Eram
os trinta anos da greve académica, mais gordos e burgueses, encontraram-se na Trindade para um bife e recordar os
dias frenéticos da Faculdade. O tempo
separara-os, hoje juristas de sucesso ou políticos do centrão.
Nos
fins de setenta, Direito era território maoísta, iconográficos, os retratos de
Ribeiro Santos e Maximino de Sousa pontificavam no átrio da escola. Durante a greve académica pregara-se a revolução na
rádio universitária e em zelosos piquetes, e Alexandre, o da voz grave,
entre jingles
anunciava a gloriosa luta dos estudantes, e lançava setas aos professores, achincalhando a obesidade da
Magalhães Colaço ou as épicas tiradas do Soares Martinez. Sem graça, meteu-se
uma vez com Sousa Franco, crismando-o de inteligente, por tudo lhe entrar por
um ouvido mas não sair pelo outro, assim gozando com a sua deficiência na
orelha. A Glória, agora procuradora em Aveiro, era a mais acirrada, quebrando
vitrinas com um pé de cabra, várias vezes foi detida por vandalismo,
mas logo cúmplices comunicados desmascaravam o abuso fascista. O Heitor,
hoje deputado, depois da passagem como vereador de uma Câmara, via no jantar a oportunidade de mostrar que até fora irreverente
em tempos. Romântico aos vinte, sim, mas calculista aos quarenta. Do grupo, só Rafael
enveredara pelos jornais, onde andava a investigar a vida dum político, por sinal
do partido de Heitor.
Tinham sido tempos gloriosos. Comunicados policopiados, pichagem de paredes, revolucionários
“copos” no Jamaica,
para tudo acabar no Cacau da Ribeira,
após a tomada da Aula Magna. Glorinha mantinha a beleza de outrora, todo
o 5º ano a disputava nessa altura, Passionária do Campo Grande, com uma
voz de arrepiar, muitas vezes haviam reunido cantando os hits do momento,
sonhando amanhãs, e organizando protestos. Em 1979 o socialismo caminhava já para a gaveta, e os avós da troika
já cá estavam, mas era quente a luta, e com muita garra. Uma alegria utópica os
unira, e essa recordação sobrevivia ainda.
Por
esses dias correram Lisboa no Audi do pai do Heitor, chamando à luta, reunindo
no Técnico, em Económicas e em Letras, sempre bem servido de moças com bom
aspecto, e durante dias fumos negros nos braços e faixas nas paredes decretaram
luto pelo ensino. Ao lembrar a cena, Rafael comentou como irónico parecia hoje ser o então “exorbitante”
preço das propinas, comparado com os dias de hoje, mais elitistas, apesar do
ruído com a defesa da escola pública.
No
jantar da Trindade, abatidas muitas
canecas, revisitaram esse passado, onde coexistiam
Zeca, Pablo Neruda ou os Fisher-Z, perdidos nos esconsos das garagens onde após
lânguidos slows
se prometeram amores eternos e o Shangri-La socialista. Após o jantar,
como nos velhos tempos, voltaram ao Jamaica,
depois de um copo no Hot
Club, onde Rafael apanhara a primeira cardina, chamando depois princesa a
uma desdentada vinda do Fontória.
O passado era marcado pelos bares: primeiro o Archote, o Whispers, o Bolero, depois o Jamaica, o Bora-Bora, o Charlie Brown, mais
burgueses o Ad Lib
ou os Stones,
atrevidos a Cova
da Onça e o Pipodrom
junto ao Coliseu, onde com uma moeda de vinte cinco escudos se via a Olga
de Jurídicas a fazer streap-tease
para pagar os estudos. Todos os rapazes da turma lá foram, esbugalhando os
olhos ante a visão celeste do corpo alvo da hoje ilustre advogada.
No final da noite, à porta do Jamaica
e abraçados, celebraram esse passado, já várias vezes rebobinado.
Os
anos passaram, a seu modo haviam respondido à chamada do seu tempo, de sangue
na guelra para as causas generosas, razoavelmente exigindo os impossíveis, só
salvando o mundo se poderiam salvar. Salvara-se a memória, o orgulho de ter
tentado e a certeza de jamais ter desistido. Deambulando a pé até à Baixa, no
Rossio, um grupo de jovens dormia, com cartazes de apoio à Grécia. Junto ao Nicola, os veteranos da greve académica
miraram os ingénuos actores das novas utopias. Atrás de tempo, tempo vem, trinta
anos tinham passado, e valera a pena. Hoje como sempre, o tempo ainda é feito de
mudança.
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