Quem leu a obra literária de Francisco Costa (1900-1988)
ficou certamente com a ideia de estar perante um autor de profundas convicções
religiosas. O epíteto por que ficou conhecido, “romancista católico”, parece não pôr em causa essa tese. No
entanto, conforme o próprio expressou no “Esboço
de Autobiografia Literária”, dado à estampa em 1978 e depois incluído em Última Colheita (1987), a procura de
Cristo, que iniciara na década de 1920 na leitura do celebrado livro de Ernest
Renan, Vie de Jésus (1863),
manteve-se insaciável ao longo da sua vida.
Para traçar o percurso dessa “conversão” socorrer-me-ei do citado “Esboço de Autobiografia Literária”, bem como de um texto lido por
Francisco Costa numa sessão de homenagem aos padres Carlos e Amaro Teixeira de
Azevedo, corria o ano de 1950; recorrerei, ainda, à poesia que escreveu na
década de 1920.
Recuemos aos tempos da I República. Francisco Costa é
adolescente. A posteriori, isto é, em
1950,retrata em tom crítico a ambiência e as alterações sentidas na vila de
Sintra no período imediatamente subsequente à implantação da República.
Ouçamos, então, a sua perspetiva dos acontecimentos, à qual não é estranha a
posição de monárquico assumido:
Uma parte da população,
fascinada pelos comícios onde se prometia, convictamente, o bacalhau quase de
graça e o pão ainda mais barato, descobriu de repente que era republicana,
desfraldou a bandeira verde-rubro, começou a insultar a memória das majestades
a quem oferecera flores nas boas-vindas anuais, e aplicou-se a escarnecer dos
padres e dos fiéis, quando estes passavam furtivamente a caminho das igrejas.
(Espólio Francisco Costa, Sessão de homenagem aos reverendos padres Carlos e
Amaro Teixeira de Azevedo, 23 de julho de 1950)
Aos domingos, essa
hostilidade crescia de tom, pois nesses dias, em frente do Paço Real, agora
convertido em museu de raridades, os ociosos trocistas juntavam-se aos
fanáticos da política, para zombar e maldizer dos fiéis que se atreviam a
atravessar as praças em direção às igrejas de S. Martinho ou da Misericórdia.
(Idem)
À época, o pai de Francisco Costa, José Bento Costa,
frequentava a igreja da Misericórdia, justamente aos domingos. Pelo filho se
fazia acompanhar, pelo menos até este completar treze anos de idade, pois aos
catorze, conforme refere o romancista:
Já eu me desprendera da
mão dele e pulara o mais atrevido ateísmo, escandalizando a família com esta
descoberta estupenda: demonstrado, como estava, graças a Darwin… que todos os seres
vivos descendiam da amiba, protozoário microscópio existente no fundo do
Pacífico, estava demonstrado a inexistência de Deus e, portanto, o disparate de
todos os credos religiosos.
Meu pai, muito sereno,
perguntou-me nesse dia memorável:
- E quem fez essa tal
amiba?
- É simples, respondi
cheio de importância. A matéria existe desde sempre, e um dia, por um feliz
concurso de circunstâncias, produziu a célula viva. E dessa veio tudo o mais.
- Inclusive as tolices
que o menino diz… - rematou o meu pai, sempre sereno. (Idem)
No “Esboço de
Autobiografia Literária”, Francisco Costa recorda peripécias desses tempos,
intitulando-se “adolescente e ateu”.
Para essa condição terá concorrido, mais do que a atmosfera de “desenraizamento” religioso vivida na I
República, à qual aludi muito tangencialmente, algum conhecimento dos trabalhos
de Darwin, Haeckel e Moleschott. Importa, por outro lado, não esquecer a
natural descoberta e vivência da juventude, numa altura em que os rapazes “abriam os olhos para a vida”, para
adotar a expressão do escritor. Nessa fase, parece marcante a intenção de fruir
despreocupadamente os dias:
Dos dezasseis para os
dezoito anos, esta sabedoria petulante [a da inexistência de Deus] e as
primícias literárias recitadas com entono distinguiam-me entre a mocidade
afidalgada que se juntava na Vila Velha, para o bilhar e o jogo de cartas, e
também para as fugas varonis até às vielas do fado, que nós alternávamos com
serenatas muito castas, sob o luar ou neblina de Sintra, em louvor das
raparigas bonitas.
(“Esboço de Autobiografia Literária”, in
Última Colheita)
Todavia, algo iria mudar a breve trecho. De facto, a súbita e
inesperada doença, corria o ano de 1918, alteraria por completo o curso de vida
do poeta. Fechado num quarto (“clausura”),
tendo outro para guardar os livros que o pai lhe ia oferecendo, Francisco Costa
inicia o seu encontro com Jesus (“conversão”).
Porém, no conjunto de sonetos que publicou em 1920, intitulado Pó, é ainda notório um sentimento de “angústia descrente”.
Eu gosto destes dias
tristes, pardos,
em que, inundado de um
prazer agudo,
eu descreio de mim, dos
mais, de tudo,
e em mim próprio,
impiedoso, cravo dardos. (“Auto dissecação”, in Pó)
Em 1925, Francisco
Costa é declarado clinicamente curado. Nesse mesmo ano recebe a primeira
comunhão. Sintomaticamente, no prefácio a Verbo
Austero (1925), Fidelino de Figueiredo sublinha que, “rumando para a fé religiosa, Francisco Costa logrou drenar e aquietar
essas dolorosas interrogações”. O próximo trecho de Verbo Austero, com o
qual, de resto, encerro, devolve-nos o contexto que presidiu à “conversão” do poeta:
Preso o meu corpo no
teu férreo braço [doença],
Ergui-me pelo espírito
no espaço,