Belíssimo
novo romance de Inês Pedrosa, Desamparo, tão festivo quanto fúnebre, tão
cosmopolita quanto nacional, tão céptico quanto esperançoso, percorre toda a
gama de sentimentos humanos, da alegria esfuziante ao fracasso mais atroz, do
amor atormentado e obstinado à humilhação nos negócios.
Em
Desamparo, a história e as personagens entrecruzam-se de um modo inextrincável,
desconhecendo-se qual a mais importante, se a história, uma síntese dos tempos
recentes de Portugal, se as personagens, das mais sólidas e vibrantes que a
autora criou. A história decorre na aldeia de Arrifes, Vila de Lagar (lugar
inventado, claro) e possui personagens fortes, (i) como as três vizinhas
Jacinta, Alice e Rosário, as duas primeiras falecidas, Jacinta adoecida e levada
para o hospital no princípio do romance, desencadeando a acção deste, Alice no
final, “desamparada, isolada num baldio; (ii) como Raul e os seus dois irmãos,
Rafael e Rita; (iii) como Vanessa assassinada numa danceteria; (iv) como
Clarisse, antiga jornalista desempregada e animadora cultural em Arrifes, que,
pelo amor, redime a vida de Raul; (v) como o literato inconstante Pedro Gama
Lousada, belíssimo retrato de escritor e activista cultural decadentista
encontrado na vida boémia de Lisboa.
São personagens
fortes, isto é, cada uma dotada de uma personalidade vincada, totalmente
distinta das restantes, e com acção singular no seio da história narrada. As
restantes personagens (Joaquim, o dono da funerária Zorro, idosos do Centro de
Dia, Gaspar e Cátia, Carla Fontinha, habitantes de Arrifes, funcionários
camarários, Ema de Castro, o Grande Escritor ressuscitado e o Grande Arquitecto
premiado…) compõem, digamos assim, o pano de fundo ou o horizonte social donde
se destacam as personagens marcantes, sobretudo Raul.
Trata-se,
sem dúvida, da história simultaneamente feliz e infeliz de Jacinta de Sousa e
da vida derrotada mas redentora de seu filho Raul. E, com Jacinta e Raul, é,
ainda que raramente se descrevam episódios do poder político, da história de Portugal
que se trata, sobretudo dos anos mais recentes. Da tenacidade de Raul, que,
embora nascido no Brasil, vindo para Portugal para acompanhar a mãe, recusa
emigrar; do amor de Clarisse, que aceita emigrar um ano para Berkeley para
pagar a parte do Casal da Bela Vista que coubera em herança a Raul e aos seus
dois irmãos; da vida de Jacinta levada menina para o Brasil pelo pai Artur,
tipógrafo, casada com o galante Ramiro, que a trocou por mulher mais nova, e
regressada a Portugal para fazer companhia à mãe Margarida e viver até à morte
na casa de Arrifes.
Desde o seu
primeiro romance, A Instrução dos Amantes (1992), a paixão comanda a escrita de
Inês Pedrosa: paixão gizada em torno de um realismo social participante,
prestando testemunho do seu tempo; paixão alimentada pela observação atenta e
racional da realidade, na qual, porém, a emoção, o sentimento, a escrita na
primeira pessoa do singular comandam a estrutura aparentemente labiríntica das
suas narrativas; paixão igualmente na selecção das histórias de vida narradas e
no levantamento das personagens principais.
A
metodologia de escrita, ainda que emotivamente espontânea, parece residir num
conjunto concêntrico de abordagens, isto é, parte-se de um facto nuclear (morte
de Jacinta de Sousa; fracasso de vida de Raul, seu filho), ampliado posterior e
sucessivamente ao nível local e ao nível da vida do país (neste caso Portugal e
Brasil, já que Jacinta viveu e casou no Brasil e Raul nasceu neste país). Mais
do que tecido labirinticamente, Desamparo parece assim viver de sucessivos
círculos concêntricos, entre os quais, até às derradeiras páginas, o capítulo
seguinte concentra e supera os anteriores, arrastando e enlevando a mente do
leitor.
Desamparo,
título sintético mas muito sugestivo, reflecte o estado actual de Portugal, um
país simultaneamente amado pela sensibilidade das personagens, sobretudo
Jacinta, Raul e Clarisse, e odiado pela racionalidade analítica dos diversos
narradores. Um país “desamparado” por uma elite político-administrativa
tecnocrática, no qual mais contam as boas contas orçamentais do que a qualidade
de vida dos seus habitantes.
Com efeito,
os últimos capítulos de Desamparo fazem lembrar o final do último romance
publicado em vida de Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires, no qual,
através da personagem principal, Gonçalo Mendes Ramires, regressado de
Moçambique, se tematiza a essência da identidade histórica e antropológica de
Portugal, concluindo-se que Portugal é um país que simultânea e paradoxalmente “desampara”
e redime os seus habitantes, tanto provocando neles um estado de abandono e
abatimento quanto, em outros momentos, os estimula à e lhes concede a salvação.
Um dos
melhores romances da já vasta obra de Inês Pedrosa.
Desamparo,
D. Quixote,
315 pp,, 15,90 euros
Excelente livro.
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