quarta-feira, 20 de maio de 2015

O conto da Adraga


BÁRBARA JORDÃO RODHNER

Dizem que a vida é feita de desejos.

Quantos deles recalcamos porque nos ensinaram que a maioria dos desejos estão errados?

Conheci uma mulher que ardia loucamente dentro de si. Contou-me uma história de olhos fechados. Em pleno Inverno falou-me do Verão. Ouvi-a sem preconceito.

- Estou queimada do sol. Tenho fogo debaixo da pele... Quero alguém humano. Fenomenalmente humano...

- Compreendo-te. – respondi.

Ficamos caladas a ouvir o grito das gaivotas. O sol pôs-se, o frio apertou.

- Gosto de marinheiros e pescadores. Com a pele enrugada do sal.

- Eu também...

- Às vezes faz falta falar menos.

- Encontrar bocas quentes...

- Isso.

- Comunicar mais.

- Queria deitar-me numa praia deserta...

- Ouvir música e tirar a roupa.

- Ser engolida pela areia branca...

- Ser beijada com intensidade contra o chão. Não abrir mais os olhos...

- Ser guiada por uma mão.

- Apetece-me um mundo mais livre.

- Terminar o que nunca começamos porque somos cobardes...

- Isso...

- Exorcizar o fantasma da mente.

- Precisava tanto...

- Trocar cadernos de poesia.

- Apaixonar-me por um só dia.

- Criar um mundo novo.

- Composições soltas baseadas somente no amor.

- Achas que alguma dessas coisas poderia correr mal?

- Não sei.

- Não aguento mais viver num mundo de castração muda e aguda.

- É dolorosa sim.

- A verdade liberta-nos.

- Mas matou vários profetas.

- Sim.

- Escuta. Conheci um homem.

- E?

- E esse homem é um Homem sem igual.

- Conta.

- Não eras tu que me ias contar uma história?

- Essa é a minha história. Quero conta-la através de ti.

Fechei os olhos e inspirei profundamente o vento que nos unia.

- Isso. O vento conhece todas as histórias... Conta-me a minha.

Ganhei coragem e continuei.

- Esse homem beijou-me os olhos e disse-me de mansinho “Ficas com a minha promessa.”

- Que era qual?

- De enfrentar a sua condenação.

- ?

- Amar-te.

- A mim?!

- Não tonta. A mim...

Ela sorriu.

Eu continuei.

- Não podemos desviar os ciclos da vida. São como os riachos de água viva.

- E as condutas? O que é que acontece às condutas?

- São ilusões.

- Ilusões... gosto disso.

- Sim.

- Agora sou eu a condenada. – continuou a minha história - Tenho a voz dele presa no meu corpo. O meu nome ecoa em corredores mentais...

- Pois... o amor é perigoso.

- Mas viver sem amar é muito mais.

- Será que um dia tem tempo para tudo?

- Não sei mas sei que um dia pode mudar uma vida...

- E quem disse que um dia não é uma vida?

- Foi o que ele te disse?

- Sim.

Ela sorriu e o céu abriu-se.

- Quando penso nele cheiro a rosas e a terra molhada.

- É natural que ele goste de ti...

- Transformo-me num mar de sentimentos indescritíveis que saem por mim fora para amaciar tudo por onde passam.

- O amor é lindo...

- É.

- A respiração dele torna-se intensa quando ele experimenta a minha pele.

Ficamos as duas incomodadas.

- Tens medo de amar? – Perguntou-me.

- Não sei. Não tenho por hábito pensar muito no amor...

- És como eu.

- Acho que ele ou acontece, ou não acontece...

- Eu gosto mais de imaginar o amor.

- Alimenta-lo.

- Idealiza-lo.

- Isso também é amor.

- Não sei...

- Descreve as idealizações.

- Imagino uma rede numa varanda com vista para a serra.

- O que é que está no céu?

- Sobre as cabeças? Estrelas...

Ela sorriu.

- Conta.

- Imagino dois corpos que se ameaçam. Um contra o outro.

- Ameaçam?

- Sim. A mão entre as coxas. Ela geme até ter de ceder...

- Gosto disso. E o que é que ele lhe diz?

- Nada. Ela fala muito mais que ele.

- Ele é assertivo.

- Sim...

- A mulher é pequena mas forte. Guarda-se todas as noites. Como um lobo.

- Uma loba?

- Isso. Sabes que os lobos só têm um parceiro na vida.

- A sério?

- Sim. Uma vez tocados ficam para sempre enfeitiçados e fieis.

- Conta-me mais sobre isso.

- Ela imaginou-o desde que nasceu. Preparou-se para aquele encontro. Sem beber e sem comer... Lavou a pele, perfumou os cabelos, esfoliou o peito e a boca.

- E ele gostou?

- Muito... Ele penetrou-a devagar. Como um homem deve sempre fazer.

- Mas depressa também é bom...

- É, mas só no fim. Eles não tinham pressa...

- Sim. – imaginou.

- Ela tinha um buraco no peito. Ele preencheu-a.

- Isso é bonito.

- Muito.

- Mais. Conta-me mais.

- Não sei.

- Como não sabes? Tens de acabar o que começaste.

- Ok. – pensei - Ela ficou doente.

- Doente?

- De amor. Não se sabia ser sem ele por dentro...

- Obcecou?

- Ele assustou-se.

- Não! Não faças dele um cobarde por favor.

- Ok. – repensei - Ele respirou-a.

- Sim. Continua...

- Os ventos mudaram, os fundos do mar também mas ele permaneceu.

- Onde?

- Na rede. No céu. Em cada estrela que os via... Cada vez que ele a penetrava um gigante e aberto “ah” lhe saia. Ele comi-a...

Ela calou-se.

- Não havia passado, nem presente na vida deles. Apenas um futuro. O deles.

- Isso é bom... –suspirou.

- É.

- Eles eram cúmplices no seu crime.

- O amor não é um crime.

- Talvez...

- Um dia ela pediu-lhe o impossível.

- O quê?

- Pedi-lhe que ele construísse uma parede.

- Entre eles?!

- Não. Atrás dela.

- Para que?

- Para ele empurra-la contra ela e nunca mais a deixar fugir.

- E o que é que ele fez? – perguntou.

- Ele concedeu-lhe o desejo e perguntou.: “Queres morrer de desejo?”

Os olhos dela brilhavam.

- E ela?

- Ela disse que sim por isso ele amarrou-a pelos braços e absorveu-a por completo.

- E ela? O que é que ela lhe deu?

- Ela escreveu-lhe uma peça de teatro.

- Teatro?

- Sim. Teatro. Mas um teatro perfeito. Com os tempos e as pausas no sítio exacto.

- Gosto disso.

- Ela deu-lhe o protagonismo que ele sempre quis. Elevou-o...

- É isso que o amor faz.

- É.

- E ele?

- Ele encenou a peça e depois guardou-a numa gaveta.

- Numa gaveta?! Porquê?

- Porque o amor dela era demasiado especial.

- Ai sim?

- Sim. Ele temia que se alguém conhecesse aquele amor perfeito o vandalizasse.

- Porquê? – chocada.

- Porque os infelizes são assim.

- E onde está essa gaveta?

- Dentro de mim.

- Mostra-me.

- Aqui. – apontei para a minha cicatriz no ventre.

- O que é isso?

- Vestígios de guerra.

- Que guerra?

- A minha guerra. Guerra de poder e de adição.

- Tiveste uma vida pesada?

- Muito pesada.

- E onde é que ele está agora?

- Em casa.

- Ficaste com ele?

- Não.

- Então?

- Ele ficou comigo. Com tudo o que sou eu.

- Com as cicatrizes e esse cansaço?

- Sim. Com tudo é com tudo. Foi ele que me ensinou...

- Ele é grande.

- É.

- Sabes que eu estou farta de poetas e mentirosos, de atores e de fingidos, de ilusionistas e malabaristas mas eu gosto de ti.

- Porque o meu amor é carnal e real.

- Parece que sim...

- Temos a loucura e a candidez debaixo da palma da mão.

Ela fechou os olhos e voou.

- Como é que Ele se chama?

- Chama-se.

- Como assim?

- Tem o nome do meu pai, do meu irmão, do meu melhor amigo, ouvinte e amante.

- João?

- Não.

- Não queres dizer?

Ficámos caladas em respeito uma pela outra. Cada uma dá o que pode. Fechamos os olhos para absorver o barulho da areia a ser enrolada na água da praia. O frio congelava-nos as entranhas. A mente planava.

Ela abriu a mochila, tirou um caderno e desenhou.




Aguarela de TINEISACHSEN

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