sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Agustina Bessa-Luís- a obra e a crítica



MIGUEL REAL

A edição de cinco romances incompletos de Agustina Bessa-Luís (AB-L) pela Fundação Calouste Gulbenkian, coincidente com a realização do I Congresso Internacional do Círculo Literário AB-L, “Ética e Política na Obra de AB-L”, fica a dever-se ao trabalho de Silvina Rodrigues Lopes (SRL), e o próprio título geral do volume, Elogio do Inacabado, espelha a visão específica dos romances de Agustina desta professora da Universidade Nova de Lisboa. Digamos que a sua teoria estética sobre o romance e em particular sobre a arte do romance de Agustina contaminam positivamente, muito positivamente, esta edição de inéditos da escritora mais importante de Portugal da segunda metade do século XX.
Com efeito, existe uma tal fusão entre a crítica de SRL e a obra romanesca de AB-L que é hoje difícil ler a romancista sem o olhar analítico expresso pela primeira. De facto, publicadas em Portugal, existem diversas leituras descritivas da obra de Agustina, mas poucas, pouquíssimas, interpretações teóricas da sua obra. Entre as primeiras, citaríamos Catherine Dumas (Estética e Personagens nos Romances de Agustina, 2002) e Laura Bulger (diversos livros, especialmente sobre O Ângulo Crítico do Entendimento do Mundo, 2007). Entre os segundos, sublinharíamos três autores: Eduardo Lourenço (os dois artigos publicados na Colóquio e no Tempo e o Modo em 1963 e 1964), que estabeleceu o modelo historiográfico da leitura da emergência de Agustina na literatura portuguesa na década de 50; Álvaro Manuel Machado (sobretudo em AB-L. O Imaginário Total, 1983); finalmente, a leitura de SRL que, em Alegria da Comunicação, 1989, e AB-L. As Hipóteses do Romance, 1992, inscreveu a obra da romancista de um modo original no panorama da literatura portuguesa contemporânea.
Em 1984, em “Bruscamente – Sobre a Obra de AB-L” (inserto em A Aprendizagem do Incerto, 1990) a autora refere que “… inacabamento e complexidade são os dois eixos que orientam a escrita dos romances de Agustina” (p. 119). De facto, fundamentada histórica e hermeneuticamente a teoria do “Incerto” e do “Inacabado” na sua obra maior, A Legitimação em Literatura (1994), SRL defende que nos romances de Agustina não existem “um princípio e um fim estruturais” (AB-L. As Hipóteses do Romance, p. 12), ficções construídas sem modelo nem plano, sem critérios prévios de hierarquia categorial (espaço, tempo, acção…), como uma tapeçaria fina de pormenores descontínuos e fragmentários em torno de situações e personagens, na qual “é a própria construção do romance que concretiza a ideia de romance ou que dá a pensar as suas hipóteses” (p. 11). Dito de outro modo, “a história [narrada] não só nunca é completa mas aquilo que nela é hipótese, puro possível sem realidade na ordem de sucessão temporal, é essencial para que ela se desencadeie ou para que prossiga” (p. 12).
Existe assim uma “subjectividade empírica” (p. 12) ou, diríamos nós, um intuicionismo estético (porventura marcado pela predominância no Porto, na primeira metade do século XX, da obra filosófica de Henry Bergson) na obra de Agustina que a impede, enquanto autora, de reflectir o âmago da experiência em forma de tipos sociais (neo-realismo) ou de caracteres psicológicos (presencismo) cristalizados e definidos, devido à sua visão da radical incompletude e complexidade da realidade, transposta esteticamente em forma de fluxos ou correntes sintácticas (as “hipóteses de romance”), que, posteriormente, ao longo da teia assim tecida, ora se concretizam ou não. Ou, como afirma Álvaro Manuel Machado no que diz respeito às personagens criadas por Agustina: elas são “a manifestação simbólica (…) de uma complexidade imensa de elementos heteróclitos, sobrepostos no tempo” (AB-L. O Imaginário Total, 1983, p. 189). Para este crítico, Agustina reconstrói pela imaginação, não raro em forma de aforismo, a totalidade da experiência vivida que, por sua vez, SRL defende não só não poder nunca ser reconstruída literariamente como a expressão da sua carência, da sua incerteza, da sua incompletude, do seu “inacabado”, constituem a singularidade estética da literatura de Agustina. Daí o título do volume ora publicado: Elogio do Inacabado.
Diferente de Fernando Pessoa, que experimenta este íntimo, essencial e ontológico inacabamento do mundo, espelhando-o de um modo disperso por via da pluralidade dos seus eus autorais, Agustina funde a constitutividade fragmentária do real numa oscilação “sem cessar entre o buraco negro e o lago cintilante”, no dizer imagético de Eduardo Lourenço (“Prefácio” ao livro citado de Laura Bulger, p. 7), numa espécie de fusão luxuriante de vida das palavras que o mesmo autor considera ser semelhante a uma “floresta amazónica”.
Enquanto Óscar Lopes vincula a obra de Agustina, seja às profundas mudanças sociais ocorridas no Norte de Portugal na passagem, no século XX, entre uma vida rural, fundamentalmente católica, e uma sociedade urbana e europeia, seja ao efeito de dissolução e decadência de uma burguesia originariamente rural, SRL considera que Agustina é dos poucos autores portugueses contemporâneos que acolhe na sua obra o permanente e contínuo ritmo de mudança de toda a sociedade e história, e, no interior desta mudança, a incapacidade de a razão humana a entender de um modo claro e distinto. Neste sentido, toda a obra de arte culminaria num retrato inacabado da realidade, e o grande autor seria aquele que desse conta na sua obra deste constitutivo inacabamento. Assim, SRL refere que a obra de Agustina é marcada pela ”resistência à comunicabilidade total e imediata. Daí que a proliferação de matéria romanesca [o que Álvaro Manuel Machado designa por “complexidade imensa de elementos heteróclitos” e Eduardo Lourenço identifica, imageticamente, com “floresta amazónica”], aparentemente agenciado por simples acumulação e associação, sem hierarquização visível, se fecha sobre um centro pleno e vazio, como um segredo indecifrável que provoca uma explosão de respostas e dúvidas” (SRL, Exercícios de Aproximação, 2003, p. 127). É justamente para este mistérico “centro pleno e vazio” (um “buraco negro” e ao mesmo tempo um “lago cintilante”) que os textos de Agustina nos convocam, revelando e ocultando simultaneamente, de um ponto de vista estético, a incerteza, a imperfeição-perfeita e o inacabamento do mundo.
Porém, observa SRL, “os finais inconclusivos dos romances de AB-L não são puramente inconclusivos, eles são uma espécie de conclusão da impossibilidade de concluir, que se vai reafirmando de romance em romance, como se fosse essa a «moral da história» do escritor, da sua história de escrever romances” (As Hipóteses do Romance, p. 17).

Elogio do Inacabado
(pref. Silvina Rodrigues Lopes)
Fundação Calouste Gulbenkian, 534 pp. 40 euros.

Sem comentários:

Enviar um comentário