sábado, 1 de março de 2014

Sérgio Luís Carvalho- Nazis em Lisboa

MIGUEL REAL
Com a rigorosa fundamentação história a que Sérgio Luís de Carvalho (SLC) já nos habituou, foi recentemente publicado, deste autor, A Última Noite em Lisboa, romance sobre a influência nazi em Portugal ao longo da II Guerra Mundial. 
Entre os nossos autores, SLC, galardoado com vários prémios e finalista de outros, tem sido um dos mais constantes praticantes do romance histórico tanto português quanto internacional. Com efeito, entre 1990, com Anno Domini 1348, um vibrante testemunho sobre o flagelo da peste negra em Sintra, e a publicação de A Última Noite em Lisboa, SLC vem paulatinamente construindo uma obra que, apreciada hoje, 24 anos depois, no seu todo, nos evidencia a existência de duas fases literárias bem determinadas.
A primeira, entre 1990 e 2007 (As Horas de Monsaraz, 1997, El-Rei Pastor, 2000, Os Rios da Babilónia, 2003, Retrato de S. Jerónimo no seu Estúdio, 2006, e Os Peregrinos sem Fé, 2007) caracteriza-se por uma certa sofisticação da linguagem, normalmente de timbre clássico e erudito, pela evidenciação de um forte conhecimento histórico e pela tentativa de repensar este por via da criação de frases meta-históricas, mesmo intemporais, relacionando e sintetizando diversas épocas históricas. 
A segunda fase, iniciada em 2008 com a publicação de O Retábulo de Genebra, seguido de O Destino do Capitão Blanc, 2009, O Segredo de Barcarrota, 2011 e de O Exílio do Último Liberal, caracteriza-se tanto por um aligeiramento do vocabulário, agora centrado no diálogo quotidiano, quanto, seguindo uma das tendências da restante ficção portuguesa actual, por um horizonte de internacionalização: o primeiro romance centra-se em Genebra, o segundo nas trincheiras francesas durante a Primeira Guerra Mundial, o terceiro na raia hispano-portuguesa e o último, com excepção de poucos episódios, em Londres. 
Comum a ambas, manifesta-se um estilo irónico, por vezes sarcástico, desenhando um horizonte céptico de escrita, relativizador dos acontecimentos, não sem deixar de denunciar os aleijões da humanidade (a vertente sarcástica).
A Última Noite em Lisboa prossegue as características estéticas desta segunda fase e afasta definitivamente a manifestação de classicismo e eruditismo presente na fase anterior. Porém ao contrário da vertente internacional do conteúdo romanesco a que SLC já nos habituara desde 2008, abarcando espaços europeus, este novo romance, ao contrário, faz desaguar os acontecimentos internacionais em Lisboa. De facto, Lisboa dos finais da década de 1930, princípios da seguinte, é a verdadeira personagem do romance, uma personagem colectiva.
É, assim, desenhada uma Lisboa pacata, patrioteira e, por assim dizer, paroquial, em contraste com as notícias que pelo Diário de Lisboa, pelo Novidades, pela Rádio Berlim e pela BBC britânica chegam da Europa e da África narrando o desenvolvimento de batalhas decisivas da Segunda Guerra Mundial, como as de Estalinegrado e de El Alamein, fazendo empolgar ou entristecer a tribo germanófila nacional ou os grupos pró-Aliados portugueses. Ainda que versando sobre a espionagem inglesa em Lisboa, o romance descreve com maior pormenor as hostes portugueses ligadas ao nazismo, como a Legião Militar e a revista germanófila A Esfera, dirigida por Félix Correia, jornalista que tivera o privilégio de entrevistar Hitler. 
A pobreza ruralista de Oliveira Salazar é posta em causa pelos grupos de refugiados judeus que chegam a Portugal muitos deles, senão a maioria, com vistos passados em Bordéus pelo cônsul Aristides Mendes, que, mais tarde, surge empobrecido, castigado por Salazar, a comer na Cozinha Israelita à Travessa do Noronha, no Bairro Alto. A menina Edviges, adoradora dos fados do “Miúdo da Bica” e ouvinte assídua da transmissão do terço na Rádio Renascença é representativa da mentalidade antiquada que dominava Portugal e Charlotte Katzenstein, de origem alemã, fugida do seu país e espia inglesa por amor a seu irmão Heinrich, preso num campo de concentração alemão para comunistas e mais tarde combatentes das Brigadas Internacionais na Guerra Civil de Espanha, onde morre na batalha de Teruel, é representativa da nova mentalidade europeia, que os refugiados trazem para Portugal. Entre as duas mentalidades, assumindo ingenuamente a portuguesa e, paulatinamente, por convívio com Charlotte, evidenciam-se as personagens Henrique, jovem setubalense a estagiar em A Esfera, e sua namorada, Maria Carolina, amante dos bailes populares, transitam para a mentalidade europeia, cosmopolita, aberta a novos hábitos e sociais e tolerante, preparando, ao fim e ao cabo, a futura recepção às propostas políticas da década de 1950 do general Humberto Delgado. 
Eduardo Frias, um dos fundadores da Associação Maximalista de 1920, que, no ano seguinte originará o Partido Comunista Português, e Alfredo Pimenta, anarquista primeiro, depois republicano, mais tarde monárquico integralista e, com Salazar, militante da extrema-direita portuguesa, cujas propostas, de tão radicais, o levaram à excomunhão ditada pelo cardeal Cerejeira, compõem o leque de personagens germanófilas, em conjunto com Félix Ribeiro e o inspector da PIDE Paulo Cumano, cujos exageros de actuação forçaram Salazar, numa jogada manipulatória, a encerrar o Clube Alemão de Lisboa. 
Vivendo na sombra, desenhando o rosto da oposição política anarco-sindicalista anterior ao Estado Novo, evidencia-se a personagem “o velho tipógrafo”, do Anuário Comercial, cuja prisão pela PIDE leva Henrique, um humanista, quase a desmascarar-se como não-germanófilo perante a redacção de A Esfera, e, por força do convívio com Charlotte, a passar para o lado dos Aliados.
Fundado em factos reais, a atmosfera social enquadradora (pregões de Lisboa, profissões tradicionais, nomes de cinemas, restaurantes e bares então existentes…) é fundamentada historicamente de um modo real, acrescido de uma linguagem coloquial popular, igualmente real. Ou seja, A Última Noite em Lisboa, harmónico nas suas partes constituintes (acção, estilo, personagens), desenha um romance histórico realista, horizonte em que o autor se move desde a publicação de O Retábulo de Genebra, em 2008.

A Última Noite em Lisboa,
Clube do Autor, 305 pp., 15 euros.

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