quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

A Alcofa

FERNANDO MORAIS GOMES


Como de costume Baltasar, Gaspar e Melchior, sócios na ourivesaria e solteirões inveterados, passaram o Natal juntos, à meia-noite trocaram presentes e comeram bolo-rei, agora sem brinde e sem piada, comentava o Gaspar. Baltasar era o mais velho e gerente da loja, muitas alianças para casamentos vendidas mas nunca a dele, a olho nu distinguia um fio de ouro de um pechisbeque com banho dourado.Com Gaspar iniciara o negócio há oito anos, chegaram a correr o país em feiras e mercados antes de finalmente se estabelecerem numa zona elegante, até hoje sem um assalto, felizmente. Melchior retornara de África com a descolonização, mestiço, conheceram-se num cruzeiro à Turquia e acabaram partilhando o negócio e a casa no Banzão.

Na véspera de Natal tinha havido movimento na loja, apesar da crise, uns brincos, quatro relógios, uma salva em prata, dava para ir mexendo. Pela manhã de 25 de Dezembro coube a Melchior despejar o lixo, caixas e restos dos camarões da ceia, bacalhau não era tradição. Tinham uma empregada duas vezes por semana, a Maria, que por ser feriado estava de folga, eles mesmo acomodavam o essencial. Para espairecer, iriam almoçar à Ericeira, apesar do tempo frio, daria para desentorpecer as pernas.

Já Melchior voltava para casa quando ouviu um restolhar junto ao contentor, algum cão buscando sobras, pensou. Curioso, aproximou-se, uma alcofa de estopa atada com um fio de nylon estava depositada mesmo ao lado e parecia conter algo, agitava-se ligeiramente. Espreitando de soslaio, assombrado, deparou-se-lhe um bebé ainda com sangue no corpo, não teria mais que umas horas de vida, ali abandonado na manhã do dia de Natal. Olhou em redor, ainda atónito, tentando descortinar alguém na redondeza, algum carro, quem poderia ter cometido uma barbaridade daquelas, e com o receio de quem nunca pegou num recém-nascido, agasalhou-o com o casaco de lã que levava e correu para casa.

Baltasar barbeava-se, enquanto Gaspar ia fazendo zapping, todos os canais na bênção do Papa, o passo assolapado de Melchior com um volume nos braços assustou-os.

-Depressa! Vejam só o que estava no lixo! Não há direito! -exibiu Melchior o ensanguentado nascituro, um rapaz, segundo reparou logo. Baltasar e Gaspar correram atarantados, Baltasar ainda com o creme da barba, o pequeno dormitava, inocente e já órfão, porém.

-Tem de se avisar a polícia. Mas esperem, vamos dar-lhe banho primeiro -aventou Gaspar, correndo a buscar um alguidar com água quente.

-E comida? Há algum biberão?

-Melchior, mete-te no carro e vê qual a farmácia de serviço. Traz fraldas e um biberão. Ah e pergunta o que é que se dá de comer nestas idades! -logo destinou Baltazar, ourives baby-sitter, sem experiência de crianças.

O bebé acordou, entretanto, desfazendo-se num pranto. Enquanto Melchior não voltava, vinte minutos que mais pareciam vinte horas, foram-lhe deitando leite morno nos lábios que ele logo sugou, instintivo. Regressado Melchior, dividiram as tarefas daquela incrível manhã de Natal, uma hora depois dormitava na cama do Baltazar, protegido por almofadas dos lados para não cair, com o trio embevecido com algo que só viam nos filmes.

Maria chegou, entretanto, apesar do feriado passava a ver se era preciso alguma coisa. Vinte e dois anos, separada do Zé Luís, entretanto despedido do Ikea, ficou abismada com a história e logo ficou a tomar conta do pequeno anjo. Ela própria fizera recentemente por um aborto involuntário e agora, ali estava um presente de Natal, naquela radiante manhã de vida no improvável presépio do Banzão. Chegada a polícia, foram todos para a GNR de Colares, onde dois guardas de serviço colocaram a cesta na secretária, junto a uma árvore de Natal, na televisão um coro cantava o Adeste Fidelis. Seguiria para uma instituição de acolhimento, mas Maria e os outros quiseram seguir o caso, se ninguém o quisesse, estavam interessados em criá-lo, Gaspar, crente, associava o acontecimento a mais que uma coincidência.

Reluzindo, com o reflexo das luzes de Natal no rosto minúsculo, o pequeno a quem alguma mãe sem meios abandonara, parecia sorrir na alcofa, com todos a mirá-lo, silenciosos, mas com um coração grande.

No rio de Colares, duas pombas brancas esvoaçavam soltas e livres, chaminés fumegantes anunciavam o lento acordar da manhã de Natal, a vida renovava-se e o que por certo seria o um drama de mais uma vida madrasta, foi o prenúncio de um novo começo na vida sempre a recomeçar.

-Há-de chamar-se Salvador! -profetizou Maria, uma lágrima no olho adoçou-lhe o sorriso cheio, se tudo corresse bem, veria a maternidade reencontrada e três tios emprestados, para o que desse e viesse.  

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