quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Um Grito 2

EURICO LEOTE 

Olhando nas profundezas do tempo revejo-me de escasso cabelo branco e alquebrado.
Arrasto-me num mar de cinzas perdido nas recordações.

Olho e não vejo. O nevoeiro é denso. Receio monstros no meu imaginário. Recuso o despertar. Refugio-me nas sombras ao abrigo do desconhecido.

Bato em vão às portas fechadas. Ouso espreitar às ralas frinchas.

Espevito o pensamento à luz de uma vela. Sinto-me vidrado a cada dia que passa.

Semi-cerro os olhos ao flash incandescente.

Protejo os ouvidos do murmurar contínuo e inconsequente. Do batuque ensurdecedor e distractivo. Do apagador de consciências. Do varredor de quereres e de mudanças. Do escrito ponto final tão do desejo de muitos bonifrates. De palhaços amestrados que arrotam bazófias e lixo, e cobras venenosas sibilantes por cima de tudo o que seja mudança, alteração, inverso.

Ah! O inverso. O difícil e procurado inverso. O inverso na busca do reverso. O desejo, a esperança, o caminhar com sentido contrariando o comum dos mortais.

O oásis na solidão. A esperança ténue mas não menos esperança. O abismo, o fim.

A revolta, o desejo e sempre a luta. A luta diária. O último horizonte. A eterna busca do melhor, do perfeito e do belo.

Ah! Quão ilusória e passageira é a vida. Curta existência para tão mau viver.

Viver inconsequente e desgarrado. Vidas sem sentido, ocas e vazias. Perdidas na labuta diária. Perdidas no tempo e levadas no fumo do nada. O nada que é tudo e alguma coisa, e que por fim se reduz a cinza e a pó. Ao quase nada.

Efémera passagem para quem se recusa a viver uma existência activa e participativa.

Surgem-me pensamentos turvos e delinquentes. Quero seguir mas não sei por onde.

Cansa-me a existência. Busco em vão. Todas as portas se fecham. Vivemos todos de costas uns para os outros.

Não ousamos olhar olhos nos olhos. Não ousamos assumir. Arrotamos palavras balofas e sem sentido. Escondemo-nos atrás das palavras para deixar que o problema se resolva por si próprio no tempo, ou pelo esforço pessoal e individual.

Escondemo-nos nas palavras para não fazer e levar os outros a desistir de fazer.

O que engrandece o homem que é fazer e deixar obra feita, é aproveitado pelos que nada fazem e apenas recolhem o produto. Os doutos de palavra que estão sempre na primeira linha prontos a emitir um grunhido em nome dos que vergaram as costas. Servem-se da mentira para falar meias verdades. Aproveitam-se da inocência e das boas vontades para alcançarem os seus espúrios intentos e objectivos. Objectivos deles e só deles. Deles e dos seus apaniguados. Das palmadinhas nas costas e mãos estendidas. Dos corruptos e dos corruptíveis. Dos beija mão e dos golpes de cintura. Dos infectos, dos amarelos e apodrecidos à sombra do nada.

Há que dar a volta a isto. A isto e àquilo e ao outro. E ao que parece mas não é, e ao que sendo não parece, ou que se procura camuflar de tão repetido, de tão gasto que conduz ao esquecimento. Aí estão os objectivos deles a serem cumpridos e atingidos.

Avaliação feita, são os maiores, os intocáveis, os inimputáveis à sombra de gentes adormecidas, cansadas das mentiras, sem força para subir a voz e gritar alto. Espoliadas do ser.

O querer há muito se esfumou. Os sonhos há muito que se pagaram agarrados a uma existência solitária, triste e cinzenta.

Ah! Não ser eu. Deixámos de o ser. Passamos a marionetas manobradas por mãos doutas e hábeis, que nos conduzem nos carreiros empedrados e empoeirados, ao lado das largas e amplas avenidas onde se passeiam e pavoneiam de cara virada ao lado e sobranceira.

Caminhamos arrastados. Arrastamos as nossas dúvidas, as causas dos outros e sofremos uma consequência colectiva e amordaçada.

Continuamos a consentir incapazes de dar a volta ao texto. Ao texto que se escreve há muito sobre linhas tortas. Ao texto sem contexto que é pretexto para justificar toda a diarreia que deitam cá para fora, enquanto flutuam nos braços da segurança e impunidade.

Os tempos vão cinzentos, como cinzentas as almas e negros os corações. Empedernidos os dos outros, daqueles que sorriem às luzes da ribalta, perante as câmaras e os compadres e os apaniguados.

Os outros vivem na sombra. Acendem com o seu esforço e suor essas mesmas luzes da ribalta. Ficam encadeados e cegos. Morrem produzindo, servindo, despidos do nada.

São os suportes, as estruturas. Mas o que lhes dão senhores? O que recebem em troca? Às vezes nem um esgar e muito menos um olhar. Os murmúrios mal se ouvem. São balbuciadas palavras sem sentido, no sentido de justificar o injustificável. Mais no sentido de calar e derrubar qualquer tímida ave que ouse fazer um breve ruído com o seu curto bater de asas.

Tristes aves feridas de asas murchas, que se debatem no crude da vida, buscando a sobrevivência perante a águia astuta e possante, de garras aduncas e afiadas.

Triste recordação e semelhança com uma águia de má memória, que lançou o luto no mundo inteiro e que durante 5 longos anos perpetuou as trevas entre os homens.

Vá de retro figurativo animal, livre esbelto e possante, cuja energia e pujança foi maldosamente explorada e aproveitada pelo maligno animal homem, em nome de coisa nenhuma. Abjectas criaturas, mais abutres que outra coisa. Que permaneçam para sempre enterradas mas nunca esquecidas.

Esforço-me por levantar a cabeça e erguer os olhos famintos. Estou farto e cansado de me arrastar num submundo abjecto criado artificialmente para manter sempre tudo no mesmo sítio.

Basta de me arrastar na lama da indiferença. Do está tudo bem e para pior já basta assim.

Levanto os olhos com ardor e raiva. Pena de mim próprio. Sacudo o torpor. Afasto a melancolia que me invade. Mando para longe as mágoas e sinto-me transformado num valente guerreiro montado no seu cavalo de vassoura de pau, que parte desabrido em busca dos maus da fita, prometendo sarar as feridas e por o mundo a girar ao contrário. Sim, talvez seja isso o necessário e suficiente para colocar tudo direito e no devido sítio. Boa, cavaleiro andante. Vai cumprir a tua promessa de virares o mundo às avessas. Vamos, não desfaleças, todos dependemos de ti, do teu ardor e labuta. Estamos confiantes no teu desempenho.

Pouf! Despertei para a realidade. O meu cavalo tropeçou e a vassoura partiu-se. Efémero e com pés de barro cavalo e cavaleiro. Falho de armas, mas não de argumentos, com o senão de os argumentos não colocarem pão na mesa, nem serem solução para quem está despido.

Um primeiro erro é depositar total confiança num só homem para a resolução dos problemas que são de todos.

O segundo erro é não assumirmos e tomarmos nós em mãos a resolução dos problemas que nos afligem

Sem comentários:

Enviar um comentário