A
edição de cinco romances incompletos de Agustina Bessa-Luís (AB-L) pela
Fundação Calouste Gulbenkian, coincidente com a realização do I Congresso
Internacional do Círculo Literário AB-L, “Ética e Política na Obra de AB-L”,
fica a dever-se ao trabalho de Silvina Rodrigues Lopes (SRL), e o próprio
título geral do volume, Elogio do
Inacabado, espelha a visão específica dos romances de Agustina desta
professora da Universidade Nova de Lisboa. Digamos que a sua teoria estética
sobre o romance e em particular sobre a arte do romance de Agustina contaminam
positivamente, muito positivamente, esta edição de inéditos da escritora mais
importante de Portugal da segunda metade do século XX.
Com
efeito, existe uma tal fusão entre a crítica de SRL e a obra romanesca de AB-L
que é hoje difícil ler a romancista sem o olhar analítico expresso pela
primeira. De facto, publicadas em Portugal, existem diversas leituras descritivas da obra de Agustina, mas
poucas, pouquíssimas, interpretações teóricas
da sua obra. Entre as primeiras, citaríamos Catherine Dumas (Estética e Personagens nos Romances de
Agustina, 2002) e Laura Bulger (diversos livros, especialmente sobre O Ângulo Crítico do Entendimento do Mundo,
2007). Entre os segundos, sublinharíamos três autores: Eduardo Lourenço (os
dois artigos publicados na Colóquio e
no Tempo e o Modo em 1963 e 1964),
que estabeleceu o modelo historiográfico da leitura da emergência de Agustina
na literatura portuguesa na década de 50; Álvaro Manuel Machado (sobretudo em AB-L. O Imaginário Total, 1983); finalmente, a leitura de SRL que, em Alegria da Comunicação, 1989, e AB-L. As Hipóteses do Romance, 1992,
inscreveu a obra da romancista de um modo original no panorama da literatura
portuguesa contemporânea.
Em
1984, em “Bruscamente – Sobre a Obra
de AB-L” (inserto em A Aprendizagem do
Incerto, 1990) a autora refere que “… inacabamento e complexidade são os
dois eixos que orientam a escrita dos romances de Agustina” (p. 119). De facto,
fundamentada histórica e hermeneuticamente a teoria do “Incerto” e do “Inacabado”
na sua obra maior, A Legitimação em
Literatura (1994), SRL defende que nos romances de Agustina não existem “um
princípio e um fim estruturais” (AB-L. As
Hipóteses do Romance, p. 12), ficções construídas sem modelo nem plano, sem
critérios prévios de hierarquia categorial (espaço, tempo, acção…), como uma
tapeçaria fina de pormenores descontínuos e fragmentários em torno de situações
e personagens, na qual “é a própria construção do romance que concretiza a
ideia de romance ou que dá a pensar as suas hipóteses” (p. 11). Dito de outro
modo, “a história [narrada] não só nunca é completa mas aquilo que nela é
hipótese, puro possível sem realidade na ordem de sucessão temporal, é
essencial para que ela se desencadeie ou para que prossiga” (p. 12).
Existe
assim uma “subjectividade empírica” (p. 12) ou, diríamos nós, um intuicionismo
estético (porventura marcado pela predominância no Porto, na primeira metade do
século XX, da obra filosófica de Henry Bergson) na obra de Agustina que a
impede, enquanto autora, de reflectir o âmago da experiência em forma de tipos
sociais (neo-realismo) ou de caracteres psicológicos (presencismo)
cristalizados e definidos, devido à sua visão da radical incompletude e
complexidade da realidade, transposta esteticamente em forma de fluxos ou
correntes sintácticas (as “hipóteses de romance”), que, posteriormente, ao
longo da teia assim tecida, ora se concretizam ou não. Ou, como afirma Álvaro
Manuel Machado no que diz respeito às personagens criadas por Agustina: elas
são “a manifestação simbólica (…) de uma complexidade imensa de elementos
heteróclitos, sobrepostos no tempo” (AB-L.
O Imaginário Total, 1983, p. 189). Para este crítico, Agustina reconstrói
pela imaginação, não raro em forma de aforismo, a totalidade da experiência
vivida que, por sua vez, SRL defende não só não poder nunca ser reconstruída
literariamente como a expressão da sua carência, da sua incerteza, da sua
incompletude, do seu “inacabado”, constituem a singularidade estética da
literatura de Agustina. Daí o título do volume ora publicado: Elogio do Inacabado.
Diferente
de Fernando Pessoa, que experimenta este íntimo, essencial e ontológico
inacabamento do mundo, espelhando-o de um modo disperso por via da pluralidade
dos seus eus autorais, Agustina funde a constitutividade fragmentária do real
numa oscilação “sem cessar entre o buraco negro e o lago cintilante”, no dizer
imagético de Eduardo Lourenço (“Prefácio” ao livro citado de Laura Bulger, p.
7), numa espécie de fusão luxuriante de vida das palavras que o mesmo autor
considera ser semelhante a uma “floresta amazónica”.
Enquanto
Óscar Lopes vincula a obra de Agustina, seja às profundas mudanças sociais
ocorridas no Norte de Portugal na passagem, no século XX, entre uma vida rural,
fundamentalmente católica, e uma sociedade urbana e europeia, seja ao efeito de
dissolução e decadência de uma burguesia originariamente rural, SRL considera
que Agustina é dos poucos autores portugueses contemporâneos que acolhe na sua
obra o permanente e contínuo ritmo de mudança de toda a sociedade e história,
e, no interior desta mudança, a incapacidade de a razão humana a entender de um
modo claro e distinto. Neste sentido, toda a obra de arte culminaria num
retrato inacabado da realidade, e o grande autor seria aquele que desse conta
na sua obra deste constitutivo inacabamento. Assim, SRL refere que a obra de
Agustina é marcada pela ”resistência à comunicabilidade total e imediata. Daí
que a proliferação de matéria romanesca [o que Álvaro Manuel Machado designa
por “complexidade imensa de elementos heteróclitos” e Eduardo Lourenço
identifica, imageticamente, com “floresta amazónica”], aparentemente agenciado
por simples acumulação e associação, sem hierarquização visível, se fecha sobre
um centro pleno e vazio, como um segredo indecifrável que provoca uma explosão
de respostas e dúvidas” (SRL, Exercícios
de Aproximação, 2003, p. 127). É justamente para este mistérico “centro
pleno e vazio” (um “buraco negro” e ao mesmo tempo um “lago cintilante”) que os
textos de Agustina nos convocam, revelando e ocultando simultaneamente, de um
ponto de vista estético, a incerteza, a imperfeição-perfeita e o inacabamento
do mundo.
Porém,
observa SRL, “os finais inconclusivos dos romances de AB-L não são puramente
inconclusivos, eles são uma espécie de conclusão da impossibilidade de
concluir, que se vai reafirmando de romance em romance, como se fosse essa a
«moral da história» do escritor, da sua história de escrever romances” (As Hipóteses do Romance, p. 17).
Elogio do Inacabado
(pref.
Silvina Rodrigues Lopes)
Fundação
Calouste Gulbenkian, 534 pp. 40 euros.
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