sexta-feira, 11 de março de 2016

Música erudita,- o novo Festival de Sintra

JOÃO CACHADO

Seja qual for a escala da vida cultural que se tiver em consideração, desde a local à da região metropolitana e, em muito menor grau, nacional ou internacional, a primeira constatação a assinalar é a evidência da cada vez mais reduzida visibilidade e diminuto impacto do Festival de Sintra.

 

No entanto, até há relativamente pouco tempo, a situação era totalmente diferente. A própria experiência no-lo confirma já que, durante décadas, muitos de nós nos habituámos a contar com os eventos programados pela organização do Festival como mais uma possibilidade de acolher em Sintra os nomes mais sonantes, por exemplo, da pianística mundial.

 

De facto, o Festival de Sintra era um acontecimento especialmente aguardado. Quem o frequentava sabia que, pautando-se a programação por rígidos padrões da mais alta qualidade, podia perspectivar a presença dos mais destacados músicos. Tanto assim sucedia que, ao longo de anos, com toda a pertinência, bem pude escrever que o Festival era o mais sofisticado produto cultural de Sintra sem que ninguém ousasse contradizer.

 

Atingiu-se uma tão alta fasquia, que, manifesta e naturalmente, a iniciativa era remetida para o patamar da excelência. Apresentando-se como o mais antigo, o Festival também era considerado o de maior prestígio, olhado como paradigma e, no melhor sentido, ‘invejado’ porque contava com os meios que lhe permitiam ocupar posição tão destacada no panorama da música erudita nacional.

 

Motivos de ordem vária, cujo enquadramento socio-cultural impõe que sejam devidamente analisados e registados – com indicação da correcta cronologia das opções estratégicas de sucessivos executivos autárquicos –  resultaram no actual modelo. Desde já fique muito claro que não estou fazendo quais quer juízos de valor quanto à qualidade e, muito menos, a cerca de dois meses do início da próxima edição.

 

 

Tendo alcançado ímpar notoriedade nacional e gabarito internacionalmente reconhecido, circunstância a que Sintra se habituou durante 50 edições, lembrarei que, a título de mero exemplo, no programa de 2008 apareciam os nomes de Grigory Sokolov, Viktoria Postnikova, Nikolai Lugansky, Kirill Gerstein, Valentina Igoshina, Denis Matsuev, Larissa Gergieva (que, na altura, era «só» a directora artística do Conservatório Mariinsky de São Petersburgo), Eldar Nebolsin, etc. E, novamente, em 2012, o mesmo Grigory Sokolov, nada mais nada menos do que considerado o maior pianista vivo.  

 

Na realidade, não é fácil que, a seco e desapaixonadamente, consigamos articular as memórias de um passado não muito longínquo, memórias referentes à presença dos nomes mais sonantes, os tais galácticos, com as realidades da programação actual, cujas características induzem algumas dificuldades de interpretação sempre que se pretende concretizar o inevitável exercício das comparações com a qualidade de outros festivais nacionais mais recentes.*

 

Tenho afirmado, e confirmo, que é possível organizar um festival, com uma certa dignidade, sem a presença de galácticos. De qualquer modo, conhecedor profundo que me considero da história de um festival que comecei a frequentar ainda garoto de calções, nos anos cinquenta do século passado, o que não posso é deixar de recordar o seu palmarés absolutamente honroso, património que exige estar e saber estar à altura de tamanha responsabilidade.

 

Um Festival outro

Pois bem, confiando aos actuais responsáveis pela programação do Festival de Sintra a difícil tarefa de compatibilizar tão difíceis ingredientes, seja-me permitido partilhar uma sensação de certo alívio na medida em que uma alternativa relativamente recente protagonizada pela Parques de Sintra.  

Para o efeito, tenhamos presente que, com o concerto do passado dia 4 do corrente, terminou o Ciclo dos Serões Musicais do Palácio da Pena, altura propícia para vos pedir que considerem mais dois ou três eventos que, com este, se relacionam inequivocamente.

Além desta iniciativa que, em pleno Inverno, explora os mais evidentes aspectos de uma envolvente ambiental do Romantismo cultural, tão propício no Palácio da Pena, reparem que a Parques de Sintra ainda é promotora de mais duas de grande relevância.

Refiro-me, primeiramente, em pleno Verão, aos Reencontros - Memórias Musicais de um Palácio, privilegiando a produção musical medieval e renascentista, e, em segundo lugar, às Noites de Queluz - Tempestade e Galanterie, proposta afecta à música dos períodos barroco e clássico, em expressos ciclos primaveril e outonal.

Palácio da Pena, Palácio da Vila, Palácio de Queluz, lugares da maior sofisticação, sejam quais forem as coordenadas geográficas em apreço, que acolhem uma programação cuidadíssima, do mais alto nível, nos termos da qual temos assistido a recitais, concertos e ópera concertante, contando com as prestações de alguns dos mais autorizados especialistas de fama mundial.

Em face deste quadro excepcional de iniciativas, uma conclusão evidente não pode deixar de se retirar: através desta intervenção cultural, a nossa Sintra - lugar que se orgulha da passada fama do seu Festival de Música - está a recuperar e, nitidamente, a ultrapassar aquelas marcas de um saudoso passado de grande prestígio e notoriedade.

Actualmente, portanto, temos a possibilidade de aceder a ciclos da melhor música de todos os tempos, em locais únicos, praticamente ao longo de todo o ano! Ao apostar numa tal estratégia, o Conselho de Administração da Parques de Sintra bem pode orgulhar-se de já contar com um público que esgota os eventos, público que, das mais diferentes proveniências, se desloca expressamente para o efeito.

Trata-se de um investimento à altura dos pergaminhos da Parques de Sintra e que já está a render os mais significativos dividendos. Este, um novo Festival de Sintra, com a presença de outros galácticos, deslumbrados com as condições de que aqui dispõem, e dos mais significativos nomes nacionais. Este o Festival outro, com as suas diferentes vertentes de música erudita, que percorre mil anos da mais notável produção musical europeia e já tanto lugar ocupa como iniciativa cultural do maior prestígio.

 

Grigory Sokolov, por muitos considerado o maior pianista vivo, participou algumas vezes no «antigo» Festival de Sintra
 
Inequivocamente, o mais prestigiado dos pianistas portugueses, Artur Pizarro já participou em eventos programados pela Parques de Sintra, nas "Noites de Queluz, Tempestade e Galanterie.



*Mesmo tendo em consideração quaisquer dificuldades financeiras e/ou logísticas na preparação da próxima edição, não consigo entender que motivos ponderáveis poderão ter inviabilizado a concretização de eventos na Quinta da Piedade. Não entendo. A afirmação constante de que Sintra honra a memória da Senhora Marquesa de Cadaval, também passa por manter bem viva a prática de promover a realização de concertos e recitais naquele espaço quase mítico, que a mecenas amorosamente preparou e soube abrir aos frequentadores de um Festival indissociável da sua anual presença.

[João Cachado escreve de acordo com a antiga ortografia]

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