quarta-feira, 22 de abril de 2015

Ética e Velocidade

HUGO LUZIO

Hugo Luzio, 19 anos. Estudante de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Menção Honrosa nas III Olimpíadas Nacionais de Filosofia e medalha de bronze nas I Olimpíadas Ibero-Americanas de Filosofia. Especial interesse em Lógica, Filosofia da Linguagem e Ciência Cognitiva. Músico (baterista e percussionista) em diversos projetos da zona de Sintra.

 "Afirmamos que a magnificência do mundo se enriqueceu de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de corrida com o seu capot ornado com grossos tubos semelhantes a serpentes de sopro explosivo... um automóvel que ruge e parece correr sobre a metralha é mais belo do que a Vitória de Samotrácia."

Marinetti, Manifesto Futurista

O Séc. XX brindou-nos com um larguíssimo legado de alterações socioculturais, mais ou menos dinâmicas, que revolucionaram completamente o panorama civilizacional vigente. Uma renovada abordagem ao meio e desenvolvimento sociais resultou, sobretudo, num profundo corte com a tendência tradicionalista ocidentalmente perpetuada, na requalificação de um tipo de arte que caíra no conservadorismo da sua própria academia, na inversão de um leque de concepções e abordagens profundamente estabelecidas, etc.

Numa curiosa associação, o Movimento Futurista 1 decretou a rejeição pura das perspetivas éticas vigentes, propagando a violência, a guerra e a força das máquinas como meio de desprezo total da padronização moral. A exaltação dos desenvolvimentos tecnológicos e da sociedade Moderna é, também aqui, um verdadeiro elogio da velocidade. Hoje, mais do que nunca, faz sentido considerarmos que a velocidade e a moralidade (ou a sua anulação), estabelecem uma interrelação de mútuo condicionamento.

A presente reflexão trata, fundamentalmente, as relações entre o imobilismo, a mobilidade, o movimento, a dinâmica de vida, a velocidade das ideias, o aceleramento das nossas decisões e todas as implicações que este tipo de fenómenos assumem na capacidade de reflexão ético-moral que desempenhamos sobre as nossas ações. O que significa, contemporaneamente, agir eticamente? Podem o lato conceito de verdade, e, consequentemente, as verdades particularizadas, os valores morais que tomamos como padrão para a nossa ação, ser definidos consoante um tipo particular de velocidade? De que modo o imediatismo vigorante nas nossas relações sociais acentua a tendência para uma instantaneidade (reação) irrefletida e será que uma ação irrefletida, automatizada, tem necessariamente de ser menos moral do que uma ação sobre a qual se efetue uma reflexão mais ponderada?

Partimos, pragmaticamente, de três axiomas fundamentais apontados por Sloterdijk em A Mobilização Infinita: (1) Movemo-nos a nós próprios num mundo que se move a si próprio; (2) Os movimentos próprios do Mundo incluem e atropelam os nossos movimentos particulares; (3) Naquilo a que chamamos Modernidade, os movimentos próprios do Mundo provêm dos nossos próprios movimentos, que cada vez mais se adicionam ao movimento mundial.

A relação individual que temos para com o mundo 2 assume, afirmo, um vínculo mecanicista, quase-viciado. O Mundo evolui e desenvolve-se por força do avanço e progresso dos agentes particulares que o constituem. Deste modo, o desenvolvimento corrente é fruto do dinamismo de ação de seres particulares. O que paradoxalmente se aponta, é que o avanço dos agentes individuais que decretam o avanço do Mundo como todo, surge em consequência direta da modelação que o Mundo impõe aos agentes que lhe dão movimento 3. Assim, o progresso, este paradoxal avanço do Mundo, atropela quem o constitui. O que é certo, é que o Mundo não espera que atravessemos a sua passadeira, não para em sinais vermelhos. Muito pelo contrário, avança cada vez mais rapidamente. Conseguiremos nós acompanhar o veloz progresso do espaço em que nos inserimos?

Os contextos particulares que experienciamos, o espaço e o tempo praticados e as influências externas de todas as ordens, assumem-se como definidores centrais da nossa capacidade de reflexão sobre as ações que realizamos. Limitar a ação é limitar o tempo ofertado ao agente de ação para que este considere o real significado e consequências práticas do ato que efetiva. Não é, forçosamente, impedir ação X de ser realizada. As formas de intervenção humana na realidade vêm sendo cada vez mais direcionadas para o fazer e menos para o agir. Fazer é uma forma involuntária e automática de ação; Agir é uma forma voluntária de ação, requerendo a consciência dos objetivos válidos de determinado sujeito que atribui certo fundamento ao ato que efetiva. A tendência para o fazer ganhou uma consciência própria, uma urgência caraterística que se alinha com a dinâmica social em que nos vemos inseridos, relaciona-se diretamente com a pressa da inscrição do ato na realidade experienciada.

Vivenciar um contexto impresivelmente mutável, em que a dinâmica de ação individual cada vez mais se vê relacionada com as possibilidades de ação-no-espaço, resulta necessariamente na protocolação indireta da capacidade de reflexão sobre o agir. Assim, as relações sociais vão-se encontrando progressivamente associadas ao imediatismo da decisão, à velocidade com que temos de lidar com uma maior e mais ampla exposição nas nossas próprias vivências comunitárias, à pressa e rapidez consideradas como fatores fundamentais a adotar, como virtudes e necessidades do Homem Moderno, que constantemente se atualiza. Toda a informação, todos os contactos e possibilidades de comunicação estão hoje inseridos numa rede global, à distância de cliques e pequenos movimentos, imediatamente dispostos, não apenas por utilidade, mas por definição.

A reflexão sobre o estado fundamentado dos valores tomados como núcleos orientadores da ação, tal como a análise do comportamento humano e dos seus padrões (a)morais, complexificam-se num mundo em que a velocidade se assume como condição sine qua non do progresso individual no contexto social. - Mexe-te, se não o fizeres, ninguém o fará por ti. - A Ética poderá, hoje, ser reformulada não como determinado percurso escolhido após reflexão e deliberação individuais, mas como a velocidade com que percorremos esse mesmo percurso próprio. O que fazes face ao que acontece e a que ritmo o fazes, parecem ser questões que assumem um novo e decisivo papel nas nossas considerações morais.4

A consideração “Ética como velocidade” surge-nos, quase certamente, como analogia um tanto quanto obscura, sem linhas precisas definidas e sem exemplo de observação nas nossas experiências diárias. No entanto, são variadíssimos os exemplos ilustradores deste tipo de hipótese e da importância de levar a cabo uma reflexão deste tipo. São espantosos, a título exemplar, os resultados revelados pela Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, em relação a um estudo efetuado na área que tratamos.

Submetendo voluntários a assistir à narração de histórias geradoras de sentimentos de admiração pela virtude humana e comparando os resultados obtidos com as respostas ofertadas a situações em que se apresentaram casos de explícita dor física, exames de neuroimagem demonstraram a apresentação de uma resposta instantânea à perceção de dor física do Outro, mas uma demora de cerca de 6 a 8 segundos para responder às histórias que evocavam admiração ou compaixão pela dor emocional. Outro resultado admirável prende-se com a descoberta de que as áreas cerebrais ativadas ao ser reconhecida a dor física de um Outro foram as mesmas que nos fazem ter consciência do nosso próprio corpo.

Os vídeo-jogos violentos são exemplos concretos desta relação entre rapidez e apatia moral. Por força da dinâmica com que os eventos decorrem no contexto virtual, não se permite a mínima compaixão com as figura-representativas (por vezes, humanos). O único objetivo é a aniquilação, a morte rápida. A compaixão não existe virtualmente. A aceleração do real pode aqui ser considerada como impulso à instintividade, à reposta imediata, comumente relacionável com a imoralidade. Mas tem necessariamente uma ação irrefletida, automatizada, de ser menos moral 5 do que uma ação sobre a qual se efetue uma reflexão ponderada? É, necessariamente, o fazer menos moral do que o agir?

Uma ação imediata é uma ação menos refletida. No entanto, uma ação menos refletida não é necessariamente uma ação que faça um uso menos direto da consciência moral individual, tendo em conta que esta é, em parte, resultado direto da confluência entre os padrões morais vigentes em determinado contexto social onde o indivíduo se vê integrado e das considerações individuais adotadas sobre esses mesmos padrões. É-o, antes, considero, uma ação mais instantânea, mais automática, mais mecânica. Hoje em dia o automatismo não pode, ainda assim, ser necessariamente interligado ao primitivismo da “reação”, tal como uma reação mais instintiva ou direta a determinada situação não pode ser imediatamente considerada menos moral. A reação, a velocidade imediata de aproximação a determinado evento, está, hoje, diretamente interligada ao padrão moral dominante, à força da ideologia determinada. O instinto ganhou um novo significado, porque não existe mais independentemente do meio, não é apenas resultado direto da individualidade do sujeito; é o contexto social que gera os seus contornos, que programa o seu tipo de manifestação.

Falamos aqui de uma espécie de linguagem programática da ética. É ponto assente que a tecnologia não pode resolver dilemas morais: um computador não tem consciência, não delibera ações, não considera moralmente opções, não analisa possíveis consequências éticas. Contudo, se nele introduzirmos referências de condicionantes sociais, genéticas, pessoais, noções gerais de valores a serem considerados como orientadores de escolha, etc, é certo que a máquina conseguirá, dentro do seio do próprio padrão programático introduzido, resolver questões de cariz moral. Simplesmente agirá segundo a lógica da procura dos resultados mais produtivos/benéficos para o maior número de partes envolvidas na questão. Também nós estamos sujeitos a esta espécie de programa definidor, a um influenciador da ação.

A reflexão moral assenta, sobretudo, na separação entre aquilo que tomamos como bem, passível de ser considerado como impulso à boa-acção, e mal, passível de ser tomado como impulso à má-acção. Existe, na valoração moral, uma certa noção de verdade. É verdade, para mim, que há mal na dor, daí que, quando confrontado com a possibilidade de premir, ou não, o gatilho de um revólver contra alguém, provavelmente, escolherei não o fazer. Não é, assim, segundo os meus próprios princípios e valores morais, uma ação ética, matar alguém. Contudo, o que me garante que a opção que tomo como correta, apoiada num certo critério de veracidade que em muito molda o meu próprio posicionamento moral, é, de facto o mais correto? O que me garante que é verdadeiramente imoral matar?

O caso apresentado em Austerlitz, de W. G. Sebald, evidencia concretamente o que podemos inferir da noção de Verdade como um tipo particular de velocidade, do qual farei uso figurativo para esboçar as implicações diretas da dinâmica do meio nas nossas decisões morais. A dado momento da obra, o protagonista encontra um vídeo de propaganda Nazi, que tenta passar a ideia de uma cidade construída pelos nazis para os judeus, onde se vive maravilhosamente entre homens livres. Na tentativa de averiguar se uma pessoa particular esteve presente nesse mesmo vídeo, o protagonista manda fazer uma cópia do mesmo em câmara lenta, não com a duração original de catorze minutos, mas de uma hora.

A transformação da velocidade da película revela, como Gonçalo M. Tavares refere, uma estranha manifestação de elementos antes ocultos: “[...] a alegre polca que se ouve na banda sonora torna-se numa marcha fúnebre que se arrasta de um modo quase grotesco.”, as pessoas que surgiam primeiramente como alegres cidadãs, surgem agora andando longa e morosamente, num cenário que melhor parecer ilustrar alguma verdade efetiva sobre a dinâmica social do nazismo. A redução da velocidade mostra, aqui, alguma verdade antes ignorada: “o que parecia uma canção alegre é, afinal, uma canção fúnebre”. A velocidade de exposição do mundo e a velocidade de observação do real tornam-se conflituosas, apresentado um novo (e estranho) conceito que surge pela consolidação destes dois tipos de aproximação: a Verdade como velocidade certa da realidade, como velocidade intermédia entre o observador e o que é observado.6

As tartarugas conhecem melhor as estradas que os coelhos.7 Se as nossas decisões ético-morais estão diretamente associadas a determinadas noções de verdade, a certas verdades incontornáveis que necessariamente assumimos para definir o rumo da nossa ação, então, torna-se impositivo relacionarmos a dinâmica externa, a velocidade dos fenómenos com que lidamos e a nossa própria velocidade de aproximação aos fenómenos que decorrem, com a capacidade de reflexão moral. Diz-me a que velocidade andas, dir-te-ei qual a tua moral.

O progresso técnico, a Modernidade, a tecnologia, as extensões mentais materializadas em resoluções tecnológicas, o evitar da apatia e a consideração da lentidão como atitudes contraproducentes, potenciais canalizadores de inação 8 estão a limitar significativamente o espaço para a reflexão moral, a protocolar cada vez mais o instinto e o imediatismo automático das nossas decisões, a tornar a urgência da ação um fenómeno necessário à sustentável vivência social. É neste ponto, que devíamos todos pegar no comando utilizado por Adam Sandler em Click 9 e transformar a existência contínua, as nossas vivências e ações irrefletidas (mas não necessariamente imorais), num processo de reflexão em slowmotion, notando na experiência lenta os pormenores que nos escapam pela pressa, transformando a moralidade numa categoria reparada, tornando a ação re-ação, uma ação duplamente repetida: a primeira - pensar a ação; a segunda - realizar a ação pensada.10

Se somos o motor do Mundo, e se é o Mundo que define, cada vez mais acentuadamente, a nossa própria velocidade de existência, tornar-nos-emos, num futuro próximo, meras vítimas da nossa própria velocidade? Atropelar-nos-emos paradoxalmente, como vítimas de um mobilismo que peca pela irreflexão? Seremos nós apenas produtos de uma Técnica que torna urgente a prática?

Resumida sinteticamente, a minha proposta central é a de que a velocidade e o imediatismo da realidade com a qual lidamos correntemente nos estão a conduzir, progressivamente, à amoralidade (e não à imoralidade). Isto é, a um fazer automatizado (não necessariamente imoral); somos meras reduções concretas da ideologia prática que nos guia, do fio que conduz a marioneta humana.

[Advertência para o leitor mais ingénuo: tudo o que se escreve é erro em potência.]

 Hugo Luzio

1 Com origem no Manifesto Futurista, de Marinetti [citação inicial], e nacionalmente representado, p.e., por Álvaro de Campos (ver Ode Triunfal)

2 Mundo, como espaço social unificado, encontro centralizado onde todos os indivíduo são coletivamente.

3 Restam opções contrastantes: ou assumimos que a superestrutura social define as consciências individuais, ou consideramos, ao invés, que por força da superestrutura social ser produtora direta das consciências individuais, elas acabam sendo apenas produto delas próprias.

4 Tavares, Gonçalo M. – “Pés e Pensamento” – Atlas do Corpo e da Imaginação; p. 111

5 Menos moral, como tendência para a imoralidade.

6 Tavares, Gonçalo M. – “Velocidade da Realidade, e Lentidão” – Atlas do Corpo e da Imaginação

7 Khalil Gibran

8 Porque é que, em religião alguma, se criou um “Deus da Lentidão?”

9 2006

10 “Don’t act. Just think.” – Slavoj Žižek – Big Think

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