sexta-feira, 10 de julho de 2015

Os amigos de Alex



FERNANDO MORAIS GOMES
 
Eram os trinta anos da greve académica, mais gordos e burgueses, encontraram-se na Trindade para um bife e recordar os dias frenéticos  da Faculdade. O tempo separara-os, hoje juristas de sucesso ou políticos do centrão.

Nos fins de setenta, Direito era território maoísta, iconográficos, os retratos de Ribeiro Santos e Maximino de Sousa pontificavam no átrio da escola. Durante a greve académica pregara-se a revolução na rádio universitária e em zelosos piquetes, e Alexandre, o da voz grave, entre jingles anunciava a gloriosa luta dos estudantes, e lançava setas aos professores, achincalhando a obesidade da Magalhães Colaço ou as épicas tiradas do Soares Martinez. Sem graça, meteu-se uma vez com Sousa Franco, crismando-o de inteligente, por tudo lhe entrar por um ouvido mas não sair pelo outro, assim gozando com a sua deficiência na orelha. A Glória, agora procuradora em Aveiro, era a mais acirrada, quebrando vitrinas com um pé de cabra, várias vezes foi detida por vandalismo, mas logo cúmplices comunicados desmascaravam o abuso fascista. O Heitor, hoje deputado, depois da passagem como vereador de uma Câmara, via no jantar a oportunidade de mostrar que até fora irreverente em tempos. Romântico aos vinte, sim, mas calculista aos quarenta. Do grupo, só Rafael enveredara pelos jornais, onde andava a investigar a vida dum político, por sinal do partido de Heitor.

Tinham sido tempos gloriosos. Comunicados policopiados, pichagem de paredes, revolucionários “copos” no Jamaica, para tudo acabar no Cacau da Ribeira, após a tomada da Aula Magna. Glorinha  mantinha a beleza de outrora, todo  o 5º ano a disputava nessa altura, Passionária do Campo Grande, com uma voz de arrepiar, muitas vezes haviam reunido cantando os hits do momento, sonhando amanhãs, e organizando protestos. Em 1979 o socialismo caminhava já para a gaveta, e os avós da troika já cá estavam, mas era quente a luta, e com muita garra. Uma alegria utópica os unira, e essa recordação sobrevivia ainda.

Por esses dias correram Lisboa no Audi do pai do Heitor, chamando à luta, reunindo no Técnico, em Económicas e em Letras, sempre bem servido de moças com bom aspecto, e durante dias fumos negros nos braços e faixas nas paredes decretaram luto pelo ensino. Ao lembrar a cena, Rafael comentou como irónico parecia hoje ser o então “exorbitante” preço das propinas, comparado com os dias de hoje, mais elitistas, apesar do ruído com a defesa da escola pública.

No jantar da Trindade, abatidas muitas canecas, revisitaram esse passado, onde coexistiam Zeca, Pablo Neruda ou os Fisher-Z, perdidos nos esconsos das garagens onde após lânguidos slows se prometeram amores eternos e o Shangri-La socialista. Após o jantar, como nos velhos tempos, voltaram ao Jamaica, depois de um copo no Hot Club, onde Rafael apanhara a primeira cardina, chamando depois princesa a uma desdentada vinda do Fontória. O passado era marcado pelos bares: primeiro o Archote, o Whispers, o Bolero, depois o Jamaica, o Bora-Bora, o Charlie Brown, mais burgueses o Ad Lib ou os Stones, atrevidos  a Cova da Onça e o Pipodrom junto ao Coliseu, onde com uma moeda de vinte cinco escudos se via  a Olga de Jurídicas a fazer streap-tease para pagar os estudos. Todos os rapazes da turma lá foram, esbugalhando os olhos ante a visão celeste do corpo alvo da hoje ilustre advogada. No final da noite, à porta do Jamaica e abraçados, celebraram esse passado, já várias vezes rebobinado.

Os anos passaram, a seu modo haviam respondido à chamada do seu tempo, de sangue na guelra para as causas generosas, razoavelmente exigindo os impossíveis, só salvando o mundo se poderiam salvar. Salvara-se a memória, o orgulho de ter tentado e a certeza de jamais ter desistido. Deambulando a pé até à Baixa, no Rossio, um grupo de jovens dormia, com cartazes de apoio à Grécia. Junto ao Nicola, os veteranos da greve académica miraram os ingénuos actores das novas utopias. Atrás de tempo, tempo vem, trinta anos tinham passado, e valera a pena. Hoje como sempre, o tempo ainda é feito de mudança.

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