terça-feira, 16 de julho de 2013

Eu, Afonso VI, prisioneiro de Sintra


FERNANDO MORAIS GOMES


“Chove lá fora. Maldita serra, toda a noite tossi, gotejou no meu cómodo. Tal o fim dum Bragança, enjaulado numa enxerga insalubre, e tolhido de toda a acção. Pedro levou de vencida, o infame, néscio e aleivoso, por certo se diverte agora com Maria Francisca, a rameira, que com seu esposo e rei nunca fornicou, e donzela não casou.

Louriçal trouxe uma tisana. Detesto estas tisanas, querem-me prostrado e febril, neste esconso húmido. Os Açores aumentaram-me as febres, os pulmões, purulentos quebram-me o ânimo. Abomino estas paredes, deixam-me doido, doido! Ontem a carne tinha um sabor estranho, veneno por certo, torcem pela minha perdição. Sou um estorvo para o biltre que se senta no trono. Ah! como me fazem falta Joana e Catarina! Pobre Catarina, tão só em Inglaterra, com Charles, rei tão desprovido de carácter e nobreza, nenhuma alcova em Londres lhe deve escapar, só a de Catarina queda fria e triste.

A mãe nunca me entendeu! Piedosa senhora, sempre chorosa por Teodósio e Joana. Nunca me escutou os prantos, quando a febre me tolheu o corpo e fiquei só, tremendo e à mercê de todos, Pedro, só ele, nas graças do Paço e dos validos, a sombra de Pedro, sempre. Ontem ouvi um guarda dizer que esteve aí, caçando na serra.

Estou à beira dos quarenta, incham-me os olhos,e desespero pelo dia em que serei presente ao Altíssimo, rei sem reino, marido sem mulher. Vivo entre sombras, escuras, como as ladeiras de Sintra. Como fiquei tolhido o dia em que fui aclamado, e Sousa Macedo desdenhou de mim, e exaltou meu pai, só para me humilhar! E Francisco de Faro, bajulador sinuoso, captando os favores da mãe, e intrigando com Cantanhede. Onde estarão agora, os dois?

Em cárcere quase toda a vida vivi, todos me tolheram o andar, ainda infante, quando da janela  via os filhos dos criados divertindo-se no Paço, e sem dó me impeliam para a gramática e o altar. Mateus, o filho do cocheiro, que saudade das furtivas correrias em Alfama, atirando pedras aos almocreves. Sempre o desejei! Como era viril o seu sexo, e o meu avaro em tamanho, quis Deus a mim deixar inacabado. E António. Meu bom António, o único amigo que tive, onde estará agora? Desespero pelo seu cabelo louro, seus ombros fortes, o calor do seu corpo cheirando a estábulo, ah! Conti, o dotado príncipe dos bordéis. Até ele me tiraram do Paço. Recordará ainda a Maria Parda, da Rua do Tijolo, em cujos peitos se ia asfixiando, de grandes que eram? Ou a sova que mandei dar num juiz dos órfãos, por me não ter reconhecido certa noite, em Alcântara? Pudesse voltar atrás e a meus amigos sem estirpe teria feito condes, e às mulheres da vida, marquesas, que as outras o não são menos, e mais feias.

Apontaram-me despropósitos, porém mais debochado não é o usurpador que captura o trono e esposa de seu irmão, e corrompe os físicos para que lhe apontem maleitas no corpo, mentindo sobre o seu poder de procriar? Acaso as mulheres de mim estivessem longe, Beatriz de Moura se teria sangrado a si própria, quando sofri de aleijão, para que só me não sentisse, sendo eu o sangrado? E Filomena de Milão, as mais belas e sabedoras mãos que em homem tocaram, paraíso carnal a que nem frei Agostinho resistiu, quando ajoelhada lhe suplicou a bênção?

Ouvi a um guarda que o conde de Odemira foi nomeado para o Desembargo do Paço. Desonrado seja, e amaldiçoados os seus, intrigando junto de minha mãe, sugerindo açoites, e para que de mim apartassem o meu estimado António. Jerónimo de Ataíde perguntou por mim, disse-me o chefe da guarda. Meu bom amigo, como sinto a sua falta. A semana transacta contei as voltas que dei neste quarto infernal. Noventa e seis. Comecei a contar as formigas em carreiro, subindo às chaminés do Paço. Como gostaria de ser uma delas, trepando, e escapulindo para a serra, apedrejando as beatas à porta da missa, e roubando fruta como vulgar camponês. Rei do cárcere, eis o que sou, exilado em meu próprio Reino. Antes a morte!

A mãe nunca me perdoou tê-la afastado da regência. Não mais a vi, recolhida aos Agostinhos Descalços. Morreu com rancor. Rancor! A bondosa Luísa de Gusmão não podia ter cedido ao rancor, é impróprio de rainha, forte com os fracos e fraca com os fortes. Partiu já. Partiram todos, e eu mais só, morto, mas insepulto.

Acaba de passar um rato. Acho que o vou fazer conde, rei que sou deste quarto, sala do trono do meu mando. Ontem nomeei marquesa uma barata. Marquesa de Sintra. Soa bem. Jurou-me fidelidade. Os esbirros de Pedro vão ficar possessos, o vitorioso de Elvas e Montes Claros respira ainda, acicatado pela raiva. Por pouco tempo, temo, que os males da alma quebrantam o corpo. Corvos negros pousaram ontem no beirado, mau presságio.

A tinta está a acabar, ardem-me os olhos. Nos Açores podia caminhar à beira mar. Tempo de mais uma volta, noventa e sete. Os homens de Cadaval patrulham, há nove anos que assim é, oiço-lhes as botas servis e os grunhidos boçais.

Hoje cuspi sangue. O físico sangrou-me, mas sinto que o meu corpo se fina. Seja. Noventa e sete vezes amaldiçoados,  Pedro e Maria Francisca, vassalos de Belzebu. Aos vis, até  o perdão e a justiça parecem vis. Os títeres apenas gostam de si próprios.

Arrefece. O rato tornou a passar. Sorriu-me, o novo conde. Fiz-lhe uma vénia, magnânimo, agradeceu, dei-lhe a mercê dum naco de pão. Um rei deve zelar pelo bem dos seus súbditos!

Sintra, aos 7 de Abril do Ano da Graça de 1683.
Afonso, Portugal Rex”

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