Da abundante literatura sobre o tema,
ninguém melhor que George Steiner definiu a Europa de hoje: a Europa é um “lieu
de mémoire”, assim mesmo, escrito em francês como homenagem à língua de
Descartes, de Napoleão e da “Razão Universal”. Com efeito, provocatoriamente,
poderíamos postular que, das três dimensões do tempo, nenhuma se harmoniza
melhor com a Europa que a do “passado”, e um passado tão cheio, tão absoluto,
que outro continente não existe com tão grandiloquente e realizador passado.
Improvisada a cada momento do tempo
pelos diversos países constituintes, sacudida permanentemente pelos contributos
cruzados e desencontrados do sul (da Itália renascentista, resgatadora inicial
da cultura greco-romana, seguido da expansão ultramarina de Portugal e Espanha,
até ao final do século XVI) e do centro e do norte (a II Expansão Ultramarina
protagonizadas pela França, a Inglaterra e a Holanda; a revolução francesa
iluminista e burguesa e a revolução industrial inglesa), a Europa tornou-se não
só a criadora da imagem geográfica e cultural do mundo que hoje possuímos como
transmitiu a este, historicamente, mal e bem, as suas categorias sociais e as
suas estruturas mentais. Daquelas, realça-se tanto a diferencialidade marcante
em classes e grupos sociais e étnicos (que o século XIX e a primeira metade do
XX designarão por “colonialismo”), quanto a capacidade singular do indivíduo,
pelo mérito, pela manha ou pela especulação, estilhaçar as fronteiras da
distinção social (que os séculos XIX e XX designarão por “individualismo” e
“liberalismo”). No que se refere às estruturas mentais, a Europa espalhou no
mundo, como um vírus, uma íntima inquietação metafísica marcante e uma vontade
de progresso que se encontram na base ontológica do húmus do pensamento crítico
que a tem constituído. No entanto, indubitavelmente, a Europa foi feita sem
plano, falhando nela todas as previsões históricas de longo prazo:
a. - falhou a perpetuidade dos
valores metafísicos do catolicismo medieval;
b. -
falhou a predominância do classicismo italiano;
c. - falhou a superioridade dos
valores cristãos protestantes ingleses e alemães;
d. -
falhou a soberania da ética burguesa mercantil e a pureza de uma razão
científica iluminista e positivista;
e. – falhou o sonho visionário
comunista de igualdade social absoluta.
Em cada fracasso, porém, como o
pelicano que extrai carne do seu próprio peito para alimentar as crias, ou como
a Fénix que em cada morte renasce das cinzas, a Europa ressuscita diferente a
cada momento e porventura mais sólida e mais forte face ao futuro, ainda que,
face ao passado, mais existencialmente desorientada.
À semelhança dos tempos romanos e
medievais, a Europa arrasta hoje às costas o gigante que é o passado
constitutivo da sua verdadeira essência. Se o passado o tem bem conservado em
museus, monumentos e, sobretudo, na prática diária de vida, os sonhos de futuro
que a Europa sonha, esses, têm sido realizados, desde o final da II Guerra
Mundial, por outros, nomeadamente os Estados Unidos da América, mas também, no
estrito campo da tecnologia, pelo Japão e pela Coreia do Sul, e, recentemente,
pela Índia, em parte pela China e, também em parte, pelo Brasil.
Neste sentido, a Europa é, hoje, um
estado de espírito que, gerado nas suas entranhas ao longo de cerca de três mil
anos, amassado a sangue, a fogo e a felicidade, se generalizou pela totalidade
do mundo numa fúria devastadora de religiões, tradições, línguas, culturas e
costumes locais, nivelando os continentes segundo a luz da propriedade privada
e da razão contabilista (ou, para falar a linguagem de Heidegger, a razão
“calculista”; ou, segundo H. Marcuse “a razão unidimensional”, ou, se permitem
citar um filósofo português, José Enes, a “razão funcionalista”, a razão
eficiente do Estado).
Deve a Europa respeitar e orgulhar-se
dos seus feitos passados:
- primeiro, de criadora dos valores que se encontram na base permanente do
Humanismo, da defesa da liberdade e dos direitos humanos e ambientais;
- segundo, de mediadora entre continentes, culturas e religiões, criando o actual
arquipélago de continentes a que chamamos Terra;
- terceiro, de instauradora de uma nova ordem no mundo, uma ordem racional e
mercantil, a primeira ordem global, de tendência humanista, socorrido do
espírito missionário da religião cristã.
No entanto, a Europa não deve
orgulhar-se nem deve venerar os meios utilizados (a guerra, o genocídio, a
substituição violenta de culturas e religiões, a criação da escravatura
industrializada, a rapina dos recursos naturais, a destruição de habitats
ecológicos). Por este motivo, tão positivo quanto negativo, deu-se à ordem
mundial assim instaurada, de que Portugal foi cabeça e motor, o nome de
“ocidentalização do mundo”, radicalmente diferente da actual globalização; a
nossa “globalização”, de origem ibérica,
possuía uma tendência espiritual e humanista, inclinada a salvar o
outro, o bárbaro, o pagão, o incréu, o ímpio, o gentio, o não-civilizado; a
segunda, possui um explícito carácter materialista, desprovido de qualquer
laivo de transcendência.
Por isso, G. Steiner identifica o
espírito da Europa com a cultura nascida no e pelo “café”, entendido este como
um lugar livre de meditação, de
escrita e de discussão ou debate de ideias. De outro modo, acrescentamos nós, o
símbolo da actual globalização identifica-se com a Coca-cola e o McDonald’s,
símbolos do hedonismo individualista. Com efeito, para a antiga Europa, a ideia
circulada pelos cafés constituía a essência, ateia ou religiosa, por que o
cidadão instruído via o mundo, lutando e morrendo pela sua dimensão política.
Onde Steiner escreve café, podemos nós, também, escrever a “ágora” grega, o
“forum” romano, o átrio da igreja, o claustro do convento, o rossio da aldeia
ou vila, a albergaria ou a pousada acolhedora de desconhecidos e o botequim dos
séculos XVII e XVIII, antecessores do “café”, nascido e generalizado nos
séculos XIX e XX. Não fala Steiner, injustamente, dos corredores e das celas
dos conventos e, hoje, dos gabinetes das Universidades. Em todos, é comum o
encontro, a partilha de inquietações e descobertas, a generalização de saberes,
o entusiasmo na aceitação da ideia nova, a mordacidade e a sátira de grupos e
tipos sociais decadentes, a liberalização de costumes, isto é, a concretização
social do espírito crítico.
De facto, que espírito é esse que,
mais do que em foro privado e íntimo, se centra recorrentemente no espaço
público e que presta contorno de figura relevante à Europa, simultaneamente que
lhe faz pulsar acelerado o coração? Que forma
mentis é essa que forçou Ulisses a penar uma viagem de dez anos e Xenófanes
de Cólofon a clamar que se os bois adorassem deuses estes teriam
necessariamente cornos? Que sopro da consciência é esse que forçou Antígona,
uma mulher, a revoltar-se contra o Estado, que a proibia de enterrar o corpo
defunto do irmão? Que ânimo vital é esse que fez nascer o Homem da revolta
contra os deuses (Prometeu), roubando-lhe o fogo do pensamento (a razão) ou
recebendo destes o fruto do conhecimento (Eva e Adão)?
Esse quid
que fez e faz a Europa, e tão integral e puro não existe em outro continente,
consiste no puro nada sem conteúdo nem forma que se dá pelo nome de
inquietação, de frenesi de conhecimento, de desejo de saber, de questionamento,
de substituição da certeza pela dúvida, da resposta definitiva pela pergunta
anómala, por vezes e aparentemente sem sentido, da substituição da aceitação
crédula pela crítica demolidora. Numa palavra, pela realização do sentimento
que os filósofos designam por “espanto”, a capacidade de assombramento pela existência
das coisas, assim mesmo como são e estão e por que não são e estão de outro
modo, ou, numa frase lapidar, escrita por Leibnitz há trezentos anos, “Porque
existe o ser e não o nada?”, ser que pressupõe ordem, organização, estrutura, e
não o nada, que pode pressupor também o caos, a desordem anárquica.
Numa palavra sintética, a Europa é o
lugar da formação do saber gerado como resposta (sempre inconclusiva) a esse
espanto:
a. o lugar da filosofia (a interrogação
fundamental)
b. o lugar da ciência pura (desinteressada,
o porquê das coisas individuais)
c. o lugar da poesia (a projecção lírica
ou trágica do sentimento do espanto)
d. o lugar do romance (a projecção da
aventura de uma consciência em processo de descoberta e conhecimento concretos)
e. o lugar do ensaio (a projecção da
aventura de uma consciência em processo de descoberta e conhecimento
abstractos)
f. o lugar da arte (a cristalização do
sentimento de espanto em papel, tela, som, cores, formas da realidade).
Neste sentido, a Europa é o
continente do inútil, do que não é absolutamente necessário à sobrevivência do
homem, do supérfluo, do gratuito, do vão, isto é, da filosofia, da ciência pura
(desinteressada de efeitos materiais), da poesia, do romance, do ensaio e da
arte, que, sistematizados em configurações técnicas conjunturais,
classificados, dispostos em correntes, logo sofrem de decadência, substituídos
por outras filosofias, outras teorias científicas, outras formas de poesia,
romance e arte.
Porventura melhor do que todas as
outras, a forma do ensaio define a forma
mentis da Europa – pensamento crítico descomprometido que avança tacteando
pontos de apoio, atingindo instáveis certezas, logo traduzidas em incertezas,
mas visíveis e sólidas plataformas para novas buscas, que de imediato se
transfiguram em outras tantas dúvidas, algumas logo negadas, outras reafirmadas
com grau rijo de ambiguidade, até se atingir uma certeza mais firme que todas
as restantes, que, com algum grau de convicção, declaramos ser a verdade. A
Europa é o único continente que sabe, hoje, que a verdade consiste na forma
provisória da não-verdade.
De facto, qual a diferença entre a
Europa e a cultura dos restantes continentes? O que a estes lhes faltou
percorrer que os europeus já percorreram? Que experiência nova trouxe a Europa
ao mundo, não vivida pelos restantes continentes? Falta-lhes ter atravessado o
mundo, fazendo-o nascer para a consciência da humanidade, no que se formou e
consistiu o espírito europeu da Idade Moderna. Falta-lhes, nesta travessia, o
primitivo sentido aventureiro e trágico da viagem.
Tal como o ensaio no plano teórico e
filosófico, a viagem torna-se, no sentido cultural, definidora do homem
enquanto ser primitivamente nómada. Com efeito, viajar é imaginariamente
retornar a esse estado de absoluta imprevisibilidade que definiu o homem
pré-histórico e que nos definiu como animais humanos ao longo de cerca de 200
000 anos. Se não nos ficou nos genes, a viagem ficou-nos nos arquétipos imagiológicos
reitores do inconsciente.
Em essência, a viagem ou o estado de
nomadismo reside na imprevisibilidade, na ausência de qualquer plano prévio
excepto a demarcação bem precisa de um objectivo final, que nos nossos
patriarcas, habitantes da pré-história, se deveria circunscrever à busca de
alimentos, isto é, de territórios onde abundasse água, carne, frutas, cereais.
Não é impossível que a nossa visão do Paraíso, recorrente em todas as épocas e
em todas as épocas adornada de novas qualidades, possua a sua mais arcaica
fonte imagética nessa interminável busca do homem primitivo, seguindo sem
cessar manadas sem, ao mesmo tempo, se afastar dos cursos de água.
Desse penar infindável, em termos de
forma imagética, se alimenta a Ilíada
(o livro mais livro da cultura europeia, verdadeiro arquetípico desta cultura)
e o périplo imprevisível dos dez penosos anos de Ulisses, estatuindo-se como
paradigma cultural da nossa civilização. Ítaca, por seu lado, gravou-se na
literatura de todos os tempos como imagem substituta do Paraíso. Se atentarmos
no itinerário físico e existencial de Ulisses e o compararmos com outras
narrativas modelares da viagem, como a Eneida,
de Vergílio, a Navegação de São Brandão,
o Conto de Amaro ou Peregrinação de Fernão Mendes Pinto,
constatamos que no coração de todas estas obras reside a imprevisibilidade
enquanto estado humano de absoluto inesperamento, de fortuitidade, de acaso, de
percurso animado de múltiplos acidentes e peripécias que desviam o herói de
atingir o seu objectivo, atrasando-o, jogando-o por caminhos e situações
insólitas e por sentimentos e estados interiores que lhe são totalmente
desconhecidos, forçando-o a ceder ou a resistir, a recuar ou a avançar, a
hesitar e a conciliar, no que foi definido pelos gregos como a famosa “manha”
de Ulisses.
Porém, a imprevisibilidade da viagem
não se tece de um absoluto acaso. Diferentemente, a mão de Deus ou dos deuses
existe por detrás dos acidentes de percurso sofridos pelo herói e constituem-se
como provas pelas quais a divindade ou o Destino (a moira grega ou o fatum
romano) experimenta as virtudes do herói. Ulisses, como Amaro, Brandão ou
Fernão Mendes Pinto, sofrem todo o tipo de tentações (é-lhes oferecido riqueza,
poder, fama…), experimentam o tremor e o terror kierkegaardiano da angústia e
do desespero, da solidão, sofrem, expiam, suam, vomitam todo o mal que se
encontra no seu interior, purificando-se, e, finalmente, superadas as
limitações, transcendidas as provações, o herói atinge a sua realização,
Ulisses reconquista a sua Ítaca, Brandão e Amaro sofrem a visão do Paraíso
eterno, a Terra dos Bem-Aventurados, ou as Ilhas Afortunadas, Fernão Mendes
Pinto regressa rico a Portugal e Vasco da Gama é erótica e espiritualmente
premiado pelo conforto das deusas na Ilha dos Amores.
Assim, se seguirmos a lição dos
clássicos, não há viagem que não seja tecida destes quatro elementos
constituintes: imprevisibilidade, terror do inesperado ou provação/tentação,
sofrimento/ expiação e visão transcendente.
A Europa, transformando os
continentes em ilhas de um grande arquipélago chamado Terra, provou o sabor
desta cultura nómada da viagem, interiorizando-a na sua mentalidade social. Por
isso sabe que o nomadismo, hoje desprovido de transcendência paradisíaca,
constitui a forma por que o espanto da existência melhor concretiza geográfica
e politicamente a natureza errática do homem. Hoje, três mil anos depois de
Moisés e Homero, a Europa sabe que o Paraíso, a Terra Prometida, não constitui
um ponto de chegada, mas o motor ético que força o homem a partir. O Paraíso
tornou-se o cais de partida de todo o homem aventureiro, isto é, ensaísta, isto
é, europeu. Esta a grande, grande diferença entre a Europa e os restantes
continentes. A Europa já viajou pela Terra inteira, verdadeiramente criou a
actual representação da Terra, e já regressou a casa; os outros continentes,
sobretudo o Americano (que faz da viagem uma epopeia espacial) e o Africano
(que, infelizmente, por culpas de que não nos são de todo alheias, transformou
o nomadismo da viagem em naufrágio) ainda se encontram em viagem.
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