Porventura com excepção de Os Lobos Não Usam Coleira (1991), toda a
obra de Carlos Vale Ferraz é de cunho memorialístico. A obra ora publicada, A Estrada dos Silêncios, não escapa a
esta regra.
Na literatura, a memória é
historicamente vital e esteticamente transbordante quando reconstrói a
realidade, não segunda uma imitação fiel, mas segundo o poder simbólico da
evocação que permite recordar e recriar a pluralidade de significações sociais
e imagéticas do passado, inclusive o que não se viveu, mas, estando na lógica
do acontecimento, se poderia ter vivido. Carlos Vale Ferraz é um escritor da
memória.
Recentemente, vimos aqui o modo como
Álvaro Manuel Machado trabalha a arte literária da memória, ancorando-a em três
ou quatro vivências da realidade individual (Foz Velha do Porto, infância e juventude,
a casa da família, exílio…). Carlos Vale Ferraz trabalha a memória literária de
um outro modo, não menos nem mais legítimo do que o de Álvaro Manuel Machado.
O autor do incontornável romance Nó Cego (1983) sobre a Guerra Colonial,
concretamente sobre a operação militar desencadeada por Kaúlza de Arriaga no
Norte de Moçambique, mas também de Soldadó
(1988), a história do povo miúdo analfabeto e rural forçado a sobreviver de armas
na mão em defesa do Império, reconstrói literariamente a memória logrando
confluir os acontecimentos evocados pelas personagens com os diversos sentidos
histórico-políticos de Portugal. A memória é, aqui, eminentemente colectiva e
reprodutora dos rumos da História - e as personagens verdadeiras metonímias
circunstanciais do destino de Portugal. Assim nos seus livros sobre a Guerra
Colonial; assim nos romances sobre África, Fala-me
de África (2007); assim em O Livro
das Maravilhas (1999); assim em A Mulher
do Legionário (2013), um dos seus melhores romances; assim no romance ora
publicado, A Estrada dos Silêncios,
que, portanto, segue em continuidade a oficina literária do autor.
Com a acção decorrida nos finais da
década de 80, A Estrada dos Silêncios,
fazendo jus ao trabalho da memória a um nível histórico, encontra as suas
raízes estruturais no início da Guerra Peninsular, nas consequentes Invasões
Francesas (1807 – 1810) e na rebelião dos povos do Sardoal, Vila de Rei e
Abrantes contra os soldados franceses.
Uma nova estrada, projectada com Fundos
Europeus e anunciada pelos serviços oficiais do Estado e das Câmaras Municipais
como símbolo do Progresso, ligando esta zona relativamente desértica do interior
à fronteira, é impedida de ser construída pela aparente teimosia de Francisco
Afonso, proprietário do Monte Cimeiro, cuja herdade será amputada pela estrada,
principalmente um morro de onde sobressai uma oliveira centenária.
Porém, a aparente teimosia de Francisco
Afonso revela-se de contornos históricos e de fundamentação dinástica
(familiar) e reenvia para duzentos e cinquenta anos antes, quando dois
militares franceses, o capitão Alfonse Barre e o sargento Jean Secail desertam
e não regressam a França. Os motivos para a deserção de ambos são profundamente
diferentes, o primeiro apaixona-se por uma portuguesa de Abrantes (Ana
Mendonça), o segundo quer e tenta por diversas vezes mas não consegue retornar
a Paris.
Ambos dão origem a duas dinastias familiares
diferentes, a do capitão, que finda em Francisco Afonso, e aqui termina
definitivamente (sem filhos), e a do sargento que desemboca na pessoa da juíza do
Tribunal de Abrantes que analisa o processo de expropriação do Monte Cimeiro,
Joana Secalha.
Cruzam-se assim, nos finais da década de
1980, duas visões da história de Portugal, uma, que crê no progresso europeu e
encara a adesão à Comunidade Europeia em 1986 como motor da futura felicidade
desenvolvimentista dos portugueses; outra, que intenta respeitar o passado e
honrar os mortos, já que, sob as raízes da oliveira, se encontram os ossos
daqueles que um dia, em 1807, vieram da Europa revolucionária trazer o
Progresso e a Razão Iluminista e provocaram uma autêntica hecatombe bárbara em
Portugal, com violações e morticínios. Os antigos caminhos de cabras e carroças
que Junot, Soul e Massena foram forçados a palmilhar e, de certo modo,
contribuíram para a sua derrota, transformar-se-ão agora, por vida de dinheiro
europeu, numa estrada lisa, recta e directa por onde os novos invasores
entrarão sem impedimento. A própria fronteira já não existe. O Portugal antigo
e tradicionalista de Francisco Afonso está a morrer e a machadada final,
entende a personagem, será dada pela construção da estrada. Por isso a impede,
contra a justiça, o Estado, as Câmaras e, até, contra a Europa, ou, melhor,
contra a visão desenvolvimentista de Portugal apoiada pela Comunidade Europeia.
Como decidirá a juíza Joana Secalha, ela
própria descendente desse ancestral passado - também europeu – de Portugal?
Como reagirá Francisco Afonso à morte desse Portugal de antanho, que ele
considera representar? E à cigana e ao cão que vivem solitariamente com ele no
Monte? E o que sucederá ao engenheiro Carlos Matias, funcionário da Junta Autónoma
das Estradas, encarregue de abrir a estrada europeia e filho do soberbo
construtor de Cabora Bassa?
Entre todas, a personagem de Joana
Secalha é a mais completa, embora o protagonismo vá inteiro para Francisco
Afonso. Joana Secalha sintetiza, de certo modo, a vida dos portugueses
universitários pós-25 de Abril de 1974. Maoísta, cultora do amor livre, que
pratica em vastas orgias, torna-se senhora respeitável na década de 80 com o
cavaquismo, pertencente às elites de Abrantes e arredores. Descendente do
primitivo Secail, nome aportuguesado para Secalha, Joana tem a inspecção da
máquina do Estado pendente sobre a sua decisão. Como decidirá?
Duas observações marginais. Uma: o
espírito paganista africano tem lugar em quase todos os romances de Carlos Vale
Ferraz, mas pensamos que exageradamente em A
Estrada dos Silêncios, atribuindo a culpa do afogamento do pai de Carlos
Matias a uma maldição lançada pelo feiticeiro da tribo deslocada à força do seu
território para a construção da barragem de Cabora Bassa. Trata-se de uma
enxertia africana forçada num romance que é todo ele escrito segundo a razão
europeia. Outra, sente-se por vezes a necessidade de uma revisão literária do
romance, há frases, esporádicas, raras, demasiado ligeiras e quotidianas para
serem consideradas literárias.
A Estrada dos Silêncios,
Casa
das Letras, 352 pp., 17,90 euros.
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