico” e o “endereço electrónico” (que há quem os denomine na versão em língua portuguesa) mas o facto é que a internet é uma espécie de país global (ainda que virtual) cuja língua-base é o inglês (ou tende a ser o inglês). E as palavras que constroem esse país global e virtual não são “personal trainer”, “coffee break” ou “running”.

Termino dizendo que pode, talvez, parecer que estou a querer cristalizar a língua portuguesa tornando-a pura ao máximo. Mas não, nada disso. Apenas pretendo que se usem palavras em português quando elas existem. Por outras palavras use-se “treinador pessoal” e não “personal trainer”, use-se “pausa para café” e não “coffee break”, use-se “corrida” e não “running” e por aí fora. Pretendo que as palavras entrem naturalmente numa língua e não a partir de uma espécie de imposição exterior.

Nenhuma língua e nenhum dialecto são eternos. A tendência é que existam enquanto houver falantes. E, como tal, o português não existirá para sempre. Eventualmente cairá em desuso e desaparecerá (como aconteceu a tantas outras) ou manter-se- á vivo num modo semelhante ao latim, por exemplo. A língua portuguesa fala-se em vários lugares do mundo (ainda que tenha variações locais) e é, em quantidade de utilizadores, das mais faladas actualmente (apesar da maior parte dos falantes não estarem na Europa).

Mas não me parece correcto haver quem opte por, aos poucos, ir esmagando a língua portuguesa, preferindo sobrepor-lhe sinónimos ditos noutra língua. E seja qual for a razão que o leve a fazer isso (o hábito, as necessidades de mercado, as modas, a ignorância, etc) é sempre importante decidir se há, de facto, necessidade em dizer “personal trainer” em vez de “treinador pessoal” (para citar apenas um dos muitos exemplos mas que é substituível por outro à escolha; muitos mais haverá mas, para simplificação, mantive-me repetindo os três ou quatro que utilizei ao longo deste texto).



Conversa aberta. 2 mensagens. Todas as mensagens lidas.

A mostrar O uso abusivo de palavras em inglês.doc.

Offshore

ANTÓNIO LUÍS LOPES











Coloca o meu coração
num offshore
onde não haja inflação
e ninguém chore,
blinda-o com estatutos
irrevogáveis
que outros amores astutos
serão prováveis,

Coloca o meu coração
num paraíso fiscal,
a todos dirás que não,
não sabes nada do tal,
foi donativo de alguém
que nunca viste sequer
e que não vale um vintém,
nem o BCE o quer...

Coloca o meu coração
num offshore
e cria uma fundação
que o adore,
trata da transferência
com mil cuidados,
evitando a turbulência
dos mercados,

Coloca o meu coração
num paraíso fiscal,
a todos dirás que não,
não sabes nada do tal,
foi donativo de alguém
desconhecido de ti,
jurarás por tua mãe
e pelo Santo FMI...

terça-feira, 19 de abril de 2016

Em três parágrafos

NUNO BASTOS


Nuno Bastos formou-se em artes plásticas e desenvolve o seu trabalho, sobretudo, na performance e na escrita. Nas suas performances diz textos da sua autoria.

 

 

Encaro como um aborrecimento a minha tentativa de escrever o texto que agora tendes perante vós e não fosse a minha caneta regular o fluxo contínuo de exteriorização e nunca teria dado início a este disparate. Teria sido mais proveitoso lançar o meu corpo ribanceira abaixo, quebrando um osso aqui e outro acolá ou provocando hemorragias internas devido a embates violentos contra o solo à medida que me fosse despedaçando. Com um pouco de jeito romperia um tendão ou enfiaria uma farpa aguçada crânio adentro ou até, talvez, vazasse um olho. Mas parece-me que a melhor solução será a construção de um segundo parágrafo para que este primeiro se feche.

 

Ora cá está ele, o tal de segundo parágrafo que dificilmente irá adiantar alguma coisa ao seu precedente. Sinto-me até um pouco frustrado por me supor legítimo ao ponto de ter lhe ter dado início, mas o certo é que este segundo só se justifica porque existe um anterior que regulou a vitalidade deste. Apesar disso, continua a parecer-me pouco provável que eu consiga tomar-lhe a rédea e compor nele uma bela história, daquelas que ficam nas mentes das gerações e que passam de pais para filhos e destes para os netos. Será até descabido ver um neto e o seu clã sentados em redor de uma fogueira, ouvindo o ancião relatar o passado neste texto. E creio também que a melhor solução será despachar este escrito do modo mais breve possível para que não fira os olhos de quem o lê. É possível que lhe tenha de adicionar mais umas tantas palavras e frases de modo a que se pareça com um texto aproximadamente legível ou algo que se perceba como tal e que, mesmo que as palavras à vista funcionem como tampão, lhe seja possível penetrar entre as letras e aguçar o apetite com o outro lado. Mas isso aconteceria se, de facto, cada letra deste texto possuísse esse tal de outro lado pois, caso não o tenha, poderá não haver qualquer necessidade de investir no seu interior. Resta-me por agora dizer que vou a caminho do terceiro parágrafo que começa imediatamente a seguir ao término deste, anexando a vil esperança que nele surja algo de inefável e espantoso.

 

Agora que já avanço pelo terceiro parágrafo, espero que este texto se quede por algum término encontrado. E é, sem dúvida, conveniente que venha o ancião e me oferte um par de chapadas em cada face para que eu pare imediatamente a escrita deste devaneio execrável e me estenda solo abaixo, enterrando qualquer sopro que de mim sobre.

 

domingo, 10 de abril de 2016

A Alcobela árabe de Sintra

JORGE LEÃO





Vamos falar de um sítio antiquíssimo, lindíssimo, e com uma história especialmente dignificante. Mas primeiro, precisamos de ir ao Castelo dos Mouros.

Estamos no castelo. Sabemos que estamos no castelo edificado pelos mouros, com a função de atalaia, de vigia, e de reduto em caso de invasões. Cumpriu a sua função de proteger a população moura e os seus bens, nas sucessivas invasões cristãs e normandas, nos séculos IX e seguintes. Em tempo de paz, dele se controlava a imensidão do Atlântico e a vasta planície do território, a Norte e a Oeste. Mas e o Sul? A Sul temos dois montes muito próximos e que nos tapam a visão do resto. Proporcionam-nos hoje uma vista magnífica do Palácio da Pena, com Santa Eufémia à esquerda. Mas na altura seriam dois montes que já impediam a visualização do sul, tanto a costa, que actualmente corresponde à Linha do Estoril, como o mar, especialmente a barra do Tejo e a sua aproximação. E os mouros prescindiam disso podendo fazê-lo, nesses conturbados tempos? Pensamos que não. Como? Ocupando um local da serra suficientemente elevado, a Sul desses dois montes e também evitando o monte da Cruz Alta que fica ainda a Sul e é o ponto mais elevado deste conjunto. De preferência o mais perto possível do castelo, porém, com uma condição:  ter água e madeira com abundância, necessidades primárias na época para a boa habitabilidade de um sítio. Qual é a zona mais perto com estas características?

Vamos descer do castelo. Vamos contornar o monte de Santa Eufémia. É muito perto. Descemos em direcção à actual Igreja de Santa Maria (Arrabalde) mas antes dela viramos à direita. Vamos pela Rua da Trindade, entramos em São Pedro de Penaferrim (Calaferrim), passamos o Largo da Feira, entramos na Rua Dr. Leão de Oliveira e ao fundo desta rua temos a Fonte do Forno. Olhemos. Aqui já temos tudo que precisamos. Uma magnífica vista sobre o mar a Sul, a barra do Tejo e as praias da Costa da Caparica, e Lisboa a nascente. Com água abundante, madeira e terra fértil. Mais à frente, com os mesmos requisitos, temos um recatado sítio, orograficamente muito curioso, muito bonito, a que os árabes deram um nome que chega ainda a 1312 (1) como Alcubela (2),  e que hoje se chama Covelo.
Este encantador sítio foi habitado por população árabe. População que por lá deve ter ficado após a reconquista. É o mais provável nos casos em que a toponímia não muda imediatamente após a vitória militar e a ocupação do território por colonos cristãos. A pródiga toponímia árabe de Sintra é o resultado da permanência dessas populações após a reconquista, com a anuência de D. Afonso Henriques, a quem também interessava essa permanência. E lá continuou a vida.

Com o andar dos tempos e a vontade dos homens acaba por perder o artigo arábico Al, latinizou-se, e no início do século XVII já se chama, na maior parte das vezes, Cobello.

Uma volta à Serra

A Chancelaria de D. Filipe II, em 1606, a propósito da regulamentação das actividades na serra, considerada coutada real, traça-nos dela o perímetro, como ela era entendida na época, começando exactamente aqui, em São Pedro. Vamos lá então, para desanuviar um pouco, dar uma volta à Serra, segundo este documento:

São Pedro de Penaferrim, Ano Bom, Covelo, Linhó, Ranholas, Penha Longa, Ribeira da Penha Longa, Açamassa, Porto Covo, Zambujeiro, Janes, Malveira, Almoinhas Velhas, Figueira, Biscaia, Azóia, Ulgueira, Pé da Serra, Almoçageme, Penedo, Colares, Eugaria, Vinagre, Ribeira de Galamares, Rio (de Colares?) para a Serra até Sintra com seus arrabaldes, até chegar novamente a São Pedro. (3)

14 filhos em 24 anos

Neste século, mais precisamente em 1645, o “Cubello” faz parte do morgado de Baltasar Peles Sinel, mercador, filho de mercadores, abastado e com pretensões à nobreza. Desse morgado, com casa mãe em Barcarena, fazem ainda parte outras propriedades nesta freguesia, em Leceia, Queijas, Santarém, Manique, Outeiro da Boa Vista. O “Cubello” consta de “...terras de pão, E hua Vinha, e mattos, e outras pertenças que trás de Arendamento Rafael Luís, morador no Lugar do Linho junto ao dito Lugar do Cubello...”(4). E o Rafael Luís deve subarrendá-lo, pois por lá moram alguns casais e respectiva criançada. E houve pelo menos um casamento feliz; Semeão Roiz e Maria Jorge levam a baptizar à igreja de São Pedro, entre 1648 e 1672 a seguinte prole, por ordem de vinda ao mundo: Maria, Sebastianna, João, Catharina, Manoel, Engrácia, Domingos, Caterina, Domingas, Domingos, João, Jerónima, Antonia e Antonio. 14 filhos em 24 anos. Foram felizes ou não? Saudáveis parece que foram!(5)(6)

Entre brenhas

Estamos agora no século XVIII. Nas “Memórias Paroquiais” de 1758, o prior Antonio de Souza Sexas que, na maior parte das vezes nomeia laconicamente os lugares só para indicar o número existente de casas e moradores, destaca o “Cobelo” pelo seu carácter algo áspero, e pela vista privilegiada que tem sobre o mar e o Tejo:

“Ha sim na falda desta sera, hum pequeno Lugar chamado o Cobelo, situado entre brenhas, e sô tem de bom, nos poucos dias, em que o deixaó as nevoas, descortinar huma grande parte de mar, e rio de Lisboa; e sô por esta parte da Sera athe o Convento de Penha Longa, he q se cria alguá Cassa de perdizes, e coelhos: tem suas ortas, e pumares de espinho(7) em cujos fructos se entereçaó muito seus donos, recolhendo naó menos algum trigo, e Sevada: tem este lugar 8 fogos, em que rezidem 36 pessoas...”.

O Cubêlo agora é Quinta.

No século XIX, o nosso Covelo sobe pela primeira vez à condição de Quinta e aparece empertigado, em 1825, na Gazeta de Lisboa, orgão oficial do Reino:

“Vendem-se duas quintas, sitas, huma no Linhó, e outra no Cubêlo, termo da Villa de Cintra, que constão de casas, pomares de espinho e caroço, terras de semear curraes etc., ambas tem agua nativa, e são muradas: quem as quizer comprar, falle na loja de livros de viuva Bertrand e Filhos, junto á Igreija de Nossa Senhora dos Martyres, em Lisboa.”

Se na altura foi vendida, não sabemos. Mas o pacato lugar não irá ficar sossegado por outra razão. A propósito da campanha da tomada de Lisboa por D. Afonso Henriques, e se havia ou não tomado Sintra antes de Lisboa, lembra-se o Visconde de Juromenha, em 1838, na sua “Cintra Pinturesca”, de propor, tentando conciliar dados diferentes:

Podia comtudo ter acontecido a D. Affonso haver tomado Cintra, e perdida, recupera-la; ... podia tambem acontecer ter o mesmo Rei tomado antes alguma fortificação exterior fóra da linha das muralhas, talvez no monte que ainda conserva o nome de Cubello.”

Na verdade, a posição privilegiada do lugar parece não passar despercebida a ninguém e António A. R. da Cunha, na posterior edição de 1905, anota:

“Cubello, ou, como hoje se escreve: - Covêlo, - é o monte situado entre a Costa do Pó, e a Cruz Alta. Tem actualmente tres casas de habitação, e a quinta, que é propriedade da Congregação do Espirito Santo, da quinta do Bom Despacho. Disfruta-se d’ali um vasto panorama para o sul e nascente.”

O século XX

No início referimos que iríamos falar de um sítio antiquíssimo, lindíssimo, e com uma história especialmente dignificante. Sim, o sítio é muito antigo, é muito bonito, mas o que tem de especialmente dignificante? A sua história na primeira metade do século XX, que começará exactamente em 21 de Agosto de 1915. Mas já subimos ao Castelo para explicar a utilidade árabe da Alcobela, já descemos, já demos uma volta à Serra, já andámos mil e tal anos. Estamos cansados. Essa história fica para a próxima ocasião. Até lá.



(1)  - Chancelaria de D. Dinis, Livro III, p. 78 vs.

(2) – Segundo José Pedro Machado: “Deve tratar-se duma palavra derivada com o sufixo românico-ela. A palavra primitiva era Alcuba, do ár. Al-qubba, a cúpula. Alcubela será, portanto, cupulazinha e deve referir-se possivelmente a algum monumento religioso que outrora existisse nessa região.” Ver nºs 332, 333, 334, do Jornal de Sintra de 1940, ou separata Sintra Muçulmana, editada em Sintra pela “Imprensa Mediniana”, com estes artigos, ainda em 1940.

Nós acrescentamos, com uma vénia ao ilustre mestre: religioso e/ou defensivo. Uma edificação (com cúpula?) melhoraria a capacidade de visão. Também a orografia do sítio sugere uma cúpula. Veja-se o que refere o Sr. Visconde de Juromenha, mais à frente.

(3)  – Chancelaria de D. Filipe II, Privilégios, Livro I, Fl. 96.

(4)  - Cadernos do Arquivo Municipal de Lisboa. Janeiro-Junho 2015.

(5) – A repetição de um nome próprio deve-se ao óbito do 1º titular? É o mais provável. Neste caso, a insistência no nome tem razões afectivas: Domingos Jorge e Catherina Jorge também são moradores no Cobello. Domingos Jorge parece ser irmão de Maria Jorge. Ele foi o padrinho do 7º filho do casal, Domingos (1658). Mais tarde, a mulher, Catherina Jorge,  será madrinha do segundo Domingos(1665). Além disso, Semeão e Maria baptizam duas filhas com o nome Catarina (1654 e 1660). A par,  Domingos Jorge e Catherina Jorge tiveram quatro filhos, entre 1659 e 1671: Maria, Manoel, Simão e Francisca.

(6)  – Paróquia de São Pedro de Penaferrim, Livro de registos mistos, 1648/1682, Arquivo Nacional Torre do Tombo.

(7)   - Laranjeiras e limoeiros.

Artigo publicado no Jornal de Sintra de 26 de Fevereiro de 2016