terça-feira, 15 de outubro de 2013

O Tronco do Plátano- um conto original de Filomena Marona Beja

FILOMENA MARONA BEJA

Profissional da área da documentação técnico-científica , Filomena Marona Beja estreou-se no romance com As Cidadãs (1998), livro que transporta o/a leitor/a para a Lisboa do início do século XX e cuja reedição, em 2009, coincidiu com as comemorações do centenário da implantação da República.

A autora publicou também Betânia (2000), A Sopa (2004) — com o qual ganhou o Grande Prémio de Literatura DST em 2006—, A Duração dos Crepúsculos (2006), A Cova do Lagarto (2007) — galardoado com o Grande Prémio de Romance e Novela APL — e Bute Daí Zé (2010).
Em 2011, Filomena Marona Beja editou o seu primeiro livro de contos, Histórias Vindas a Conto e este ano O Eléctrico 16. Para o Sintra Deambulada escreveu o conto que ora publicamos.




Ainda não era dia.

    Ela meio acordada, meio a dormir.

    E já lhe batia na lembrança a conversa da véspera, vinda do quarto dos tios:

    “A Ana Vanessa telefonou”. “Telefonou?! Há novidade?”. “Lá anda... Combinou com o marido virem cá, em Dezembro”. “Pelo Natal?...”. “Não disse”.

    Ouvira?

    Ou sonhara, em vez de ouvir?



    Agora, era o portão a abrir. Os gonzos acusando ferrugem. E o tio a chamar:

    - Carril! Anda cá... toma, Carril, toma.

    O cão.

    Depois, o arrastar das bilhas. Estava na hora de ir ao encontro do camião da Lacto-Cooperativa.

    A motorizada arrancou à segunda tentativa. Foi-se afastando. Consigo as indecisões do motor, o protesto do escape.



    Ao tio e à tia, parecera uma boa ideia comprar aquela motorizada.

    “Nem que seja para desenrascar uma saca de batatas a algum freguês que telefone para aí.”

    “Para se chegar à Vila, quando as carreiras estão em greve...”

    “...ir tratar de alguma coisa que apareça à última da hora.”

    “Para a rapariga não faltar ao liceu...”

    “...não chegar atrasada.”



    O casal onde moravam ficava numa baixa. Olhando à volta, só se via a serra.

    - Mas diga-se a verdade: a Vila fica perto.

    Ela punha-se lá em menos de um quarto de hora. Indo a pé, pela beira da estrada. Rente aos troncos dos plátanos, olhando uma e outra vez para as copas. O rebentar do verde. A sombra. O cair das folhas.

    Mas dissesse-se também que, naquela época, toda a gente comprava motorizadas. E não só os da Várzea. Também os de Cabriz, Nafarros, Carrascal e de outros sítios.

    Se uns compravam, porque haveriam os mais de ficar em branco?

    Era um pequeno sinal a elevá-los da míngua. Talvez do atraso.



    Já ninguém queria burros.

    Comiam a toda a hora. Mesmo que só de vez em quando carregassem com umas abóboras para o mercado da Estefânia.

    “E depois, a gente não vai pôr a rapariga a caminho do liceu em cima de um burro!”

    Nem seria assim que ela ganharia tempo, se já fosse atrasada.

    “Continue a estudar, a aproveitar...”

    E talvez a mandassem tirar a carta.

    “ Compra-se uma furgonete para as nossas voltas...”

    Sim, uma 4L.

    “...e sempre que ela vir atrapalhada, para apanhar a primeira aula, pode levá-la.”

    Mas ainda faltava idade à sobrinha para poder ter carta.

    E as furgonetes não eram para todos.



    - Não era eu a rapariga que os meus tios não queriam que faltasse à escola. Era...

    A Ana Vanessa.

    -...a minha mãe.



    A mãe também crescera ali no casal da Várzea, com os tios.

    Razões?

    Ninguém as evocava. Aludia-se, quando muito, a voltas do destino que a teriam deixado ao desamparo.

    - Se nós lhe tivéssemos faltado...

    Mas tal não acontecera.

    - Cá a criámos.

    - À nossa maneira, já se vê!

    Fora para a escola, depois para o liceu. Pusera-se bonita. Namoradeira. “Aí, o meu pai entrou em cena.”

    - Foi um dos nossos desgostos... – lembrava a tia.

    Outros?

    O que lá ia, lá ia. Mas ficara-lhes uma mágoa:

    - Ela estar lá para longe...

    -...e não aqui, com a gente.

    Arranjara trabalho nos navios de uma empresa com sede em Bremenhaven.

    - Foi para a Alemanha, era eu muito pequena.

   

    O cheiro do café. Da mistura de cevada e chicória a fazer de café.

    A tia a cirandar na cozinha. A migar pão para uma tigela, a ir buscar o açúcar. E o relógio da casa de jantar a bater sete horas.

    O Carril ladrava, lá fora.



    As torneiras da casa de banho.

    O vestir, o calçar. “Levo botas? Não levo?.. Parece que não vai chover.”

    - Vê se não molhas os pés, se não te constipas – recomendava a tia.

    Recomendaria todas as manhãs. Até ao último dia de aulas.

    Uma fatia de pão, outra de marmelada. Havia também doce de tomate.

    - E mais leite?... não queres?

    - Não tia, obrigada.



    O barulho da motorizada e os gonzos do portão noticiaram que o tio estava de volta.

    A tigela com as sopas já em cima da mesa. À espera.

    - Senta-te e come – disse a tia.

    Ele sentou-se, bocejou, afirmou que não tinha fome. E começou a comer.

    Lá dentro, na casa de jantar, o relógio tornou a bater horas.

    O casaco. A mochila.

    - Até logo...

    - Não te atrases.



    A berma da estrada.

    Carros de faróis acesos vindos da bruma, que havia para o lado do mar. Rapazes de bicicleta.

    Nem sinal da camioneta. Era capaz de ainda estar para lá do Rodízio. Ou já viria à curva do Vinagre?

    Encostou-se ao tronco do plátano. Esperaria.



    O eléctrico também por ali passava. Mas só de Verão.

    Olhou as folhas secas amontoadas sobre os carris. Lembrou-se do cão.

    Fora naquele sítio que o encontrara, fazia um ano. Cachorro abandonado.

    E desorientado, pelo farejar. Pelo ir e vir, acabando sempre de encontro à árvore a que ela se encostava.

    - Se fosse meu...

    Como lhe haveria de chamar?

    - Carril!...

    Ele aproximara-se. Consentiu que lhe pegasse, que voltasse com ele para o casal.

    - Deixem-no ficar connosco...

    O Brilhante estava tão velho que já nem ladrava.

    -...e este é tão querido!

    Ficou. Tornou-se num belo cão, e num bom guarda. Raça?

    - Bem...

    Talvez labrador.

    - Talvez. Mas muito amulatado de rafeiro.



    “Amulatado”. Ficou ressentida com a tia por ela ter dito aquilo.

   

    A camioneta sem aparecer.

    Ia ter teste de inglês, e gorava-se-lhe a intenção de chegar antes da hora.

    A professora era nova na escola. Só a conhecera no recomeço das aulas. “Chamo-me Fátima Lima e sou a vossa professora”, apresentara-se.

    Não queria que lhe chamassem “Sotôra”. “Miss”, ou “Miss Fátima” estava bem.

    Gostara logo dela.



    E para os alunos dos últimos anos da escola, Miss Fátima era a Fraulein Lima. Professora de alemão.

    Assim, no fim de uma aula, tomou coragem e apresentou-lhe uma folha em que estava escrito:

Der Vater

Die Eltern

Der Elternlieb.



    Copiara de um dicionário e queria saber com se pronunciava.

    - Tens os teus pais na Alemanha?  

    - A minha mãe... e ela casou-se com um alemão.



    Ana Vanessa e Horst.

    Ela hospedeira a bordo do Glückschiff. Ele de meia idade, e um lugar de chefia na companhia proprietária do navio.

    O casamento fora em Maio.



    - Vêm cá, em Dezembro, para me visitar.

     

    Chegariam nas vésperas do Natal. Talvez viessem de automóvel, talvez de avião. Trariam duas, três malas, cheias de agasalhos e de presentes.

    “Sabia que era isto que tu querias!”, diria a mãe. Embrulho a embrulho, quando ela os abrisse.

    E Horst: “Gostaste?... A sério?! Anda cá dar-me um beijo”.





    Ficariam uns dias.

    Ana Vanessa tornaria aos plátanos da estrada. Indicaria ao marido o tronco a que se encostava, “...enquanto não vinha a carreira para o liceu”.

    “Eu também me encosto aí a esse tronco, quando estou à espera da camioneta”, revelaria ela.

    E Horst, com um grande sorriso: “Não me digas!”

    Passeariam os três pela serra. Iriam até ao mar.

    Seria assim. “Não faria sentido não ser”.



    Ajudaria a tia a limpar a casa. Dar brilho aos vidros, pôr cera no chão.

    Ela própria engalanaria sala, quartos, cozinha. Começaria mesmo por uma tabuleta, do lado de fora do portão:

FELIZ NATAL

EIN  GLÜCKLICH  WEIHNACHTS



    Armaria o pinheiro na casa de jantar. E tão bem o enfeitaria que Horst haveria de perguntar: “Quem cuidou deste abeto?”

    Por isso, queria chegar cedo à escola e perguntar a Miss Fátima como se pronunciava:

Der Tannebaum.

    Vinha lá uma camioneta.

    “Será desta? Não há um dia que cumpra o horário!”



    - Vem aí a Ana! – anunciou o tio.

    - A Ana!... – repetiu a tia.

    O Carril às voltas pelo pátio, dando ao rabo.





    O Natal, porém, fora uns dias antes.

    Passado com os tios. Não faltando os fritos de abóbora nem uma perna de peru assada no forno.

    De presente, recebera um gorro em lã.



    Agora, a mãe abraçava o tio. A tia.

    Horst empurrava uma mala de rodas, e apertava as mãos.

    Faziam um cruzeiro. Ana Vanessa com estatuto de convidada. Não de hospedeira.

    O navio tocara Lisboa. Os passageiros desembarcaram para conhecer a cidade.

    - E nós viemos desejar-vos um bom Ano Novo... e deixar umas lembranças.



    Não ficavam para o dia seguinte? Não almoçavam?

    - Ai!... desta vez não.

    O navio zarpava, à noite, para o Funchal.

    - E o Horst ainda quer ir, esta tarde, ao Cabo da Roca...

    Levantar o diploma de lá ter estado: Na ponta mais ocidental da Europa.



    - E tu!...

    Chegara a sua vez.

    Os beijos de Ana Vanessa. O que queria saber e o que já soubera ao telefone. Ao computador.

    - Bravo pelas notas que conseguiste, neste período!...

    Horst aproximou-se. Olhou-a sem lhe tocar. Voltou a cabeça e pronunciou uma frase de que ela só entendeu: ”Vater”.

    Encaminhou-se para o táxi que ficara ao portão.



    Ela no mesmo sítio. O Carril roçando-lhe as pernas.



    As despedidas.

    Acenos. Mais beijos da mãe, e a pergunta da tia:

    - O que é que o teu marido disse da miúda?

    - Que... que herdou a cor e a carapinha do pai. Julgava que ela não era tão afro.



    Os primeiros dias de Janeiro.

    Faróis de carros a caminho da Vila. Ela encostada ao tronco do plátano.

    Esperava a camioneta que vinha atrasada.

    Já era assim, no tempo de liceu de Ana Vanessa.







Sintra / Outubro, 2013.


Sem comentários:

Enviar um comentário