quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Já não se pode ser feia

ANA MARTINS 

Sabem aquela frase estafada, que se ouve de passagem - já a causar náusea - que de tantas vezes por tantos repetida como verdade absoluta se descredibiliza e torna oca? 
«Teve uma ideia, tão original e tão esquematizada em máxima sentenciosa, que se tornou um lugar-comum e perdeu a originalidade. Mesmo para quem a criou.» 
Vergílio Ferreira 
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Será até um dos muitos mitos urbanos de tanto que se enfatiza a importância que se atribui à beleza interior. Ahhh, fulana é linda por dentro e por fora, ou não interessa a aparência de cicrano, mas sim o interior, aí sim se encontra o verdadeiro encanto. A mim, confesso, dá-me uma instantânea vontade de rir, quando aquele filme paralelo que tem acompanhado a minha vida, aquele que - qual vida de brian - segue direitinho o meu raciocínio normal a cada situação, mas em versão cómico-apalermada: Beleza interior? Ah sim, deve ser uma beleza o cheirinho do estômago, e o borbulhar acre dos sucos então devem ter cá um encanto... e os intestinos? bom, nem me adianto no caminho fácil e previsível de pensar na piadola escatológica. 
A beleza existe. Em todo o lado que se olhe. Basta ver o ângulo certo de cada objecto, ser ou momento. Devia ser obrigatório activar a tecla do sentido estético à nascença, mas aí, já nem faria sentido nada do que estou a escrever. 
Outro dia ouvia os geniais Filipe Homem Fonseca e Eduardo Madeira numa entrevista de rádio, falavam da COMMEDIA GOURMET que anda pelo país fora a arrastar o Eduardo Madeira de guitarra às costas, com um menu esfuziante de Stand Up Comedy, servido numa cama de Música em redução de trufas gargalhadas, em espuma verde de boa companhia... algo assim. Brincava com o que nos servem em Gourmet, com nomes tão elaborados que quando acabam de se pronunciar já não há nada do pouco que vinha no prato, falava de apetecer uma almoçarada de boa comidinha portuguesa quando o Filipe Homem Fonseca se sai com o título alternativo perfeito: COMMEDIA BITOQUE e enquanto me ria pensava: olhó filme cómico-apalermado ali a gritar!

O cliché do gourmet versus bitoque é idêntico ao síndrome da beleza exterior/interior, ou até - o do meu filme cómico - que poderia chamar naturalmente de Bota da Tropa/Bebé Beatle... ok, ok, eu explico. 

Quando nasci, contam que vinha com uma guedelha que teve de ser cortada (penso que terá mesmo sido com a tesoura do umbigo), porque a minha proverbial franja era então uma melena que me dava pelo queixo. Ora sendo o ano de '63, logo as enfermeiras me deram a original alcunha de Bebé Beatle. Lembro da minha avó contar que, olhando o berçário, outra avó lhe perguntou qual seria o neto, a que graciosamente a minha avó respondeu tufando o peito, a menina mais bonita, a que tem cabelo. Ora se nasci gira, e era gira na escola ou no local onde a família passava férias, em abono da verdade isso constituía um facto que vivia comigo, a que com toda a sinceridade nunca liguei pevas. Cresci meio maria-rapaz muito mais preocupada no prazer de andar de bicicleta, subir às árvores sempre na chinchada ou bater nos rapazes para defender a minha irmã. Quando algum moço mais afoito pensou em derriço para o meu lado, e soltou a frase: Ah és tão gira, respondi-lhe secamente: E...? 

Ok, hoje, cá do alto dos meus quase 50 anos, sei que se tivesse nascido feinha como uma bota da tropa, teria certamente ligado e muito a esse simples facto. Muito provavelmente ter-me-ia resguardado na grande personalidade e na imensa beleza interior que certamente (definitivamente!) teria em minha defesa. 

E agora pergunto: e porque é que uma bota da tropa tem de ser feia?, e o que é que vem à lembrança? (lá está ela...) aquela foto que há dias fiz pin numa rede social dessas que todos usamos por ter achado uma ideia gira. É a forma como olhamos o que nos envolve: Tudo, mas tudo tem o seu encanto. E olhando pelo cantinho certo, pelo ângulo que mais ninguém se incomodou de vislumbrar, descobrimos que nem uma bota da tropa consegue ser feia.

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