domingo, 7 de dezembro de 2014

De volta à ilha- um conto de Filomena Marona Beja

FILOMENA MARONA BEJA


     Logo que completou dezoito anos, Anthony Botelho ficou sujeito a todas as obrigações de um norte-americano.

     Em cima da cómoda da Avó, está ainda uma fotografia dessa ocasião que o mostra entre amigos. Cantavam: Happy birthday to you...

     Nascera ali, na Ilha. E chegara aos vinte e dois meses a Lynn, Massachusetts.

     Foi à escola. Primary and middle school. Depois, fez um trimestre na Vocational High School. E desistiu.

     Como gostava de aceres quase tanto quanto do mar, propôs-se para guarda na reserva de Lynn Woods.

     Logo, porém, foi chamado para o Exército.  Estava-se em 2001. Junho de 2001.

     Em Dezembro, com os votos de Merry Cristhmas, a Avó recebeu outra fotografia. Tony era agora um soltado de cabelo cortado rente.

     A Avó chorou. E foi entregar o retrato ao Senhor Santo Cristo, pedindo: “Que ele volte para casa depressa e salvo.”


     À Ilha só voltaria depois do Afeganistão. Desmobilizado e com a esperança de se ir curando dos males da guerra.


     O boné!

     Levava-o uma rabanada de vento. Vento de sudoeste que se levantara ao largo e começava a virara as pranchas de windsurf.

     A pala do boné, em forma de telha, foi encaixar nas raízes de um metrosídero. Tony correu para o apanhar.

     Apanhou.

     Voltou a sentar-se na beira do muro. Acendeu um, dois cigarros.

     Tinha-se-lhe acabado o tabaco americano, e agora fumava maços de Estrela.


     Para a Avó, Tony era ainda um rapazito.

     Quando a Fábrica do Peixe apitava, às oito da manhã, ela entreabria a porta do quarto. Entrava.

     - Que Deus te abençoe e dê um bom dia, Tony.

     Trazia-lhe café com leite, bolo lêvedo, compota de araçá.

     Perguntava, às vezes, como fora no Afeganistão. Dormia vestido? E comer, comia enquanto disparava? Custara-lhe muito a passar aquele tempo?

     Não respondia.

     Ainda em Lynn, a Mãe também quisera saber dos combates. Das emboscadas. Do zigzaguear, mochila às costas e arma na mão, pelos trilhos das montanhas.

     O Pai nunca mostrara interesse pelo assunto. Tal como Tony, cumprira serviço militar obrigatório. Fora mobilizado e fizera uma comissão de dois anos, na Guiné. Sabia o que era a guerra.

     Acabava o bolo. Punha o tabuleiro ao lado da cama, tornava a adormecer.

     Dormia até tarde, almoçava e saía. Passava as tardes sentado no quebra-mar.

    

     Ali estava ele, agora.

     Vento cada vez mais forte. Os garajaus à procura de abrigo, em terra.

     A força das correntes arrastava para Sul os bocados das pranchas de surf. Ramos de arbustos. Destroços de cadeiras das esplanadas.

     Diante do mar, Tony lembrava-se do leito quase seco do rio Kaboul. Pelas margens, homens de albornoz arregaçado fazendo as necessidades. Limpando o rabo a um calhau.

     Repulsa.

     Depois, a progressão para Kandahar. Altitude, aridez.

     Quem me dera Lynn Woods”, pensava ao princípio. Depois, deixou de pensar.

     Atravessavam povoações. Dir-se-iam desertas quase todas. Revistavam as casas e davam com alguns velhos que lhes ofereciam os cachimbos.

     As mulheres e as raparigas invisíveis. Escondidas.

     As recomendações do Comando eram: “Não olhem!... Não toquem nestas mulheres!”. “O mundo delas não é o vosso!”.

     Abatessem-nas a tiro. Mas não lhes tocassem.

     “Devem ignorá-las... Têm de as ignorar!”


     Não ignorava.

     Desejava.

     Desejou até se esvair, esquecendo que tinha pés e pernas. Cintura. Olhos, boca.


     Um grupo de raparigas atravessou a rua. Uma excursão.

     Vinham quase todas de calções, duas ou três de saia. O vento trespassava-lhes as blusas. Desalinhava-lhes o cabelo.

     Falavam português. No entanto, Tony mal as entendia. Que pronúncia aquela, tão diferente da toada das Ilhas?

     Lisboa! E gente de Lisboa, era rara no Massachusetts, onde ele quase sempre vivera.

     Passaram por ele as raparigas, sem o abalar. Continuaram, sob as copas dos metrosíderos.


     Quisesse o Senhor Santo Cristo que tu escolhesses noiva aqui, na Ilha!”, pedia a Avó.


     E Tony poderia ter escolhido quem quisesse. Agradava a todas.

     De facto, era atraente e sabia-se que fora um bom soldado. Herói. Embora não se deixasse de admitir algum exagero.

     Por isso elas esmeravam-se. Umas exibindo virtude, outras atrevimento.

     Se alguma o conquistasse, segui-lo-ia no regresso a Lynn. Missis Botelho. Com direito a tudo o que de bom havia na América.

     E seria assim tão bom o que lá havia? Nas Ilhas dizia-se que sim. Melhor que no Brasil. Ou Canadá.

     Parecia no entanto que nenhuma mulher, solteira ou casada, seduzia Anthony Botelho.


     - Diga-me...

     Uma das excursionistas de Lisboa desertara do grupo. Voltara atrás e perguntava:

     -...não se pode descer por aqui, até lá abaixo?

     Descer entre rochas, até à nesga de areia escura deixada pelo mar?!

     Tony pousou o cigarro na borda do muro e levantou-se.

     Havia um trilho, sim senhora. Podia-se descer.

     -...mas olhe que tem perigo.

     - Por onde é?

     Tony apontou.

     Ela começou a descer. Voava-lhe a saia, escorregavam-lhe as sandálias. Desequilibrava-se.

     - Espere aí, miss!...

     Foi ajudá-la.


     Os dois de pedra em pedra. Olhos baixos. Ele a dizer-lhe onde havia de pôr os pés. A dar-lhe a mão.

     - E pronto!... Cá estamos.

     Perguntou-lhe o nome.

     Xana.


     O mar agitado, ao largo. E quase manso, na borda da areia.

     Xana descalçou-se. Agarrou nas pontas da saia e entrou na água. Estava fria, picava-lhe a planta dos pés, salpicava-lhe as pernas. E uma onda mais forte molhou-a acima dos joelhos.

     Então, veio para junto de um penedo e despiu-se.

     Tony estava sentado no chão. Viu-a prender a roupa com seixos. Ir nua para o mar.

     - É tão bom... Tão bom!

     Virou-se para ele. A água pelo meio das coxas. Mamilos arrepiados, o escuro de entre pernas em realce.

     - Venha! – chamou.


     Desembaraçou-se das sapatilhas. Tshirt, jeans, boxers.

     Foi até ela e agarrou-a pelo cabelo. Beijou-a, fazendo-lhe sentir a barba, a língua, os dentes. Toda a dureza do seu corpo.

     Depois levou-lhe a cabeça até à água. Fê-la dobrar-se. Mergulhar.

     Ela debatia-se. Debateu-se. Ainda levantou os braços.

     Tony não cedeu.

     Quando a sentiu inerte, enlaçou-a contra si. Nadou para o largo.


     Levou-os a corrente Sul.

     A invencível corrente que passa entre as Ilhas. E arrasta para a costa de África os restos de todos os naufrágios.


Filomena Marona Beja

Dezembro/ 2014.

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