sábado, 21 de junho de 2014

Cerejas

BÁRBARA JORDÃO RODHNER


Caíram-me as cerejas quando a porta  da entrada de casa bateu. Tinha sete anos. Estava sobre o tampo de uma sanita para ficar à altura digna de um abraço adulto quando ouvi.:

" - Chegou a hora de eu partir."

Era a repetição de uma primeira vez , que eu não me lembro e faço questão de me esquecer. A partir daí a minha mãe trabalhava mais horas, e eu já não podia mais comer cerejas de boca cheia, a escorrer " sangue" ; a lavagem dos vestidos estava legitimamente controlada.

Ainda hoje tremo quando as vejo na beira da estrada ...

Aos fins de semana ia para a minha avó que corrigia testes no escritório e me deixava na cozinha entre tachos e  outras coisas como bacias que transformavam comida normal em ouro através das doces mãos da nossa querida Saravitch ( como o Joaozinho a baptizou )

- Oh menina, coma lá isso com prazer, não se preocupe com as camisas que a Sara esfrega-as tão bem que ficam a brilhar como novas!

A minha vida foi somente isto, o oposto "perfeita", sem falha de malha, entre o real e o real; mas o real em si tem tanto que se lhe diga e pode ser e é tão diferente dependendo de quem o vê.

Hoje sou "crescida", 33, Idade de Cristo , como se diz sempre por aí .

"- Podias ser mais normal Bárbara Jordão "  - Ás vezes penso de mim, para mim.

Podia; senão fossem estas cerejas que nascem e murcham a cada instante dentro de mim; esta dualidade imensa entre a inocência em si e a saudade dessa inocência que perdi.

Quando escrevo publicamente o que sinto ligam-me a perguntar .:

"- Prima, estás doente ?"

- Doente sendo isso o quê?  

"- Sei lá, triste... Deprimida...?"

- Mas se tudo o que sou e sempre fui é uma espécie de tristeza azul poética; achas que estou doente ?

" - Não ." ( sorri)

- Então ... ( sorriu também )

Amo as pessoas que amam de verdade, que se preocupam mas só até ao ponto saudável de querer confirmar que está realmente tudo bem, essas são as que me conhecem ; não gosto de quem interferem no processo criativo vivencial de cada um, acho isso uma necessidade de controlo esmagador. 

Imaginemos que ligávamos aos " mega cromos" do sucesso financeiro e lhes perguntávamos se estavam doentes por fazerem mais um milhão ?

Eu cá ligava, mas era para pedir uns míseros 1.500€ que não tenho e me fazem tanta falta para fazer umas obras na casa que com a tempestade frenética deste inverno se estragou.

Dizem sempre que o suicídio é genético , assim como o cancro, ter olhos verdes e essas tretas todas; eu acho que nunca me vou suicidar porque o meu gosto é pela vida é esse mesmo; enorme mas não por uma vida "eufórica" , estupidamente feliz,  que nos vendem nos retratos publicitários. Eu também os sei compor, repor , estudei design de comunicação , edição de vídeo e argumentação , e uso-os com prazer para depois os desfazer; é a aí que reside a lição .:

Não está, nem tem de estar sempre tudo bem! O que eu gosto na vida é essa sua franca fragilidade, como uma andorinha que voa tanto no sol como na chuva ; agora estamos bem, depois já não; paciência !  É a paixão por aquilo que não se vê , que não se explica mas que está aqui, em todo o lado , como um contorno sobre o contorno do que foi feito sem sequer ser imaginado .

Eu imagino as coisas ; coisas que, porque existem dentro da minha cabeça, passam a existir cá fora;  num lugar muito especial, só meu.

Coisas que não são para curar, nem para largar, nem para arrumar porque são as minhas coisas, as coisas que escolhi deixar ficar porque me distingue dos demais.

Quando deixei de poder comer cerejas porque sujava realmente muito a roupa que a minha mãe limpava , sozinha e cansada, passei a coleccionar selos; assaltava caixas de correio e tirava-os com uma pinça e vapor de água quente ( depois devolvia as cartas , juro!)  passei a cola-los todos  num caderno preto improvisado e garanto-vos, com toda a inocência que ainda existe no meu ferido coração , lambe-los sabia-me a cerejas e limão *

2 comentários:

  1. Cerejas! um fruto tão apetitoso como os nossos sonhos de menina, tão rubro como os lábios que beijam e os corações que palpitam e anseiam alegrias...Cerejas...símbolo de uma memória que teimosamente perdura no tempo e no espaço; As árvores morrem de pé, as cerejeiras ramificam o quanto baste para nova floração....e nascem cerejas, redondas e brilhantes como o firmamento azul e infinito abriga estrelas.... ; o teu coração abriga uma mágoa que não queres magoar uma outra vez, a tua razão chama vezes sem conta o afeto e o amor que te levaram as cerejas; que bom terem sido cerejas, existem mágoas que estão sempre envoltas de bruma (como a minha), de mistério e de mentiras.....; a tua, lembra pomares de cores e sonhos, baba e delicia... as cerejas. Um abraço

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