O romance de estreia de António Tavares,
As Palavras que me Deverão Guiar um Dia,
finalista do Prémio Leya 2013, anuncia um autor raro no campo da filosofia da
construção romanesca, privilegiando menos o realismo (teoria hoje dominante no
romance português) e mais uma visão estética na composição da narrativa. O
autor foi igualmente galardoado com uma menção honrosa no Prémio Literário
Alves Redol de 2013 com o romance O Tempo
Adormeceu sob o Sol da Tarde, ainda não publicado (cf. “António Tavares.
Vereador da memória”, de Luís Ricardo Duarte, “JL” de 3/9/14). João Céu e Silva
não hesitou em classificar este romance como “um dos livros mais inovadores que
esta rentrée literária de 2014 deverá
oferecer” (QI, “Diário de Notícias” de 6/9/14)
Poucos são os romancistas estetas hoje.
Porventura Vasco Graça Moura, José Sasportes, António Mega Ferreira e alguns
textos de Hélia Correia, sobretudo Adoecer,
a que se junta agora, com justiça, o nome de António Tavares. Esteta é o autor
que, na composição dos seus textos, privilegia as referências culturais
(história da música, da literatura, da pintura, da ciência…) às referências da
realidade social imediata e exterior (o realismo). O seu intento é continuar,
prolongar com subtileza, o longo entrelaçar milenário da história da cultura,
evidenciando que as ideias, as imagens, os sons estéticos e culturais criados
pelo homem modelam, ou podem modelar, a realidade exterior, agindo nesta de um
modo transformador e, até, revolucionário, perfazendo, assim, a construção de
um mundo do espírito paralelo ao mundo social e político. Esteta é o autor que
vê o mundo através dos óculos históricos da cultura, da arte, da ciência,
aquele que para toda a situação existencial encontra o seu modelo e motor no
mundo paralelo da cultura. Neste sentido, esteta é todo o autor que, mais do
que se inspirar na realidade exterior, se inspira no passado histórico da sua
especialidade artística. No caso de António Tavares, na história da literatura e
do pensamento europeus. Só no “Prólogo” e no primeiro capítulo, constituído por
7 páginas, o autor enuncia mais de doze autores, evidenciando assim o
esteticismo do romance.
António Tavares confessou a Gonçalo F.
Santos, da revista Time Out de 27 do
passado mês de Agosto, que as personagens dos seus romances têm equivalências
literárias, “Neca, por exemplo, é tão pontual como Kant”. Com efeito, o
narrador de As Palavras que me Deverão
Guiar um Dia vai assentando num caderno, ao longo da passagem da puberdade
para a juventude, as reflexões pessoais sobre os acontecimentos havidos no seu
bairro da cidade de Moçâmedes (Angola), registando um paralelismo harmónico
entre os acontecimentos do bairro e situações semelhantes descritas pelos
autores em romances e ensaios. Consoante o narrador vai crescendo e bairro vai
mudando ao longo da década de sessenta (passagem de moradias para prédios de
apartamentos, encerramento da mercearia e abertura de um supermercado, morte de
habitantes, aparecimento de novos modelos de carros, emergência de novos
costumes, rodagem de um filme com cenas ostensivas de sexo…), vai registando no
caderno, posteriormente passadas a romance, as “palavras”, isto é, as cenas ou
personagens de romances e as mensagens de ensaios que o “deverão guiar um dia”.
A realidade conforma-se com a literatura e o texto, constituído por palavras,
evidencia-se como um outro e novo mundo, tão ou mais relevante que o primeiro:
“Se as palavras nomeiam as coisas – que o mesmo é dizer, este meu mundo – mas
também dão existência à realidade, aqui fica ela [no conteúdo do romance], toda
a minha realidade” (p. 9). Não admira que o romance termine com o levantamento
de uma biblioteca numa velha carrinha da Gulbenkian e, depois, com a oferta de
todos os livros aos habitantes do bairro. Ficou apenas um: o caderno, que se
transformará no romance ora publicado, isto é, na realidade verdadeiramente
pensada e vivida.
Assim, o esteticismo de As Palavras que me Deverão Guiar um Dia
reside justamente na conformidade da descrição da realidade do bairro e das
personagens com trechos de romances clássicos ou de pensamento de ensaios
famosos. Por exemplo, nas primeiras partes do romance, o narrador tem por
hábito subir à copa de uma árvore e daí contemplar as pessoas, exactamente como
a personagem Cosimo de O Barão Trepador,
de Calvino. De facto, este processo de identificação de situações narradas com
trechos literários ou filosóficos constitui-se como motor narrativo de todo o
romance e confere, de certo modo, um tom melancólico à narração. A melancolia é
expressa, não através da análise psicológica das personagens, mas através da
sucessão contínua de acontecimentos que, sob a impotência do narrador, que
desejaria contemplar um mundo mais estável do alto da árvore, alteram
profundamente a face do bairro. Da copa da árvore, o narrador observa a outra
personagem permanente, Luísa, a menina sem mãe que chupa limões, habitante num
ferro-velho com o pai e as três irmãs, que partirão; no final o pai também
partirá, entregando a sucataria ao narrador. Este, já na década de 1970, irá à
guerra, combaterá, sofrerá um ano de tortura preso a uma árvore e, no final,
regressará para abraçar a menina, agora rapariga, e viver com ela.
Das nádegas lésbicas da São modista aos
prédios do Ivo mudo, da menina da mercearia sujeita a violência doméstica e
depois fugida com o charmoso Cunha Mendes à dona Alice, mulher do copofónico
Santiago e futura amante da São modista , do puritano e oportunista Amadeu à
repressão moral do padre Neves, do Neca pontual, carregado de remorsos, ao
congolês enfermeiro Tyrone, do Américo preso pela vida a uma máquina à Aninhas
deprimida finha do defunto senhor Leal, da Dona Vitória carnal e adúltera ao
marido ferroviário ausente, do Bill cineasta à incandescente Mila actriz… é, de
facto, o mundo a passar debaixo da
árvore do narrador, levantada entre um montão de tralha de sucateiro.
Por fim, tudo passou, só as palavras
ficaram como monumentos imorredoiros.