Seja
qual for a escala da vida cultural que se tiver em consideração, desde a local
à da região metropolitana e, em muito menor grau, nacional ou internacional, a
primeira constatação a assinalar é a evidência da cada vez mais reduzida
visibilidade e diminuto impacto do Festival de Sintra.
No
entanto, até há relativamente pouco tempo, a situação era totalmente diferente.
A própria experiência no-lo confirma já que, durante décadas, muitos de nós nos
habituámos a contar com os eventos programados pela organização do Festival como
mais uma possibilidade de acolher em Sintra os nomes mais sonantes, por
exemplo, da pianística mundial.
De
facto, o Festival de Sintra era um acontecimento especialmente aguardado. Quem
o frequentava sabia que, pautando-se a programação por rígidos padrões da mais
alta qualidade, podia perspectivar a presença dos mais destacados músicos. Tanto
assim sucedia que, ao longo de anos, com toda a pertinência, bem pude escrever
que o Festival era o mais sofisticado produto cultural de Sintra sem que
ninguém ousasse contradizer.
Atingiu-se
uma tão alta fasquia, que, manifesta e naturalmente, a iniciativa era remetida para
o patamar da excelência. Apresentando-se como o mais antigo, o Festival também
era considerado o de maior prestígio, olhado como paradigma e, no melhor
sentido, ‘invejado’ porque contava
com os meios que lhe permitiam ocupar posição tão destacada no panorama da
música erudita nacional.
Motivos
de ordem vária, cujo enquadramento socio-cultural impõe que sejam devidamente
analisados e registados – com indicação da correcta cronologia das opções estratégicas de sucessivos
executivos autárquicos – resultaram no
actual modelo. Desde já fique muito claro que não estou fazendo quais quer
juízos de valor quanto à qualidade e, muito menos, a cerca de dois meses do
início da próxima edição.
Tendo alcançado ímpar notoriedade nacional e gabarito
internacionalmente reconhecido, circunstância a que Sintra se habituou durante
50 edições, lembrarei que, a título de mero exemplo, no
programa de 2008 apareciam os nomes de Grigory Sokolov, Viktoria Postnikova, Nikolai Lugansky, Kirill Gerstein, Valentina
Igoshina, Denis Matsuev, Larissa Gergieva (que, na altura, era «só» a directora
artística do Conservatório Mariinsky de São Petersburgo), Eldar Nebolsin, etc.
E, novamente, em 2012, o mesmo Grigory Sokolov, nada mais nada menos do que
considerado o maior pianista vivo.
Na
realidade, não é fácil que, a seco e
desapaixonadamente, consigamos articular as memórias de um passado não muito
longínquo, memórias referentes à presença dos nomes mais sonantes, os tais galácticos, com as realidades da
programação actual, cujas características induzem algumas dificuldades de
interpretação sempre que se pretende concretizar o inevitável exercício das comparações com a
qualidade de outros festivais nacionais mais recentes.*
Tenho
afirmado, e confirmo, que é possível organizar um festival, com uma certa
dignidade, sem a presença de galácticos.
De qualquer modo, conhecedor profundo que me considero da história de um
festival que comecei a frequentar ainda garoto de calções, nos anos cinquenta
do século passado, o que não posso é deixar de recordar o seu palmarés
absolutamente honroso, património que exige estar e saber estar à altura de
tamanha responsabilidade.
Um Festival
outro
Pois bem, confiando aos actuais responsáveis pela
programação do Festival de Sintra a difícil tarefa de compatibilizar tão
difíceis ingredientes, seja-me permitido partilhar uma sensação de certo alívio
na medida em que uma alternativa
relativamente recente protagonizada pela Parques de Sintra.
Para o efeito, tenhamos presente que, com o concerto
do passado dia 4 do corrente, terminou o Ciclo dos Serões Musicais do Palácio da
Pena, altura propícia para vos pedir que considerem mais dois ou três
eventos que, com este, se relacionam inequivocamente.
Além desta iniciativa que, em pleno Inverno, explora
os mais evidentes aspectos de uma envolvente ambiental do Romantismo cultural,
tão propício no Palácio da Pena, reparem que a Parques de Sintra ainda é promotora
de mais duas de grande relevância.
Refiro-me, primeiramente, em pleno Verão, aos Reencontros
- Memórias Musicais de um Palácio, privilegiando a produção musical
medieval e renascentista, e, em segundo lugar, às Noites de Queluz - Tempestade e
Galanterie, proposta afecta à música dos períodos barroco e clássico,
em expressos ciclos primaveril e outonal.
Palácio da Pena, Palácio da Vila, Palácio de Queluz, lugares
da maior sofisticação, sejam quais forem as coordenadas geográficas em apreço, que
acolhem uma programação cuidadíssima, do mais alto nível, nos termos da qual
temos assistido a recitais, concertos e ópera concertante, contando com as prestações de alguns dos mais autorizados especialistas
de fama mundial.
Em face deste quadro excepcional de iniciativas, uma
conclusão evidente não pode deixar de se retirar: através desta intervenção
cultural, a nossa Sintra - lugar que se
orgulha da passada fama do seu Festival de Música - está a recuperar e, nitidamente, a ultrapassar aquelas marcas de um
saudoso passado de grande prestígio e notoriedade.
Actualmente, portanto, temos a possibilidade de aceder a ciclos da melhor música de todos os
tempos, em locais únicos, praticamente ao longo de todo o ano! Ao apostar
numa tal estratégia, o Conselho de Administração da Parques de Sintra bem pode
orgulhar-se de já contar com um público que esgota os eventos, público que, das
mais diferentes proveniências, se desloca expressamente para o efeito.
Trata-se de
um investimento à altura dos pergaminhos da Parques de Sintra e que já está a
render os mais significativos dividendos. Este, um novo Festival de Sintra, com a presença de outros galácticos, deslumbrados com as
condições de que aqui dispõem, e dos mais significativos nomes nacionais. Este
o Festival outro, com as suas
diferentes vertentes de música erudita, que percorre mil anos da mais notável
produção musical europeia e já tanto lugar ocupa como iniciativa cultural do
maior prestígio.
Grigory
Sokolov, por muitos considerado o maior pianista vivo, participou algumas vezes
no «antigo» Festival de Sintra
Inequivocamente,
o mais prestigiado dos pianistas portugueses, Artur Pizarro já participou em
eventos programados pela Parques de Sintra, nas "Noites de Queluz,
Tempestade e Galanterie.
*Mesmo tendo em consideração quaisquer dificuldades
financeiras e/ou logísticas na preparação da próxima edição, não consigo
entender que motivos ponderáveis poderão ter inviabilizado a concretização de eventos
na Quinta da Piedade. Não entendo. A afirmação constante de que Sintra honra a
memória da Senhora Marquesa de Cadaval, também passa por manter bem viva a
prática de promover a realização de concertos e recitais naquele espaço quase
mítico, que a mecenas amorosamente preparou e soube abrir aos frequentadores de
um Festival indissociável da sua anual
presença.
[João Cachado escreve de acordo com a antiga
ortografia]
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