quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Elegia a Vénus

FERNANDO MORAIS GOMES


D. António Castelo-Branco, conde de Pombeiro, escolheu a quarta-feira para reunir a Nova Arcádia na sua Quinta de Belas, a nova fonte de Neptuno e as obras recentes tornavam-na um dos locais mais aprazíveis fora de Lisboa, em tempos de Diogo Lopes Pacheco, um dos algozes de Inês de Castro, o próprio rei D. Pedro, depois de a confiscar, aí viveu algum tempo. Conquanto as tertúlias fossem habitualmente em Lisboa, o aniversário da esposa trazia os académicos ilustres a apanhar ares de Belas. Além dos condes e família, marcaram presença o padre Caldas Barbosa, Bocage, o conde de Vimioso, Agostinho de Macedo e o intendente Pina Manique, a Lisboa da Viradeira. Caldas Barbosa, o Lereno, como a si próprio se crismara, era o mais expressivo, com os seus gongorismos recorrentes, vendo ninfas em qualquer matrona, esplendorosas tágides em charcos mal cheirosos, glosando futilidades tão ao gosto do conde. O fofo conde, como mordaz lhe chamava Bocage.

Ao invés dos saraus de Lisboa, com bolinhos e torradas, este era de gala pelo aniversário, com noite literária em perspetiva. Bocage abominava aquela fauna, Lereno sobretudo, e só compareceu pela ceia grátis, talvez a mercê de uma sopeira mais matrona, para com ela se refastelar numa alcova dos fundos e assim esquecer as alarvices do conde e os esgares de Agostinho de Macedo. Como árcade, adotara o acrónimo de Elmano Sadino, sarcástica coqueluche dos salões e por vezes também do Limoeiro. A busca do ideal campestre, o locus amenus do prazer, fazia essa noite da pueril Belas o idílico recanto para bucólicas odes e inspiradas elegias, assim corresse o tinto ou o branco, proclamando o corte no inútil. Inutilia truncat, como de cátedra apregoava Macedo, rei da inutilidade, bolçando poemas a metro.
Um clarete providencial espevitou Bocage, boémio desbocado e guerreiro do escárnio, sempre perto da polémica ou do Aljube. De copo cheio, meteu-se com Lereno:
-Então que me diz da adega do conde? Boa uva, soneto inspirado a caminho, não? -sarcástico, provocou o mulato, os três copos já despachados soltaram-lhe a língua.
-O néctar de Baco só aos néscios enviesa o espírito, sr. Bocage, nunca talentos seguros como o meu! –rematou agastado o celebrado génio dos salões.
Bocage já muitas vezes se incompatibilizara com os pavões da Nova Arcádia, e era notória a sala dividida entre os amigos e inimigos de estimação, a muitos votando gargalhadas de desprezo, logo em verrinosos sonetos arrasaria os rabudos poltrões. Assassino da pena, levava a Lisboa do prostíbulo aos salões dos peraltas. Entre um canapé e mais um copo, vislumbrou uma criada dengosa, servindo canapés. Logo fixado nuns seios arrebitados, colou-se, lascivo, a pretexto duma necessidade, postou-se na escada para a adega, onde buscaria inspiração para afrontar os mestres da palavra. Na penumbra das pipas, mal a sentiu chegar, logo um braço esfomeado e com o sangue revolto a prendeu pela cintura fina, acariciando o apetitoso traseiro.
Enquanto isso, no salão, o conde convidava Lereno a improvisar para a aniversariante esposa, pouco favorecida por Vénus, por sinal, mascarada com um pó de arroz pastoso, peruca desenxabida e uma mantilha de cambraia. Enfatuado, o imbecil respirou fundo e papagueou elogios tais que a própria condessa questionou se era dela que o mulato falava. No final aplaudiu, ruborizada, e mais vinho correu, debaixo de fervorosas palmas. Agostinho Macedo conversava com o intendente sobre a decência, e como as cortesãs, recatadas, deviam obedecer a seus maridos, entronizadas no Belo, mas castas e obedientes, e os demais anuíam, desde que fossem as deles. Na adega, entre guinchinhos ofegantes e os barris do conde, Bocage materializava uma elegia no corpo alvo da criada, esquecida do salão, onde tardava a vasilha com vinho. De volta à sala, e já composto, foi a condessa quem lhe pediu um soneto. Bocage respirou fundo, qual forcado antes de enfrentar o toiro, e com o pensamento na adega, lá desfiou um panegírico fervilhante, esbanjando odes àqueles olhos buliçosos e lábios gentis, aos cabelos luminosos, a tão finos e melindrosos dedos. Rendido, o salão exultou, aplaudindo. De início embevecido, o conde achou o tom atrevido e abreviou a récita, já a condessa se abanava com um leque. Acabada a poesia, seguiu-se uma modinha de Lereno, enquanto Agostinho de Macedo discutia como eram pobres os Lusíadas, e Pina Manique, numa roda, explicava a importância da sua nova obra, a Casa Pia. Desinteressado da conversa e com a mente na adega, Bocage, ardendo, de novo escapou na peugada da serviçal. Um sinal afirmativo, e a cavalariça virou gruta de Belém, e ele, o menino nas palhas. Amar e poetar, eis a felicidade, pensou, mergulhando no feno, saltimbanco da vida e bardo do prazer. 
 


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