Pedro Pereira tem 25 anos e ambiciona ser um escritor e jornalista depois de se licenciar em Comunicação Social.
IV. “ No sangue de Sintra corre o vinho, a serra e o mar. No Monte da Lua este sentimento não é só uma ideia, mas a lei. “
- Oliva
Correia
As chamas erguiam-se alto no céu,
beijando a Lua que observava tudo, olho pálido no céu azul, iluminando a cena
com uma beleza macabra.
Em silêncio, já há muito desprovidos
de vida, ardiam os corpos daqueles que me tinham vigiado no sono.
Ardiam amarrados a estacas de
madeira, erguidos a um metro do chão, tinham sido atados como porcos num
banquete, pouco mais do que animais para o matadouro. Sentia o cheiro da sua
carne chamuscada, da pele carbonizada e do sangue a ferver, escorrendo do
corpo.
Na praça principal da vila não havia
vivalma, apenas sombras, caminhando discretamente sob a luz do Luar. Eram não
mais do que vultos, escorraçando por entre as ruelas e escadarias da vila.
Percebi de imediato que não estava
onde devia estar. Fosse onde fosse, esta não era Sintra, vila romântica,
paraíso dos escritores e ode da vida, mas sim uma versão corrompida, torcida de
um lugar esquecido.
Continuava a existir o Largo da
Rainha D. Amélia, praça central da vila, assim como o palácio e todos os
edifícios circundantes, mas ao invés de uma pacata vila, centenas de pequenas
casas erguiam-se umas sobre as outras.
Não mais se via as cores vibrantes e
vivas, pois todas elas cobriam-se de cinza e escuridão. As torres bicudas das
casas centenárias multiplicavam-se, cheias de ornamentos e detalhes,
empoleiradas em cima de outras casas, neste lugar, onde quer que este lugar
seja, a vila crescera à velocidade da vegetação e tornara-se uma urbe estranha,
gótica e retorcida.
Estátuas e gárgulas presenteavam
cada canto da praça, as varandas e as janelas, seres de mármore em vigia
permanente, causando em mim o desconforto de estar no meio de seres em tudo
irreais.
O largo estava gradeado e só consigo
ver os corpos a arder por entre as brechas do metal, de certa forma sinto-me
mais seguro daquele lado das grades. Também no Largo se vêem estátuas.
Inicialmente confundia-as com
pessoas, presenciando a queima das pobres almas nas estacas, mas ao habituar os
meus olhos à noite clara percebi que eram apenas pedra, ali não residiam almas
vivas, mas sim fantasmas selados num sono de pedra.
Tento contar uma a uma o número de
estátuas, mas depressa perco a conta. Creio que devem rondar uma centena. Todas
elas representam pessoas, de caras cobertas de véus, de braços de pedra fria, esticados
em direcção à Serra ou ao palácio, rogando por algo.
São estes os habitantes deste lugar,
lugar a que recuso a chamar Sintra? Pedras silenciosas num local tenebroso,
onde o som do mar chega e confere ao largo um ar soturno, um mausoléu,
enterrado no coração de Sintra, mas igualmente nas profundezas do mar?
Olho para cima, o coração palpitando
com força, acelerado por um crescente medo, um temor desconhecido.
Em Sintra seria aquela seria a linha
por onde desce o nevoeiro gentil e cobre o pico da montanha, escondendo no seu
véu o palácio e o castelo, revelando apenas as altas árvores da floresta que
banham a orla da vila. Ali o nevoeiro era mais espesso, mais negro e invés de
banhar, engolia para a escuridão as infindáveis torres e casas da não tão
pequena vila.
Toda aquela visão negra e grotesca,
onde as próprias construções pareciam erguer-se como dedos frios na noite era
observada pela Lua, pálida, sempre atenta e fixa.
Sempre associei aquele lugar a um
paraíso na Terra, onde a natureza coexistia com o homem. Lar da poesia e da
música, agora era só um túmulo.
A serra sempre fora carregada de
espiritualidade, de uma energia discreta, que muitos abraçavam de bom grado.
Ali era quase palpável.
Encarnava os edifícios, as estátuas,
a floresta, o nevoeiro, o vento e o próprio ar que se respira, assumindo uma
identidade viva que manipulava e alterava a própria natureza do que tocava.
Fechei os olhos, mas ao voltar a
abrir estava tudo na mesma, aquele lugar era real, por mais que parecesse um
sonho, e mesmo assim todo aquele lugar continha em si o irrealismo de um sonho,
vivendo tal como um, pelas suas próprias regras.
Estava preso num sonho qualquer,
aliás, num pesadelo qualquer, que não o meu. Sonhado por alguém ou algo com a
capacidade de nos prender nesse lugar, sonhado por algo incompreensível, cuja
visão do mundo é retorcida e incompreensível, fazendo sentido só a ela.
Olhei a Lua, parecia ainda mais um
olho vivo, fixa em mim. Não havia nada de convidativo nela. Despia-me e
analisava-me.
Tremi e encolhi-me diante daquele
olho pálido sem pálpebra. Ela era a rainha no céu, vigiando sem descansar a
serra, tudo parecia andar à volta dela.
Lembrei-me do que um dia li num
livro. Ao que parece muitos povos chamaram a Sintra o Monte da Lua e que ela
era o astro que regia a vida espiritual da Serra.
Vendo-a lá no alto, consegui
perceber as crenças desses povos, percebi o quão incontornável era aquele olhar
para aquele lugar, e percebo agora onde estou.
Esta não é Sintra dos homens, vila
romântica portuguesa. Este é o monte da Lua, sonhado e criado pelo seu olhar
permanente, e eu encontro-me lá preso, tal como os corpos que ardem nas
estacas.
Engoli em seco e desviei o olhar,
tinha que me esconder daquele olho. Se é que existisse algum lugar assim na
serra, longe daquele luar.
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