sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Carlos Vale Ferraz- Arte da Memória

MIGUEL REAL 

Porventura com excepção de Os Lobos Não Usam Coleira (1991), toda a obra de Carlos Vale Ferraz é de cunho memorialístico. A obra ora publicada, A Estrada dos Silêncios, não escapa a esta regra.
Na literatura, a memória é historicamente vital e esteticamente transbordante quando reconstrói a realidade, não segunda uma imitação fiel, mas segundo o poder simbólico da evocação que permite recordar e recriar a pluralidade de significações sociais e imagéticas do passado, inclusive o que não se viveu, mas, estando na lógica do acontecimento, se poderia ter vivido. Carlos Vale Ferraz é um escritor da memória.
Recentemente, vimos aqui o modo como Álvaro Manuel Machado trabalha a arte literária da memória, ancorando-a em três ou quatro vivências da realidade individual (Foz Velha do Porto, infância e juventude, a casa da família, exílio…). Carlos Vale Ferraz trabalha a memória literária de um outro modo, não menos nem mais legítimo do que o de Álvaro Manuel Machado.
O autor do incontornável romance Nó Cego (1983) sobre a Guerra Colonial, concretamente sobre a operação militar desencadeada por Kaúlza de Arriaga no Norte de Moçambique, mas também de Soldadó (1988), a história do povo miúdo analfabeto e rural forçado a sobreviver de armas na mão em defesa do Império, reconstrói literariamente a memória logrando confluir os acontecimentos evocados pelas personagens com os diversos sentidos histórico-políticos de Portugal. A memória é, aqui, eminentemente colectiva e reprodutora dos rumos da História - e as personagens verdadeiras metonímias circunstanciais do destino de Portugal. Assim nos seus livros sobre a Guerra Colonial; assim nos romances sobre África, Fala-me de África (2007); assim em O Livro das Maravilhas (1999); assim em A Mulher do Legionário (2013), um dos seus melhores romances; assim no romance ora publicado, A Estrada dos Silêncios, que, portanto, segue em continuidade a oficina literária do autor.
Com a acção decorrida nos finais da década de 80, A Estrada dos Silêncios, fazendo jus ao trabalho da memória a um nível histórico, encontra as suas raízes estruturais no início da Guerra Peninsular, nas consequentes Invasões Francesas (1807 – 1810) e na rebelião dos povos do Sardoal, Vila de Rei e Abrantes contra os soldados franceses.
Uma nova estrada, projectada com Fundos Europeus e anunciada pelos serviços oficiais do Estado e das Câmaras Municipais como símbolo do Progresso, ligando esta zona relativamente desértica do interior à fronteira, é impedida de ser construída pela aparente teimosia de Francisco Afonso, proprietário do Monte Cimeiro, cuja herdade será amputada pela estrada, principalmente um morro de onde sobressai uma oliveira centenária.
Porém, a aparente teimosia de Francisco Afonso revela-se de contornos históricos e de fundamentação dinástica (familiar) e reenvia para duzentos e cinquenta anos antes, quando dois militares franceses, o capitão Alfonse Barre e o sargento Jean Secail desertam e não regressam a França. Os motivos para a deserção de ambos são profundamente diferentes, o primeiro apaixona-se por uma portuguesa de Abrantes (Ana Mendonça), o segundo quer e tenta por diversas vezes mas não consegue retornar a Paris.
Ambos dão origem a duas dinastias familiares diferentes, a do capitão, que finda em Francisco Afonso, e aqui termina definitivamente (sem filhos), e a do sargento que desemboca na pessoa da juíza do Tribunal de Abrantes que analisa o processo de expropriação do Monte Cimeiro, Joana Secalha.
Cruzam-se assim, nos finais da década de 1980, duas visões da história de Portugal, uma, que crê no progresso europeu e encara a adesão à Comunidade Europeia em 1986 como motor da futura felicidade desenvolvimentista dos portugueses; outra, que intenta respeitar o passado e honrar os mortos, já que, sob as raízes da oliveira, se encontram os ossos daqueles que um dia, em 1807, vieram da Europa revolucionária trazer o Progresso e a Razão Iluminista e provocaram uma autêntica hecatombe bárbara em Portugal, com violações e morticínios. Os antigos caminhos de cabras e carroças que Junot, Soul e Massena foram forçados a palmilhar e, de certo modo, contribuíram para a sua derrota, transformar-se-ão agora, por vida de dinheiro europeu, numa estrada lisa, recta e directa por onde os novos invasores entrarão sem impedimento. A própria fronteira já não existe. O Portugal antigo e tradicionalista de Francisco Afonso está a morrer e a machadada final, entende a personagem, será dada pela construção da estrada. Por isso a impede, contra a justiça, o Estado, as Câmaras e, até, contra a Europa, ou, melhor, contra a visão desenvolvimentista de Portugal apoiada pela Comunidade Europeia.
Como decidirá a juíza Joana Secalha, ela própria descendente desse ancestral passado - também europeu – de Portugal? Como reagirá Francisco Afonso à morte desse Portugal de antanho, que ele considera representar? E à cigana e ao cão que vivem solitariamente com ele no Monte? E o que sucederá ao engenheiro Carlos Matias, funcionário da Junta Autónoma das Estradas, encarregue de abrir a estrada europeia e filho do soberbo construtor de Cabora Bassa?
Entre todas, a personagem de Joana Secalha é a mais completa, embora o protagonismo vá inteiro para Francisco Afonso. Joana Secalha sintetiza, de certo modo, a vida dos portugueses universitários pós-25 de Abril de 1974. Maoísta, cultora do amor livre, que pratica em vastas orgias, torna-se senhora respeitável na década de 80 com o cavaquismo, pertencente às elites de Abrantes e arredores. Descendente do primitivo Secail, nome aportuguesado para Secalha, Joana tem a inspecção da máquina do Estado pendente sobre a sua decisão. Como decidirá?


Duas observações marginais. Uma: o espírito paganista africano tem lugar em quase todos os romances de Carlos Vale Ferraz, mas pensamos que exageradamente em A Estrada dos Silêncios, atribuindo a culpa do afogamento do pai de Carlos Matias a uma maldição lançada pelo feiticeiro da tribo deslocada à força do seu território para a construção da barragem de Cabora Bassa. Trata-se de uma enxertia africana forçada num romance que é todo ele escrito segundo a razão europeia. Outra, sente-se por vezes a necessidade de uma revisão literária do romance, há frases, esporádicas, raras, demasiado ligeiras e quotidianas para serem consideradas literárias.


A Estrada dos Silêncios,
Casa das Letras, 352 pp., 17,90 euros.

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