segunda-feira, 10 de junho de 2013

O eco da minha morte- uma história de Gonçalo Nuno Neves


GONÇALO NUNO NEVES

Chovia, de facto, mas não era água. Não era água nem nenhum outro líquido. Chovia ar e, com ele, um vento húmido carregado de respostas para a montanha que reclamava impaciência pela seca. 
No cume, um trémulo palácio cinzento esboçava-se belo ao adquirir uma invisibilidade efémera proporcionada pelas nuvens que rondavam literalmente o empreendimento de ordem invulgar que se fez construir justamente naquela montanha.
Todas as luas novas verificavam esse facto. Nas noites mais escuras de toda uma vida haveria de ser assim: invisível pela obscuridade unicolor. O palácio... esse, nessas noites em particular, elevava-se então por entre os aglomerados de gases, de águas que não caíam logo de uma vez e acabavam com o sofrimento. Afogar-se-ia tudo! Mas, no entanto, morrer-se-ia pela falta de ar. Morre-se pela falta de um dos elementos primordiais de tudo o que se julga existir.
Não era pela falta de água que tanto necessitava a montanha! Dela precisava para decrescer ou crescer. Em demasia, derrocar-se-ia, distribuindo a sua massa; em quantidades racionadas, sobrepôr-se-ia a tudo, demonstrando uma total imponência de superioridade e, ao mesmo tempo, de grandiosidade.
Mas não! Continuava a ser pela ausência do real elíxir da vida terrestre: o ar.
E a água não vinha. Ameaças constantes construiam esperanças marcadas pela angústia de querer respirar, mas o obstáculo gasoso sufocava-nos a todos: à montanha, ao palácio, a mim e à minha única linguagem de expressão, baseada no som e na junção das suas partes.
Pelo fogo não era, porque não havia nada que se queimasse.
O cenário reduzia-se a uma montanha de terra com alguns blocos de pedra por ela espalhados. No ponto alto edificava-se o dito palácio e, dentro dele, eu e o meu instrumento que me fazia falar, porque não abria a boca. Recusara-me a evocar sons oriundos da minha boca desde o momento em que me apercebi da sua inutilidade nesta realidade do nada.
Portanto, nada para queimar. Também não se podia ficar soterrado, porque era uma terra compacta e seca, desejosa de líquidos para ruir.
Pela falta de ar...
Disse nas luas novas, mas porque era sempre Lua Nova todas as noites; e era sempre noite todos os dias. Mas, ainda assim, nessas noites em particular, sentava-me no único banco do palácio em frente ao Grande Orgão, com o qual tentava exprimir todas as minhas emoções para o abstracto. Sim, disse bem, para o abstracto, porque não conhecia mais nada para além das manchas cinzentas que me rodeavam. O próprio palácio limitava a minha visão – que, só por si, já era razoável.
Mas tocava, falava, emocionava-me, quando fazia isso mesmo: tocar, falar e emocionar-me. Tudo isto parecia em vão, mas, lá de vez em vez, concluia que era para mim e por mim que o fazia. Mas não só... Eu queria mais alguém, porque, pura e simplesmente, amava alguém. Esse alguém abandonou um mundo (o meu) que nem chegou a contemplá-lo. Deixei de saber quem ou o que é que amava, porque voltei a ficar só neste meu mundo.
O Grande Orgão era praticamente todo o interior do palácio, dando-lhe, portanto, a forma imponente e fantástica de um orgão gigante.
Cada vez que me sentava naquele banco meticulosamente esculpido sob forma inclorofilada, fazendo-se passar por aquilo a que chamam cogumelo, que não é mais do que o aparelho reprodutor dos fungos, o carpóforo, com o propósito de tocar meditativamente com base na improvisação, sentia em mim um instante de liberdade. Tinha em minha posse um instante infinito de uma plenitude extremamente bela, mas, uma vez mais, efémera. Um instante infinito num intervalo de tempo sem noção: nem de tempo nem de intervalo, quanto mais de instante!
Muitas vezes tocava até deixar de sentir as mãos, o corpo, a mente ou o conjunto deles todos ao mesmo tempo. Só nunca tinha conseguido tocar o Grande Orgão até deixar de ouvir as minhas notas lançadas ao eterno abstracto. Nunca tinha conseguido até que numa dessas noites isso aconteceu. E, ao deixar de ter percepção das minhas, passei a escutar outras praticamente semelhantes, como que sombras do som. Seria o eco?! Não acreditei que fosse. Não naquela altura, porque era tudo tão abafado que o próprio som se sentia embaciado. Além de que as notas que passava a escutar, enquanto tocava sem ouvir as minhas, eram mais redondas e prolongadas, e num intervalo musical inferior em pelo menos três tons em relação às que do Grande Orgão se libertavam através dos cilíndros depois de ter pressionado as teclas da razão emotiva que me propunha a realizar cada vez com mais força. Queria levar ao exagero o meu virtuosismo esporádico de sentimentos. Depois de ter ouvido algo tão idêntico ao que não ouvia enquanto tocava, ou melhor, não ouvia o que tocava, principalmente numa trajectória invulgar, visto que o som não trespassava a barreira que as nuvens proporcionavam – não sei porquê, mas era assim -, decidi nunca mais parar e extremizar a emoção que em mim se alojava. E foi a minha personalidade que, temperada pelo meu carácter obscuro, caracterizada por temperamento racional, exaltou o maior dos deslumbramentos: o desmoronamento dos gases que se afirmavam superiores ao firmamento, tendo em vista que esse era o meu horizonte: nuvens carregadas de ar húmido que ameaçavam esperanças.
Cheguei a direccionar os dedos às teclas da extremidade do bendito instrumento; tanto da direita como da esquerda: ambas eram imperceptíveis do ponto de vista lógico da realidade humana.
Desesperadamente tocava de coração apertado. Concentrava todas as forças num acto majestoso. “Uno” seria o termo correcto para reduzir numa premissa a intenção sublime da minha individualidade com o Todo.
Apercebia-me de que o som que me era exterior penetrava por algumas brechas que as nuvens haviam começado por abrir ao meu som. Isso implicou que chovesse. E as nuvens malditas foram-se evaporando, deixando fecundar a terra da montanha pelo H2O dos homens.
Imediatamente depois da primeira gota, à qual uma quantidade inumerável doutras se seguiram, do solo diagonal de 45º germinavam ervas, arbustos, árvores e, colados nas rochas, musgo. De volta das árvores, pequenos poros de fungos que se iriam formar logo de seguida em flores da obscuridade. Realmente parecia incrível existirem tortulhos sem luz! Mas, entretanto, ao mesmo tempo que da terra da montanha brotava o Ser Vegetal em série e em massa, do céu que finalmente se começava a ver reluziam luzes cada vez mais fortes. Mas isso o problema era meu, porque essas luzes eram estrelas e uma delas iniciava o seu devir num cone de terra lamacento, enquanto os meus olhos tardavam a abrir. O esforço era doloroso e era a primeira vez que tinha claridade desde a minha existência. Não era cego... eu via no escuro, e neste escuro... aliás, naquele escuro nada se via; um escuro cinzento que conjugava toda a matéria numa mistura invisível de preto e branco.
Mesmo assim tocava, e chorava por duas razões: pela luz ofuscante de uma esfera luminosa e pela emoção intrépida do que se passava.
Mais tarde, quando tudo parecia já uma selva, lembrei-me de parar com a minha súbita explosão frenética de sons e subir ao ponto mais alto do palácio que evocava notas.
Assim que retirei as mãos das teclas ouvi uma última pronúncia de notas semelhantes ao que eu tocara.
Detive-me alguns instantes no cimo e ganhei uma nova substância que se libertava do meu corpo: suor. Dei meia volta e vi exactamente a mesma montanha com um palácio da mesma forma. Estava mais longe do que se possa imaginar, mas para mim aconchegava-se cada vez mais, por me parecer, talvez, familiar.
Mas não via ninguém, só certas notas musicais mais prolongadas que os meus ouvidos iam captando. E com isto, os meus pés queixavam-se, porque a terra escaldava, o calor intensificava-se.
Inalava e cheirava-me a queimado. Olhava à volta e reparava em sinais de fumo. Seriam novamente os gases abafados e cinzentos alterados apenas por temperatura? Libertei-os para me eliminarem?!
Olhei uma vez mais a outra montanha com o seu palácio e vi sair de dentro, no ponto alto, um indivíduo igual a mim, tal como eu tinha feito, tendo os mesmos gestos e olhando o que eu olhei até que deu meia volta e viu-me a começar quase a arder.
Pobre infeliz que observava o seu futuro.
Tinha descoberto quem amava e não cheguei a morrer queimado, porque derreti.

  
Isto foi o que eu vi quando me aconteceu o mesmo...



Gonçalo Nuno Saraiva Alves das Neves, natural da Área Protegida Sintra-Cascais, conta já 36 voltas ao Sol na viagem pelo tempo. Tem licença para Antropologia e especializações em Informações e Segurança e em Estratégia. Ensina Geografia (Espaço), História (Tempo), Filosofia (Causa) e Português. Tem várias paixões: amador e sempre estudante de Xadrez, um observador do Reino dos Fungos, observador e fotógrafo, analista fenomenológico e músico. Exterioriza emoções no virtuosismo da sua Flauta Transversal e na racionalidade da sua Guitarra Clássica. Sem réguas, esquadros ou compassos, desenha o que a mão lhe deixar. É escritor por inspiração e iniciou a escrita no secundário e encontrou o amor pela escrita, dedicando-se ao Surrealismo Épico. Tendo escrito três livros, dos quais um editado, intitulado “A Aventura Simbólica, Vol. I”. Fora isto e tudo o resto, gosta de explorar florestas e penedos e faz colecção de botões.

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