Hugo Luzio, 19 anos. Estudante de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Menção Honrosa nas III Olimpíadas Nacionais de Filosofia e medalha de bronze nas I Olimpíadas Ibero-Americanas de Filosofia. Especial interesse em Lógica, Filosofia da Linguagem e Ciência Cognitiva. Músico (baterista e percussionista) em diversos projetos da zona de Sintra.
"Afirmamos que a magnificência do
mundo se enriqueceu de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de
corrida com o seu capot ornado com grossos tubos semelhantes a serpentes de
sopro explosivo... um automóvel que ruge e parece correr sobre a metralha é
mais belo do que a Vitória de Samotrácia."
Marinetti, Manifesto
Futurista
O Séc. XX
brindou-nos com um larguíssimo legado de alterações socioculturais, mais ou
menos dinâmicas, que revolucionaram completamente o panorama civilizacional
vigente. Uma renovada abordagem ao meio e desenvolvimento sociais resultou,
sobretudo, num profundo corte com a tendência tradicionalista ocidentalmente
perpetuada, na requalificação de um tipo de arte que caíra no conservadorismo
da sua própria academia, na inversão de um leque de concepções e abordagens
profundamente estabelecidas, etc.
Numa curiosa
associação, o Movimento Futurista 1 decretou a rejeição pura das
perspetivas éticas vigentes, propagando a violência, a guerra e a força das
máquinas como meio de desprezo total da padronização moral. A exaltação dos
desenvolvimentos tecnológicos e da sociedade Moderna é, também aqui, um verdadeiro
elogio da velocidade. Hoje, mais do que nunca, faz sentido considerarmos
que a velocidade e a moralidade (ou a sua anulação), estabelecem
uma interrelação de mútuo condicionamento.
A presente
reflexão trata, fundamentalmente, as relações entre o imobilismo, a mobilidade,
o movimento, a dinâmica de vida, a velocidade das ideias, o aceleramento das
nossas decisões e todas as implicações que este tipo de fenómenos assumem na
capacidade de reflexão ético-moral que desempenhamos sobre as nossas ações. O
que significa, contemporaneamente, agir eticamente? Podem o lato conceito de verdade,
e, consequentemente, as verdades particularizadas, os valores morais que
tomamos como padrão para a nossa ação, ser definidos consoante um tipo
particular de velocidade? De que modo o imediatismo
vigorante nas nossas relações sociais acentua a tendência para uma instantaneidade
(reação) irrefletida e será que uma ação irrefletida, automatizada, tem
necessariamente de ser menos moral do que uma ação sobre a qual se
efetue uma reflexão mais ponderada?
Partimos,
pragmaticamente, de três axiomas fundamentais apontados por Sloterdijk em A
Mobilização Infinita: (1) Movemo-nos a nós próprios num mundo que se move a
si próprio; (2) Os movimentos próprios do Mundo incluem e atropelam os nossos
movimentos particulares; (3) Naquilo a que chamamos Modernidade, os
movimentos próprios do Mundo provêm dos nossos próprios movimentos, que cada
vez mais se adicionam ao movimento mundial.
A relação
individual que temos para com o mundo 2 assume, afirmo, um vínculo
mecanicista, quase-viciado. O Mundo evolui e desenvolve-se por força do avanço
e progresso dos agentes particulares que o constituem. Deste modo, o
desenvolvimento corrente é fruto do dinamismo de ação de seres particulares. O
que paradoxalmente se aponta, é que o avanço dos agentes individuais que
decretam o avanço do Mundo como todo, surge em consequência direta da modelação
que o Mundo impõe aos agentes que lhe dão movimento 3. Assim, o progresso,
este paradoxal avanço do Mundo, atropela quem o constitui. O que é certo, é que
o Mundo não espera que atravessemos a sua passadeira, não para em sinais
vermelhos. Muito pelo contrário, avança cada vez mais rapidamente.
Conseguiremos nós acompanhar o veloz progresso do espaço em que nos inserimos?
Os contextos
particulares que experienciamos, o espaço e o tempo praticados e as influências
externas de todas as ordens, assumem-se como definidores centrais da nossa
capacidade de reflexão sobre as ações que realizamos. Limitar a ação é limitar
o tempo ofertado ao agente de ação para que este considere o real
significado e consequências práticas do ato que efetiva. Não é, forçosamente,
impedir ação X de ser realizada. As formas de intervenção humana na realidade
vêm sendo cada vez mais direcionadas para o fazer e menos para o agir.
Fazer é uma forma involuntária e automática de ação; Agir é uma
forma voluntária de
ação, requerendo a consciência dos objetivos válidos de determinado sujeito que
atribui certo fundamento ao ato que efetiva. A tendência para o fazer ganhou
uma consciência própria, uma urgência caraterística que se alinha com a
dinâmica social em que nos vemos inseridos, relaciona-se diretamente com a
pressa da inscrição do ato na realidade experienciada.
Vivenciar um
contexto impresivelmente mutável, em que a dinâmica de ação individual cada vez
mais se vê relacionada com as possibilidades de ação-no-espaço, resulta
necessariamente na protocolação indireta da capacidade de reflexão sobre o agir.
Assim, as relações sociais vão-se encontrando progressivamente associadas ao
imediatismo da decisão, à velocidade com que temos de lidar com uma maior e
mais ampla exposição nas nossas próprias vivências comunitárias, à pressa e
rapidez consideradas como fatores fundamentais a adotar, como virtudes e
necessidades do Homem Moderno, que constantemente se atualiza. Toda a
informação, todos os contactos e possibilidades de comunicação estão hoje
inseridos numa rede global, à distância de cliques e pequenos movimentos, imediatamente
dispostos, não apenas por utilidade, mas por definição.
A reflexão sobre
o estado fundamentado dos valores tomados como núcleos orientadores da ação,
tal como a análise do comportamento humano e dos seus padrões (a)morais,
complexificam-se num mundo em que a velocidade se assume como condição sine
qua non do progresso individual no contexto social. - Mexe-te, se não o
fizeres, ninguém o fará por ti. - A Ética poderá, hoje, ser reformulada não
como determinado percurso escolhido após reflexão e deliberação individuais,
mas como a velocidade com que percorremos esse mesmo percurso próprio. O
que fazes face ao que acontece e a que ritmo o fazes, parecem ser
questões que assumem um novo e decisivo papel nas nossas considerações morais.4
A consideração “Ética
como velocidade” surge-nos, quase certamente, como analogia um tanto quanto
obscura, sem linhas precisas definidas e sem exemplo de observação nas nossas
experiências diárias. No entanto, são variadíssimos os exemplos ilustradores
deste tipo de hipótese e da importância de levar a cabo uma reflexão deste
tipo. São espantosos, a título exemplar, os resultados revelados pela Proceedings
of the National Academy of Sciences of the United States of America, em
relação a um estudo efetuado na área que tratamos.
Submetendo
voluntários a assistir à narração de histórias geradoras de sentimentos de
admiração pela virtude humana e comparando os resultados obtidos com as respostas
ofertadas a situações em que se apresentaram casos de explícita dor física,
exames de neuroimagem demonstraram a apresentação de uma resposta instantânea à
perceção de dor física do Outro, mas uma demora de cerca de 6 a 8 segundos para
responder às histórias que evocavam admiração ou compaixão pela dor emocional.
Outro resultado admirável prende-se com a descoberta de que as áreas cerebrais
ativadas ao ser reconhecida a dor física de um Outro foram as mesmas que nos
fazem ter consciência do nosso próprio corpo.
Os vídeo-jogos
violentos são exemplos concretos desta relação entre rapidez e apatia
moral. Por força da dinâmica com que os eventos decorrem no contexto virtual,
não se permite a mínima compaixão com as figura-representativas (por vezes, humanos).
O único objetivo é a aniquilação, a morte rápida. A compaixão não existe
virtualmente. A aceleração do real pode aqui ser considerada como impulso à
instintividade, à reposta imediata, comumente relacionável com a imoralidade.
Mas tem necessariamente uma ação irrefletida, automatizada, de ser menos
moral 5 do que uma ação sobre a qual se efetue uma reflexão ponderada? É,
necessariamente, o fazer menos moral do que o agir?
Uma ação
imediata é uma ação menos refletida. No entanto, uma ação menos refletida não é
necessariamente uma ação que faça um uso menos direto da consciência moral
individual, tendo em conta que esta é, em parte, resultado direto da
confluência entre os padrões morais vigentes em determinado contexto social
onde o indivíduo se vê integrado e das considerações individuais adotadas sobre
esses mesmos padrões. É-o, antes, considero, uma ação mais instantânea, mais automática,
mais mecânica. Hoje em dia o automatismo não pode, ainda assim, ser
necessariamente interligado ao primitivismo da “reação”, tal como uma reação
mais instintiva ou direta a determinada situação não pode ser imediatamente
considerada menos moral. A reação, a velocidade imediata de aproximação
a determinado evento, está, hoje, diretamente interligada ao padrão moral
dominante, à força da ideologia determinada. O instinto ganhou um novo
significado, porque não existe mais independentemente do meio, não é apenas
resultado direto da individualidade do sujeito; é o contexto social que gera os
seus contornos, que programa o seu tipo de manifestação.
Falamos aqui de
uma espécie de linguagem programática da ética. É ponto assente que a
tecnologia não pode resolver dilemas morais: um computador não tem consciência,
não delibera ações, não considera moralmente opções, não analisa possíveis
consequências éticas. Contudo, se nele introduzirmos referências de
condicionantes sociais, genéticas, pessoais, noções gerais de valores a serem
considerados como orientadores de escolha, etc, é certo que a máquina
conseguirá, dentro do seio do próprio padrão programático introduzido, resolver
questões de cariz moral. Simplesmente agirá segundo a lógica da procura dos
resultados mais produtivos/benéficos para o maior número de partes envolvidas na
questão. Também nós estamos sujeitos a esta espécie de programa definidor, a um
influenciador da ação.
A reflexão moral
assenta, sobretudo, na separação entre aquilo que tomamos como bem,
passível de ser considerado como impulso à boa-acção, e mal, passível
de ser tomado como impulso à má-acção. Existe, na valoração moral, uma
certa noção de verdade. É verdade, para mim, que há mal na dor, daí que,
quando confrontado com a possibilidade de premir, ou não, o gatilho de um
revólver contra alguém, provavelmente, escolherei não o fazer. Não é, assim,
segundo os meus próprios princípios e valores morais, uma ação ética,
matar alguém. Contudo, o que me garante que a opção que tomo como correta,
apoiada num certo critério de veracidade que em muito molda o meu próprio
posicionamento moral, é, de facto o mais correto? O que me garante que é
verdadeiramente imoral matar?
O caso
apresentado em Austerlitz, de W. G. Sebald, evidencia concretamente o
que podemos inferir da noção de Verdade como um tipo particular de velocidade,
do qual farei uso figurativo para esboçar as implicações diretas da dinâmica do
meio nas nossas decisões morais. A dado momento da obra, o protagonista
encontra um vídeo de propaganda Nazi, que tenta passar a ideia de uma cidade
construída pelos nazis para os judeus, onde se vive maravilhosamente entre
homens livres. Na tentativa de averiguar se uma pessoa particular esteve
presente nesse mesmo vídeo, o protagonista manda fazer uma cópia do mesmo em
câmara lenta, não com a duração original de catorze minutos, mas de uma hora.
A transformação
da velocidade da película revela, como Gonçalo M. Tavares refere, uma estranha
manifestação de elementos antes ocultos: “[...] a alegre polca que se ouve na
banda sonora torna-se numa marcha fúnebre que se arrasta de um modo quase
grotesco.”, as pessoas que surgiam primeiramente como alegres cidadãs, surgem
agora andando longa e morosamente, num cenário que melhor parecer ilustrar
alguma verdade efetiva sobre a dinâmica social
do nazismo. A redução da velocidade mostra, aqui, alguma verdade antes
ignorada: “o que parecia uma canção alegre é, afinal, uma canção fúnebre”. A
velocidade de exposição do mundo e a velocidade de observação do real tornam-se
conflituosas, apresentado um novo (e estranho) conceito que surge pela
consolidação destes dois tipos de aproximação: a Verdade como velocidade
certa da realidade, como velocidade intermédia entre o observador e o que é
observado.6
As tartarugas
conhecem melhor as estradas que os coelhos.7 Se as nossas decisões
ético-morais estão diretamente associadas a determinadas noções de verdade, a
certas verdades incontornáveis que necessariamente assumimos para definir o
rumo da nossa ação, então, torna-se impositivo relacionarmos a dinâmica
externa, a velocidade dos fenómenos com que lidamos e a nossa própria
velocidade de aproximação aos fenómenos que decorrem, com a capacidade de
reflexão moral. Diz-me a que velocidade andas, dir-te-ei qual a tua moral.
O progresso
técnico, a Modernidade, a tecnologia, as extensões mentais materializadas em
resoluções tecnológicas, o evitar da apatia e a consideração da lentidão como
atitudes contraproducentes, potenciais canalizadores de inação 8 estão a limitar
significativamente o espaço para a reflexão moral, a protocolar cada vez mais o
instinto e o imediatismo automático das nossas decisões, a tornar
a urgência da ação um fenómeno necessário à sustentável vivência social. É
neste ponto, que devíamos todos pegar no comando utilizado por Adam Sandler em Click 9
e transformar a existência contínua, as nossas vivências e ações
irrefletidas (mas não necessariamente imorais), num processo de reflexão em
slowmotion, notando na experiência lenta os pormenores que nos escapam pela
pressa, transformando a moralidade numa categoria reparada, tornando a
ação re-ação, uma ação duplamente repetida: a primeira - pensar a ação;
a segunda - realizar a ação pensada.10
Se somos o motor
do Mundo, e se é o Mundo que define, cada vez mais acentuadamente, a nossa
própria velocidade de existência, tornar-nos-emos, num futuro próximo, meras
vítimas da nossa própria velocidade? Atropelar-nos-emos paradoxalmente, como
vítimas de um mobilismo que peca pela irreflexão? Seremos nós apenas produtos
de uma Técnica que torna urgente a prática?
Resumida
sinteticamente, a minha proposta central é a de que a velocidade e o
imediatismo da realidade com a qual lidamos correntemente nos estão a conduzir,
progressivamente, à amoralidade (e não à imoralidade). Isto é, a
um fazer automatizado (não necessariamente imoral); somos meras
reduções concretas da ideologia prática que nos guia, do fio que conduz a
marioneta humana.
[Advertência
para o leitor mais ingénuo: tudo o que se escreve é erro em potência.]
1 Com origem no Manifesto
Futurista, de Marinetti [citação inicial], e nacionalmente representado, p.e.,
por Álvaro de Campos (ver Ode Triunfal)
2 Mundo,
como espaço social unificado, encontro centralizado onde todos os indivíduo são
coletivamente.
3 Restam opções contrastantes: ou assumimos
que a superestrutura social define as consciências individuais, ou
consideramos, ao invés, que por força da superestrutura social ser produtora
direta das consciências individuais, elas acabam sendo apenas produto delas
próprias.
4 Tavares, Gonçalo M. – “Pés e
Pensamento” – Atlas do Corpo e da Imaginação; p. 111
5 Menos moral, como tendência para a imoralidade.
6 Tavares, Gonçalo M. – “Velocidade da
Realidade, e Lentidão” – Atlas do Corpo e da Imaginação
7 Khalil Gibran
8 Porque é que, em religião alguma, se criou
um “Deus da Lentidão?”
9 2006
10 “Don’t
act. Just think.” – Slavoj Žižek – Big Think
Sem comentários:
Enviar um comentário