quarta-feira, 1 de junho de 2022

As fontes e as águas na bibliografia sintrense: Uma estreia curiosa e o caso estranho da fonte de Santa Eufémia.

 

JORGE LEÃO


Como já alguém disse no passado, poucas terras portuguesas terão sido tantas vezes nomeadas na literatura, como Sintra. Desta bibliografia, por tão rica que é, podemos extrair uma outra, mais especializada, em que é referido algo pelo qual Sintra é reconhecida há muitos séculos: a celebridade das suas águas e das suas fontes.

Assim, e porque um artigo de História Local deve sempre criar um avanço e não somente transcrever o que já foi dito no passado, iremos, além de recordar alguns casos notáveis, relatar dois casos especiais. Um por ser muito curioso e inédito na bibliografia sintrense, e outro, por ser muito bizarro.

Século XII – Uma fonte, os limões, etc.

A primeira, em termos cronológicos, é a famosa carta que um cruzado inglês escreveu aquando da tomada de Lisboa aos mouros, em 1147, que aponta em Sintra a existência de uma fonte de águas de excepcional poder curativo. É a primeira, mas vai ser a última a ser aqui tratada por ser um caso muito estranho. Continuemos.

Século XVI – Góis e Camões

Damião de Góis dá-nos, no séc. XVI, informação de como eram consideradas as águas e as fontes de Sintra, no final do século XV:

D. Manuel veio «a Sintra no verão, por ser um dos lugares da Europa mais frescos e alegres para qualquer Rei (…), porque além dos bons ares que de si lança aquela serra, chamada pelos antigos Promontório da Lua, há nela muita caça de veados, e outras alimárias, e sobretudo muitas, e muito boas frutas de todo o género das que em toda a Hispanha se podem encontrar e as melhores fontes de água, as mais frias de toda a Estremadura …». (1)

Também neste século canta assim Luís de Camões em Os Lusíadas:

E nas serras da Lua conhecidas / Subjuga a fria Sintra o duro braço, / Sintra, onde as Náiades, escondidas / Nas fontes, vão fugindo ao doce laço / Onde Amor as enreda brandamente, / Nas águas acendendo fogo ardente.

Século XVII – D. Sebastião e o mundo feminino

Este episódio passa-se na Quinta da Penha Verde e além de ser muito curioso, parece ser uma estreia na bibliografia sintrense já publicada. D. Francisco Manuel de Melo relata desta forma a débil simpatia do Rei pelo sexo oposto:

«Dizia-se que o Rei em público e na sua vida particular não era nada favorável ao trato com senhoras, e isto ouvi da própria bôca de algumas dêle queixosas. Estando em Sintra, no verão, entrou com toda a côrte na horta e jardim de D. João de Castro, então muito celebrados pela sua frescura. Para vê-lo, algumas donzelas fidalgas tinham-se metido num saguão, mostrando-se quando êle passou, sem fazer caso da honestidade portuguesa. O Rei desgostou-se do encontro e, apontando, zangado, para uma estátua menos recatada de uma fonte de mármore, disse: – «O que elas querem é aquilo!». E repetiu a frase. Mas D. Duarte, sempre galante e excelente príncipe, quis ser-lhes agradável, exclamando: – «Será de estranhar que as flores queiram bem às fontes?».

Sei que estas duas frases ficaram muito bem guardadas na memória de uma que as ouviu e mas repetiu a mim, porque a memória das mulheres só é de bronze para não esquecer injúrias». (2)

Século XIX – No tempo do romantismo

Naturalmente, neste século é muito mais vasta a bibliografia em que Sintra é mencionada. Sobre as suas fontes seguem-se estes dois exemplos vindos destes dois nomes maiores da literatura portuguesa:

De Almeida Garrett, no Impronto de Sintra, logo no início:

«Que ar tão suave se respira em Sintra! / Que amenos prados, que gentis outeiros! / Que horizonte, que céu, que estância amável! / Por entre esses esmaltes de verdura / Como é saudoso o murmurar das fontes! / Parece quase ouvir que elas suspiram, / E a suspirar os peitos nos convidam.»

E no poema Camões:  Ó gemedoras fontes, ó suspiros / De namoradas selvas, brandas veigas, / Verdes outeiros, gigantescas serras! / Não vos verei eu mais, delícias d´alma? ».

De Eça de Queirós:

«Vi-a numa noite doce / Em que o Rouxinol cantava: / E todo o céu se estrelava / Luminoso pavilhão: / Era Sintra ! Sinto ainda; / O doce correr das fontes / E a sombra das nossas frontes / Das árvores do Ramalhão.».

Século XX

De Félix Alves Pereira:

«Gemedoras fontes, chama Garrett às de Sintra, de que ele se encantou no seu “Camões”…Esta, porém, de Santa Eufémia da Serra, tão apoucada de águas e de sombras, se é gemedora, como as suas poéticas e umbrosas companheiras, não o é pelo seu enlevo e lirismo, mas pelo desamparo e descrédito em que hoje se encontra.»

Voltando ao séc. XII

Lembra-se o meu caro leitor que tínhamos deixado uma epístola, a primeira referência às fontes de Sintra, do século XII, por analisar. Fazemo-lo porque realmente merece uns minutos da nossa atenção.

Um cruzado inglês, em 1147, relata ao vivo a campanha comandada por D. Afonso Henriques na conquista de Lisboa e refere Sintra nestes termos:

«Fica-lhe próximo o castelo de Sintra, à distância de quási oito milhas, no qual há uma fonte puríssima, cujas águas, a quem as bebe, dizem, abrandam a tosse e a tisica; por isso quando os naturais dali ouvem tossir alguém, logo depreendem que é um estranho. Também tem limões…

 

 Adivinha o meu caro leitor qual fonte seria essa? será difícil porque o relator não lhe menciona o nome, nem nos dá qualquer pista que nos permita identifica-la. Pela historiografia existente, tem-se apontado para uma fonte. A fonte de Santa Eufémia da Serra.  Nesta direcção, já aproaram alguns ilustres e principais estudiosos destes assuntos: Félix Alves Pereira (1931), Francisco Gonçalves (1941), José Cardim Ribeiro (1983). Não é estranho pois nos primeiros documentos que nos surgem, a carga simbólica relativa à água e à fonte de Santa Eufémia é tão forte que tudo nos pode fazer suspeitar que seja esta a fonte mencionada pelo tal cruzado. Mas não podemos ter a certeza…

No entanto, mais peremptórias são as instituições. Curiosamente, as principais envolvidas no caso, não têm dúvidas. É a fonte de Santa Eufémia da Serra de Sintra.

Lê-se, escrito pela Direção-Geral do Património Cultural:

«Sem informações durante a Alta Idade Média, só em 1147 a fonte de Santa Eufémia é referida documentalmente, pelo cruzado R. que acompanhou as tropas cruzadas na conquista da cidade de Lisboa (…). A circunstância de as suas águas possuírem poderes curativos, em particular problemas de tosse, levou a que, no século XIII, se tivesse edificado a ermida…».

Também a Câmara Municipal de Sintra, através da revista Tritão:

«Esta Ermida (Santa Eufémia) surge associada a um complexo termal bastante antigo que lhe fica muito próximo. Já o cruzado Osberno referia aqui a existência de uma fonte de águas com singulares qualidades terapêuticas.»

Também a recente Sintria Monumenta Historica descreve tecnicamente a fonte e a sua sala de banhos. (3)

E conjuntamente, a Paróquia e a empresa Parques de Sintra – Monte da Lua, através da placa colocada no caminho para a ermida:

«As referências às capacidades curativas da fonte de água de Santa Eufémia remontam a 1147, pelo cruzado Osberno». 

O caso bizarro

Então sucede que temos uma fonte histórica, considerada uma “mãe das fontes de Sintra”, devido à sua fama, à sua bagagem etnográfica, e talvez por ser a mais velha pelo nosso conhecimento, na terra das fontes, com uma curiosíssima e antiquíssima sala de banhos agregada, mas seca e abandonada. Abandonada até à vergonha. Uma nascente que tudo indica estar na génese da ocupação humana do local, dos primeiros de Sintra.

Resumindo, para quem não conhece o assunto:

A fonte e sala de banhos de Santa Eufémia ficam 200 metros abaixo da ermida; o fornecimento de água pelos SMAS não chega à ermida; cá em baixo, por volta dos anos 70, alguém se lembrou de desviar a água da fonte para um poço, construído ao lado para o efeito, e assim elevá-la com um motor eléctrico para a ermida; por isso, a fonte nunca mais deitou água pela sua bica; a ermida precisa da água; a empresa Parques de Sintra-Monte da Lua tem instalações a 100 metros da ermida; foi pedido a esta empresa que estendesse um cano e fornecesse, através das suas instalações, água do SMAS à ermida para que esta libertasse a água da fonte; Em 2019, a PSML recusa-se a ajudar nesta matéria, estendendo os 100 metros de cano, embora já lá tenha tido um à vista, quando precisou de efectuar trabalhos no local, no âmbito de um acordo que lhe permite ter acesso automóvel exclusivo no tradicional caminho entre a ermida e a fonte.



“Esta obra mandou fazer à sua custa o Capº Francisco

Lopes de Azevedo no ano de 1758 e esta é a água

milagrosa da Srª Stª Eufémia e ali está a casa donde se

tomam os banhos”

No Japão medieval, causado pela miséria, havia um costume bastante cruel. Os velhos, ao atingir certa idade, improdutivos, eram levados para uma montanha para aí morrerem ao frio e à fome. Este assunto, depois de um romance, deu um excelente filme da cinematografia japonesa chamado «Balada de Narayama». Esta prática já tinha sido narrada por Pigafetta no seu relato da viagem de Fernão de Magalhães, em que participou, e a ouviu em 1521.

Não é o caso de defender a geminação de Sintra com Narayama, baseada no costume de deixar velhinhas mães morrer à fome e ao frio na montanha. Até porque no Japão esse costume já não se pratica. Mas parece-nos razoável alertar a Câmara Municipal de Sintra para a estranha situação da vetusta fonte de Santa Eufémia. Possivelmente no sentido de sensibilizar a empresa PSML, sobretudo junto da Presidente do Conselho de Administração, que já abordou o assunto, infelizmente sem resultados. Acontece que esta empresa é “tetra campeã mundial de conservação e restauro do património” e tem instalações a 100 metros da ermida. Ermida já conhecida no séc. XIII e que no século XXI ainda não tem água potável; que rouba a água da sua venerada e secular fonte, e consome dessa água não controlada pelos SMAS. Isto a 100 metros desta empresa pública que cuida da maior parte do nosso património histórico e que lhe podia fornecer as duas gotas de água de que esporadicamente necessita.

O primeiro texto literário sobre as águas e as fontes de Sintra, do século XII, faz-nos então confrontar com este caso bizarro: temos uma vetusta e primitiva fonte de Sintra, talvez a mais antiga documentalmente, absurdamente abandonada e seca sem necessidade, na terra das águas e das fontes, património mundial.

Insolitamente, são alguns moradores de São Pedro de Penaferrim que sabem onde está guardada a lápide (29X46cm) que assinala o restauro da fonte após o terramoto de 1755, datada de 1758, desenhada por José Alfredo da Costa Azevedo em 1957 e que por pouco não se perdeu como as outras que lá existiam. Pactuam no sentido de entregar a lápide quando alguma ou algumas das instituições que podem ou devem intervir no assunto, ajudem a reabilitar a fonte. Nomeadamente, a Paróquia de São Pedro de Penaferrim, a Câmara Municipal de Sintra ou, não por obrigação, mas por absoluta consciência, a PSML, empresa pública que gere, ao que se sabe bem, grande parte do nosso património histórico e cultural.

 

Este texto foi acabado em Março de 2022, quando se celebrou o “Mês da Água” no Concelho de Sintra.

 

(1) –  Crónica de D. Manuel I. Damião de Gois

(2) – D. Teodósio, Duque de Bragança. D. Francisco Manuel de Melo

(3) – Recentemente, a Câmara Municipal de Sintra publicou a obra Sintria Monumenta Historica, onde, como não podia deixar de ser, vem referida a fonte e a sua sala de banhos. Porém, este assunto prestou-se a alguma confusão que vamos aqui esclarecer. O assunto das lápides desaparecidas da fonte de Santa Eufémia tem-se baseado nos desenhos de José Alfredo da Costa Azevedo. Mas como não há ninguém que não erre, o nosso José Alfredo, ao desenhar a data da lápide de 1758, desenhou 1738. A prova está na fotografia da lápide, que publicamos aqui pela primeira vez. Não só por isso, mas também por isso, temos aqui uma série de interpretações erradas. Em 1738 não se passa nada. Em 1758, muito provavelmente devido ao terramoto de 1755, passam-se duas coisas distintas: o capitão Francisco Lopes de Azevedo restaura a fonte e coloca lá uma lápide que ainda hoje temos. O mesmo sucedeu com a fonte da Sabuga, que ostenta uma lápide gémea de 1757; nesse mesmo ano, o prior de São Pedro, António de Sousa Seixas, na sua resposta às Memórias Paroquiais, refere que a fonte é pertença da ermida e que nas suas águas se vêm banhar os enfermos. A data da construção da sala de banhos, não a sabemos. Sabemos que a lápide mais antiga que lá existia era de 1723. Até este assunto das lápides é representativo da incúria a que estranhamente a fonte está sujeita.

Entre 1931 e 1957, desapareceram duas lápides (1723 e 1807). Daí aos nossos dias, iam desaparecendo as outras duas (1758 e 1845). Salvou-se esta de 1758, que está escondida, graças à sensibilidade de alguém da população.


terça-feira, 12 de abril de 2022

O Anjo da Incerteza



 MARCOS PAMPLONA

Marcos Pamplona (Curitiba, 1964) é poeta, cronista e editor. Os seus poemas foram selecionados para três edições do Prémio Off Flip de Literatura, integrando as coletâneas de 2006, 2008 e 2010. Publicou o livro de poemas Tranverso, pela Kotter Editorial, em 2016; e o livro de crónicas Ninguém nos Salvará de Nós, também pela Kotter, em 2021. Vários textos seus podem ser encontrados em suportes eletrónicos ou de papel, tais como Mallarmargens, Jornal Relevo, Cândido, Pássaros Ruins, Radiocaos e Musa Rara (Brasil); Revista InComundade e Leiria Poetry Festival (Portugal). Vive em Lisboa, onde é editor da Kotter Portugal. Desde abril de 2019 escreve crónicas para o Jornal Plural, nascidas das suas andanças pelas terras portuguesas.

  

Ontem pela manhã o telefone começou a tocar. Pessoas próximas me desejavam um feliz aniversário: os filhos, a mãe, alguns amigos, o irmão. Eu agradecia, satisfeito por terem se lembrado de mim. Uns ligavam do Brasil, outros daqui de Portugal, mas era como se estivessem todos por perto. O calor do seu afeto ia aquecendo o fundo frio que acompanha meus pensamentos nestas datas. Graças a eles e à companheira, que me dedicou uma atenção carinhosa ao longo do dia, passei razoavelmente bem pelo ligeiro incômodo que os aniversários me causam. Pensar que os outros podem me esquecer ou que falam comigo por mero protocolo me deixa contrafeito ou desoladamente efusivo.

Quando fui me deitar, à noite, respirei fundo: estava livre do “meu dia”, da terrível convenção segundo a qual aquela data reserva algo de especial para mim. Já podia voltar ao tempo verdadeiro, ao tempo anônimo de toda gente. Adormecer com a cabeça confortavelmente acomodada em minha ineludível insignificância.

 

            Hoje é domingo. Escrevo diante desta janela bem no alto do prédio, de onde vejo a cidade ainda meio adormecida, sob o azul esbranquiçado onde às vezes some uma gaivota. Procuro responder à pergunta que meu filho mais velho me fez ontem. “Como você se sente?”, disse ele, num tom ambíguo que hesitava entre me provocar e não querer a resposta. Na hora falei algo banal, “vou bem”, “vou levando”, não lembro ao certo. Na verdade fui pego de surpresa. Mas a pergunta dormiu ao meu lado, levantou-se da cama comigo hoje, ficou me rondando como um cão à espera de atenção.

            “Como você se sente?”

           

            Depois de conhecê-la por cinquenta e oito anos, não vejo grandes motivos para festejar a vida. O que houve de melhor foram respingos de alegria, fumos de prazer numa senda de monótonas inquietações. O trágico disso é que também não chego a deplorar a existência, pelo menos nunca a ponto de querer abandoná-la. De tal maneira que me arrasto aos pés do que quase sempre me faz sofrer, como um amante maltratado e servil. E a sabedoria que se supõe colher desta experiência excruciante não vai além de algumas técnicas para diminuir a humilhação, como fingir indiferença ao futuro (carpe diem!) ou buscar na arte o sopro divino que me nega o carrasco.

             Essas considerações poderiam levar você a me supor um homem triste. Ou ultrajado pela sua condição, no fundo fraco. E você estaria certo, mas também errado. Porque ao mesmo tempo sou (absurdamente) forte, como o protagonista de O Castelo, aquele agrimensor que não desiste de buscar o alto, apesar dos labirintos insolúveis que lhe oferecem os poderes terrenos. Então você também poderia, claro, me perguntar o que é o “alto”, mas tal qual o agrimensor jamais chegarei lá, não sei nem nunca saberei o que seja. Simplesmente sou impulsionado pela força cega da vida, o eros que pode conceber e pode matar, jamais deter-se. (Toda a civilização oscila entre estes dois extremos, de criação e destruição, e senta-se diante do prato de sopa como um pássaro exilado do céu.) O alto é talvez apenas o contrário do baixo, do reles, do chão, daquilo a que estamos condenados. Às vezes acredito que é também uma lembrança, a nostalgia de uma completude perdida. O que há em nós de obscuramente divino, se você quiser. Mas outras vezes acho que é apenas nosso corpo com uma saudade oceânica da matéria inanimada, liberta de existir. Não sei; por mais que lhe digam o contrário, ninguém realmente sabe. Não saber parece ser o combustível indispensável para que a roda do mundo gire.

            E aqui, talvez, eu consiga dizer algo que pode ser útil neste espetáculo a que somos lançados nus, sem saber o texto, divisar a plateia ou conhecer o diretor. Digo a você que fuja dos que sabem, dos que professam certezas, dos que “conhecem o caminho”. Tudo que eles querem é escravizar o elenco, amealhar para si a bilheteria e os aplausos. Não lhe trarão nada que sequer se aproxime de amor ou afeto, porque estão comprometidos com a mentira até os ossos.

Você pode achar esquisito, mas o que sinto agora é ternura e respeito pelos confusos, pelos hesitantes, pelos tímidos, perdidos, céticos, por todos aqueles que caminham sobre a mais profunda ignorância, sem impor seu exemplo a ninguém. Os que não querem dominar os outros porque não transformam em matéria de ressentimento ou menosprezo a sua própria insuficiência e, pelo contrário, olham com fraterna largueza para a nossa pequenez.

Para estes abro minha porta, com eles compartilho água, comida, calor. Sei que não irão me devorar nem exigir de mim um predador nauseado.  

Mas evito os que “sabem”, os que se arrogam os poderes do céu e da terra, os que escravizam os outros com verdades que não passam de ilusionismo tirânico, destilado por uma vaidade rasa, violenta, estúpida. Evito os pastores como uma ovelha que sabe que vai ser abatida pelo seu zelo.

 

O que sinto hoje, meu filho, é essa paz relativa que só a derrota pôde me dar. E a presença protetora de um anjo cabisbaixo, esquivo. Poderia chamá-lo de anjo da nossa incerteza.



           

           

            

sábado, 4 de dezembro de 2021

Os 10 jogadores com mais jogos pelo 1º de Dezembro no Campeonato de Portugal


DAVID PEREIRA
Jornalista no Diário de Notícias, autor de "O Blog do David"

Fundada a 1 de dezembro de 1880, sob foral de D. Carlos, então Rei de Portugal, e como cor da bandeira o azul, símbolo da monarquia, a Sociedade União 1º Dezembro dedicou-se inicialmente à instrução e ao recreio, nomeadamente à música, mas veio a tornar-se num clube bastante representativo do concelho de Sintra na modalidade de futebol.

 
Em meados de 1935, o 1º Dezembro integrou um grupo de jovens denominado de “Os Terríveis”, que se dedicava à prática de vários desportos, como ténis de mesa, ciclismo e futebol, mas que debatia-se com grandes dificuldades financeiras. No mesmo ano, o então Conde de Sucena doou os terrenos onde ainda hoje está situado o Parque de Jogos do 1º Dezembro.
 
Porém, foi necessário esperar até ao século XXI para ver a equipa sénior masculina a tornar-se presença assídua nos campeonatos nacionais, tendo competido ininterruptamente na III Divisão entre 2003-04 e 2010-11, na II Divisão B em 2011-12 e 2012-13 e no Campeonato de Portugal entre 2013-14 e 2020-21.
 
Em oito participações no Campeonato de Portugal, o melhor que o 1º Dezembro conseguiu foi alcançar o apuramento para a fase de promoção em 2014-15 e 2015-16.
 
Paralelamente, a equipa feminina sagrou-se pela primeira vez campeã nacional em 1999-00 e conquistou onze títulos consecutivos (!) entre 2001-02 e 2011-12, constituindo um recorde de 12 títulos nacionais. Porém, a formação foi dissolvida devido a problemas económicos no final da época 2013-14.Vale por isso a pena recordar os dez futebolistas com mais jogos pelo 1º Dezembro no Campeonato de Portugal.
 

10. Edmar (63 jogos)

Edmar Silva
Experiente médio brasileiro, que tem no currículo um título cipriota e mais de uma dezena de jogos nas competições europeias, reforçou o 1º Dezembro no verão de 2018 após onze anos no Chipre, numa altura em que já tinha 36 anos de idade.
Ao longo das três primeiras temporadas ao serviço dos guerreiros de Sintra amealhou 63 encontros (59 a titular) no Campeonato de Portugal, mostrando-se impotente para evitar a descida aos distritais da AF Lisboa em 2021. Em 2021-2022 permaneceu no clube, apesar da despromoção

9.Benjumea (67 jogos)


Defesa central colombiano que jogou no principal campeonato da Colômbia ao serviço do Deportivo Pasto, entrou no futebol português precisamente pela porta do 1º Dezembro durante o verão de 2017.Ao longo de pouco mais de três anos nos guerreiros de Sintra amealhou 67 encontros (63 a titular) e seis golos no Campeonato de Portugal, despedindo-se no início da temporada 2020-21, quando voltou à Colômbia para representar o Bogotá, da II Divisão.Pelo meio, chegou a ser anunciado como reforço do Olímpico Montijo em meados de 2018, mas acabou por voltar ao Campo Conde de Sucena sem que tivesse disputado qualquer jogo oficial pelos montijenses.



8. Marco Pinto (69 jogos)

Marco Pinto
Guarda-redes internacional jovem português que jogou na formação do Sporting ao lado de Rui Patrício, Fábio Paim, Daniel Carriço e Bruno Pereirinha, passou por clubes como BelenensesMafraBeira-Mar Monte GordoEstrela da Amadora e Pêro Pinheiro antes de ingressar no 1º Dezembro no verão de 2012.
Na primeira época em São Pedro de Penaferrim ajudou a equipa a alcançar um honroso 6.º lugar na Zona Sul da II Divisão B e, consequentemente, a assegurar a presença na edição inaugural do Campeonato de Portugal, competição em que Marco Pinto amealhou 69 partidas e 66 golos sofridos ao serviço dos guerreiros de Sintra entre 2013 e 2016. Nesse período contribuiu para o apuramento para a fase de promoção à II Liga em 2014-15 e 2015-16.

No verão de 2016 transferiu-se para o Desp. Aves, clube pelo qual haveria de festejar a subida à I Liga.
 
 
 

7. Martim Águas (70 jogos)

Martim Águas
Médio ofensivo/avançado filho e neto de dois antigos internacionais portugueses, José e Rui Águas, jogou ao lado de Ricardo PereiraJoão Mário, Ricardo Esgaio e João Carlos Teixeira nas camadas jovens do Sporting e de João Cancelo, Ivan Cavaleiro, Bruno Gaspar e Hélder Costa na formação do Benfica.
Após passagens pelos seniores de Casa Pia e Vitória de Sernache, ingressou no 1º Dezembro em janeiro de 2016. Ao longo de duas temporadas e meia no Campo Conde de Sucena totalizou 70 encontros (65 a titular) e 20 golos no Campeonato de Portugal, contribuindo para o apuramento para a fase de promoção à II Liga em 2015-16.Paralelamente, em outubro de 2016 marcou um golo e atuou os 90 minutos numa eliminatória da Taça de Portugal diante do Benfica em que os guerreiros de Sintra estiveram a escassos segundos de adiar a decisão para prolongamento.
No verão de 2018 transferiu-se para o Pinhalnovense.  
 

 
 

6. Pipas (81 jogos)

Pipas
Médio ofensivo natural de Sintra e formado maioritariamente no rival Sintrense, concluiu a formação no 1º Dezembro, tendo transitado para a equipa principal em 2009-10, na altura para jogar na III Divisão Nacional.
No verão de 2011 mudou-se para o vizinho Sp. Lourel, mas um ano depois regressou ao Campo Conde de Sucena para a equipa a alcançar um honroso 6.º lugar na Zona Sul da II Divisão B e, consequentemente, a assegurar a presença na edição inaugural do Campeonato de Portugal, patamar em que amealhou 72 partidas (56 a titular) e oito golos entre 2013 e 2016. Nesse período contribuiu para o apuramento para a fase de promoção à II Liga em 2014-15 e 2015-16.
Entre 2016 e 2020 esteve ao serviço do Sintrense, mas na primeira metade de 2020-21 voltou aos guerreiros de Sintra para atuar em nove jogos (todos como titular) e marcar um golo ao Lourinhanense no Campeonato de Portugal, numa campanha que ficou marcada pela descida aos distritais da AF Lisboa. Porém, Pipas acabou por não ficar toda a temporada no clube pois rumou ao Olímpico Montijo no início de 2021.
 

 
 

5. João Lima (84 jogos)

João Lima
Defesa central natural de Alfornelos, concelho da Amadora, dividiu a formação entre Estrela da Amadora e Atlético, tendo iniciado o seu percurso no futebol sénior ao serviço da formação de Alcântara, que em 2013-14 o emprestou ao 1º Dezembro.
Nessa temporada atuou em 16 encontros (12 a titular) no Campeonato de Portugal e apontou dois golos, diante de Operário e Futebol Benfica.Em 2014-15 e no início da época seguinte, já vinculado em exclusivo aos guerreiros de Sintra, amealhou mais 24 partidas (22 a titular) no inicialmente designado por Campeonato Nacional de Seniores, tendo contribuído para o apuramento para a fase de promoção em ambas as temporadas.
Nos derradeiros dias do mercado de inverno de 2016 mudou-se para o Pinhalnovense, mas no verão desse ano regressou ao Campo Conde de Sucena para mais duas temporadas em São Pedro de Penaferrim, nas quais totalizou 44 jogos (41 a titular) e cinco golos no Campeonato de Portugal.
Paralelamente, em outubro de 2016 atuou os 90 minutos numa eliminatória da Taça de Portugal diante do Benfica em que os guerreiros de Sintra estiveram a escassos segundos de adiar a decisão para prolongamento.
No verão de 2018 emigrou para o Reino Unido.
 

 
 

4. Ruizinho (87 jogos)

Ruizinho
Extremo nascido em Lisboa e formado no 1º Dezembro, foi pela primeira vez convocado para jogos da equipa principal em 2013-14, mas só na época seguinte é que se estreou oficialmente.
Entre 2014 e 2019 amealhou 87 partidas (66 a titular) e oito golos no Campeonato de Portugal, tendo contribuído para o apuramento para a fase de promoção em 2014-15 e 2015-16.  Paralelamente, em outubro de 2016 atuou os 90 minutos numa eliminatória da Taça de Portugal diante do Benfica em que os guerreiros de Sintra estiveram a escassos segundos de adiar a decisão para prolongamento.

Assolado por lesões, chegou a deixar o futebol em 2019, mas acabou por voltar à atividade em 2020-21 com a camisola do Sp. Lourel.
 

 
 

3. Luisinho (126 jogos)

Luisinho
O melhor marcador de sempre do 1º Dezembro no Campeonato de Portugal, com 47 golos.
Avançado lisboeta que começou a jogar futebol nos infantis do Sporting, entrou para os iniciados do 1º Dezembro em 2002-03 e transitou para a equipa principal em 2008-09, numa altura em que os guerreiros de Sintra militavam na III Divisão Nacional.
Após uma passagem pelo Sp. Lourel em 2011-12, Luisinho voltou ao Campo Conde de Sucena para se afirmar como goleador, tendo contribuído para o apuramento para a edição inaugural do Campeonato de Portugal, patamar em que entre o verão de 2013 e dezembro de 2014 amealhou 45 jogos (39 a titular) e 23 golos.
Embora tivesse rumado ao Benfica de Macau em janeiro de 2015, o atacante contribuiu para a qualificação para a fase de promoção em 2014-15. Na época seguinte regressou ao clube e repetiu esse feito, desta vez com sete golos em 32 partidas (todas como titular).
No verão de 2016 mudou-se para o Omonia Aradippou, da II Divisão de Chipre, tendo ainda passado pela AD Oliveirense antes de regressar ao 1º Dezembro em 2018-19, em mais uma temporada de grande produtividade à frente da baliza, uma vez que somou 15 remates certeiros em 32 encontros (todos como titular).
Após uma nova passagem pela AD Oliveirense e uma aventura de alguns meses no Olímpico Montijo, voltou uma vez mais a Sintra em 2020-21, uma temporada de má memória tanto em termos coletivos, devido à descida de divisão, como a nível pessoal, uma vez que não foi além de dois golos em 17 partidas (nove a titular).
Após a despromoção permaneceu no clube, que está a competir nos distritais da AF Lisboa.
 

 
 

2. Leonel (130 jogos)

Leonel Correia
Médio nascido em Lisboa e que jogou ao lado de Miguel Vítor, Miguel Rosa, Rúben Lima e André Carvalhas nas camadas jovens do Benfica, terminou a formação e iniciou o seu percurso como futebolista sénior no Oeiras.
Em 2013-14 representou pela primeira vez o 1º Dezembro, numa época em que disputou 30 jogos (24 a titular) e apontou dois golos no Campeonato de Portugal.
Entre 2014 e 2016 representou Malveira e Oriental, tendo regressado ao Campo Conde de Sucena em novembro de 2016 para iniciar um ciclo nos guerreiros de Sintra que dura até aos dias de hoje.
Desde o regresso a São Pedro de Penaferrim até meados de 2021 amealhou 100 partidas (94 a titular) e sete golos no Campeonato de Portugal, mostrando-se impotente para evitar a despromoção aos distritais da AF Lisboa em 2020-21.
 

 
 

1. Oumar (136 jogos)

Oumar Diatta
Defesa/médio senegalês de baixa estatura (1,68 m), passou pelos juniores do Belenenses e pelos seniores de OdivelasEstrela da Amadora e Casa Pia antes de ingressar no 1º Dezembro no verão de 2012.
Na primeira época no clube contribuiu para o apuramento para a edição inaugural do Campeonato de Portugal, patamar em que amealhou 136 partidas (116 a titular) e um golo (ao Almancilense, em 2016-17) entre 2013 e 2020. Nesse período contribuiu para o apuramento para a fase de promoção à II Liga em 2014-15 e 2015-16.
Paralelamente, em outubro de 2016 atuou os 90 minutos numa eliminatória da Taça de Portugal diante do Benfica em que os guerreiros de Sintra estiveram a escassos segundos de adiar a decisão para prolongamento.
Em janeiro de 2021 mudou-se para o Desportivo dos Olivais e Moscavide. 


terça-feira, 28 de julho de 2020

Os hotéis da Vila Velha


CAÍNHAS

Sem qualquer tipo de pesquisa, eu falo daquilo que vi,ou ouvi contar. E, em jeito de conversa de café, vou falando daquilo que me lembro. Pode haver até alguma falta de rigor com datas, nomes, e outras falhas, que espero me desculpem, pois não tenho pretensões nenhumas, não quero ser comparável com ninguém, vejam as minhas estórias, como isso mesmo, “estórias” da minha juventude, apenas e só. Obrigado! 

Nas décadas de cinquenta e sessenta, os Hotéis na Vila de Sintra, eram apenas três, o CENTRAL da família Raio, o NUNES da família Lopes Alves, e o NETTO que tinha à frente, uma Senhora de Sintra, originária de Nafarros, muito alta, bonita e elegante, não me lembro bem do nome, estou com a mania que era Manuela. 

 A 7 de Agosto de 1951, Schiappa de Carvalho e Glenville Américo Marques são encarregues do projecto de adaptar Seteais a um hotel. A 29 de Setembro de 1955, é inaugurado o Hotel de Seteais, com a presença do ministro da Presidência, Marcelo Caetano. (in Conhecer Sintra). 

Muitos dos que se fizeram bons profissionais na indústria hoteleira, e foram para o Hotel Seteais, aprenderam nos hotéis da Vila Velha, foram para lá quando abriu, tendo chegado a lugares de destaque, casos do Luís, que chegou a cozinheiro chefe, e do Bonifácio, que se iniciou como pasteleiro na Piriquita, e chegou a chefe pasteleiro dos Seteais. Reformou-se, e abriu a sua pastelaria na Rua das Padarias, fatalmente aquela doença que não perdoa, levou-o precocemente. 

Todos os Hotéis eram diferentes, tanto na oferta ao cliente, como no modo de gestão. Comecemos pelo CENTRAL, até porque o nome diz tudo. 

O HOTEL CENTRAL


Esta unidade hoteleira, estava à frente no seu tempo para o Turismo que vinha visitar Sintra, e tinha protocolos com várias agências de viagens, que lhe metiam pela porta dentro diariamente ou perto disso, vários autocarros com turistas para almoçar, dentro da capacidade do Hotel em receber condignamente esses turistas. A camionagem da Capristanos, a determinada altura investiu nos autocarros de turismo de luxo, que sobretudo faziam o circuito, Lisboa, Sintra, Cascais, Lisboa, trabalhavam com Agências, e era ali que vinham desembocar. Porquê? - Porque a Sra. Dona Laura Raio, era mesmo uma Senhora com todas as letras, e sabia muito do metier, falava inglês como qualquer Ministro de sua Majestade, tinha estudado em Inglaterra, era a alma daquela casa, estava bem relacionada no meio, muito conceituada, tinha muitos bons contactos, porque não se via aquele tipo de negócio nos outros hotéis. 

As suas origens estão em Galamares (Saraivas), lá tinham uma quinta, de onde vinham muitos produtos, desde a uva para o vinho, que era feito nas adegas por debaixo do Hotel, até produtos hortícolas, e fruta. 

Todas estas coisas que vinham de Galamares, eram transportadas numa carroça puxada por um macho, e o seu carroceiro foi um homem que serviu aquela casa até morrer, morava na quinta, em Galamares, tinha um filho chamado Rui, mais velho que eu, mas que ainda apanhei na Instrução Primária. 

Uma vez o Rui apareceu na Escola (hoje Piriquita 2, era nosso professor o Sr. Rovisco de Andrade), com uma régua de 50 centímetros em pinho, mais grossa que um dedo, e com 5 furos, a chamada menina dos cinco olhos, lá vem o Rui com a régua parece que estou a vê-lo:
 - Sou “pressor”, trago-lhe aqui esta régua para lhe oferecer! 

-Ai trazes? Então vais já ser o primeiro a estreá-la. 

Bumba, cinco réguadas em cada mão. Eu assisti a isto tudo, devia eu andar na primeira ou segunda classe, ele na quarta classe. Todos os dias lá vinha o pai do Rui com a carroça fazer serviço ao Hotel, na Rua da Pendôa, parava em frente a taberna do João Magalhães, perto da Adega e armazém. No tempo da vindima, o desgraçado do macho, fazia por vezes três viagens diárias de Galamares para Sintra, e volta, de sol a sol, com uma dorna cheia de uvas, brancas e tintas, mas mais tintas. Se o carroceiro se distraía, lá ia o pessoal deitar a mão e tirar um ou dois cachos de uva. A taberna do Sr. João Magalhães também conhecida pelo “Vintesinho”, foi desativada para passar a ser, já depois de 1965 (por aí) a garagem do patrão Raio, que até essa altura guardava os carros nos baixios do prédio do Sr. Vicente Soares, junto à Praça Velha, prédio que é hoje do meu amigo António Loureiro. Essa garagem foi também durante muito tempo garagem do Senhor José Américo, casado com a D. Rosa (pais do Zé Manuel Brandão, e da Fernandinha Brandão), famíliares da D. Laura Raio. O Senhor José Américo era embarcadiço, assim era o termo dessa época, para designar alguém tripulante da marinha mercante, estava muito tempo fora, e o Sr. José Américo, tinha um Mercedes (matateu) de matricula AF-18-10, cuja missão que lhe estava destinada, era, quando ele chegasse a Lisboa, o ir buscar ao navio, porque quando se desembarcava, o dispenseiro tinha que se desfazer de muitos produtos que se estragavam, por isso eram vendidos ao desbarato, tipo feijão, batata, arroz, e então havia sempre alguém designado para ir buscar o Sr. José Américo no “Matateu”. 

Porque é que vem para aqui chamado, o Matateu/carro? - Porque o meu amigo José Manuel Brandão, seu filho, sacava a chave do carro e no Verão lá ia o Matateu carregado de malta para os bailes na Ericeira, no Parque de Santa Marta. O único que tinha carta de condução, era o António Luís do Couto, já falecido, neto do Sr. Luís do Couto, era um grande maluco. O carro estava ali parado meses, para o tirar tínhamos que o trazer de empurrão, fazer pouco barulho, para não incomodar a família Soares, e também porque o carro não tinha bateria e não pegava, já estaria mesmo “nas lonas” e sem recuperação. Virava-se o Matateu para a Estrada do Macieira, e lá se punha a pegar de empurrão. Para a bateria carregar se tivesse recuperação, tinha que levar uma carga valente, no mínimo um dia. Não se enxergava um palmo à frente do nariz, mas lá íamos nós à sorte e à aventura. Chegámos a ir oito dentro do Matateu, não se via nada, e os outros carros também não nos viam a nós, o Tó Luís, punha o carro no meio da estrada, de Sintra até à Ericeira, e ouvíamos do bom e do melhor, curtas e compridas, saíam todas. Nunca houve acidentes, só porque nunca calhou. 

Outra clientela que procurava muito o Central, eram os recém casados, pareciam que tinham escrito na cara (casados de fresco), elas muito branquinhas, depois de uma noite mais mal dormida, muitas vinham ali pela primeira vez saber o que era aquela nova realidade. Os tempos eram outros, e embora não fosse a generalidade, casar virgem ainda era tradição. Eles todos de fatinho de segundo dia, todos engravatados, sapatinho novo, e meios coxos da trabalheira a que tinham sido sujeitos na noitada. Um fartote, para quem vê, com olhos malandros. Sintra foi, é, e sempre será a Capital do Romantismo, era um destino procurado, para jovens recém casados, e não só jovens. Não estando ao alcance de todas as bolsas, o Hotel Central era muito mais em conta que a maioria da concorrência dos hotéis da linha de Cascais, e de Lisboa. Não quero dizer com isto que este tipo de clientes fossem exclusivos do Central, o Neto e o Nunes também teriam naturalmente, só que como estavam mais lá para o canto, o “quadrilhum”, não se apercebia tanto. O patrão novo, ou seja o António de Jesus Raio Jr. não mexia uma palha, enquanto os pais foram vivos, foi sempre um bon vivant, dedicou-se sempre muito ao hóquei, foi um exímio executante, considerado naquele tempo o melhor do mundo, fez parte da equipa portuguesa que alcançou pela primeira vez esse título (em baixo)
Em cima Sidónio Serpa, Futebol Benfica, Emídio Pinto, Paço D’Arcos, Edgar Bragança Soares, H.C. Sintra, Jesus Correia, Paço d’Arcos, António Raio, H. C. Sintra, e Correia dos Santos, Paço d’Arcos. 


                                                   Ao lado, António Raio
Era um Senhor, culto, educado, brincalhão, e amigo do seu amigo. Passei muitas horas a ouvi-lo contar as suas histórias. Os mais velhos que eu, chamavam-lhe o Dr. Helénio Herrera, nome de um treinador chileno que veio treinar o Benfica e que tinha estado em Itália a treinar o Inter de Milão, porque o António Raio além de bom executante de hóquei, foi selecionador nacional, e poucas vezes terá perdido. 

Para fechar o capítulo do Central, dizer que tinha a vantagem sobre os outros hotéis de ter aquela excelente esplanada, como ainda hoje tem, e que ao principio se diferenciava da do Café Paris, porque as suas cadeiras eram de vime, muito confortáveis, depois mudaram para ferro, visto terem menor manutenção, e mais durabilidade.  

O HOTEL NUNES 


Estava situado, parcialmente, onde é hoje o Hotel Tivoli, este foi ocupar toda a área do Hotel Nunes mais o jardim que o envolvia, e até todo o casario do Beco do Forno, até à Rua da Pendôa, tendo apanhado a propriedades da D. Maria do Máximo, e todas as outras até ao Passeio dos Velhos. Seria talvez o Hotel mais pequeno, lembro-me ainda da mãe do Henrique, uma senhora já com idade avançada, e por morte desta o Hotel ficou sobre as ordens deste seu filho, que tinha um irmão cujo nome agora não me recordo, mas recordo o nome do filho, António Lopes Alves, que era mais velho que eu e andava também no Externato Académico de Sintra, era o mais graduado da Mocidade Portuguesa, e aos Sábados à tarde lá tínhamos nós aquele petisco de estar ali a fazer ordem unida (marchar), das três às cinco. 

Por morte da senhora, o negócio foi caindo, eles não estavam muito para ali virados, montaram um negócio em Mem Martins, café e bomba de gasolina, o Mira Serra, e o Hotel assim que puderam, viram-se livres dele. O Henrique tinha um daqueles namoros eternos com uma senhora que era ecónoma do Hospital da Santa Casa da Misericórdia, a D. Jeninha, não sei se são vivos ainda. Deste hotel, pouco ou nada tenho para contar, a não ser que foi um local que acolheu uns irmãos que vinham do Norte, primeiro veio para cá o mais velho, e foi mandando vir os mais novos, dali partiram para as suas vidas, sempre ligados à hotelaria. O mais velho, o António, ainda tem uma propriedade no Linhó, é viúvo da sua querida de sempre, a D. Alzira, uma senhora baixinha, bonita, que era empregada doméstica, mesmo ali ao lado, na casa da família Almeida e Brito. Para melhor informação, sobre este hotel, vale muito a pena consultar o blogue Rio das Maçãs, do meu amigo Pedro Macieira, que tem tudo escrito, e baseado em estudos, que eu não faço. Eu é mais, tipo quadrilheiro da Vila, e estar à coca com os acontecimentos da época, que ainda me recordo. 
http://riodasmacas.blogspot.com/2007/02/hotel-nunes.html

O HOTEL NETO 


Este hotel, para quem não o conheceu na sua pujança, e só o viu em ruínas, há-de pensar que aquilo era um pardieiro. Nada disso. Era uma unidade hoteleira com categoria, tinha uma boa restauração, um jardim atrás, que dá para a Rua de trás do Paço, tinha um bom salão de festas, cheguei a lá ir tocar várias vezes, sobretudo com o Conjunto Avelino Gil, não sei se alguma vez lá fui tocar com os Diamantes Negros. 

Este hotel era o preferido pela Federação Portuguesa de Futebol, e pelos clubes, Sporting e Benfica, mais o Sporting, já que era para cá que normalmente vinham nos anos cinquenta. Com esta clientela do futebol há várias peripécias. Quem leu o que escrevi sobre a Torre do Relógio, terá lido que aquele relógio já ouviu muita coisa! Uma dessas coisas foi uma “acusação” como lá foi dito, de um guarda redes do Sporting, que estagiou aqui com a equipa, num ano em que o Sporting tinha que ganhar ou pelo menos não perder no último jogo para ser campeão, esse jogo era com o Benfica na Luz, o Sporting perdeu e ele foi o “coveiro” dessa derrota, depois desculpou-se que ia mal dormido porque as badaladas do relógio não o deixavam dormir.

A Selecção Nacional também vinha para cá. Nomes como Carlos Gomes, Vasques, Travassos, Albano, Martins, Caldeira, Juca, e outros do Sporting, do Porto, Monteiro da Costa, Virgílio, Acúrsio (gr). Hernâni, do Benfica, Costa Pereira, Jacinto, Ângelo, Águas, José Augusto, Santana, Coluna e Cavém, ainda não havia o Eusébio, (esse nunca cá veio). Do Belenenses, os manos Matateu e Vicente, do Lusitano de Évora, havia um que era muito bom e foi selecionado várias vezes, chamava-se José Pedro. Atenção que o Lusitano de Évora era clube de primeira divisão e bom, o Sporting era raro lá passar, mesmo com os violinos. 

O jogador mais castiço, e uma das estrelas da companhia era o Matateu, que teve a pouca sorte de nascer cedo de mais, (hoje não havia dinheiro para lhe pagar), desde que ele soubesse gerir a carreira, ou tivesse quem o orientasse. 

Matateu era alcunha, porque o nome dele era Sebastião Lucas da Fonseca, se calhar os puristas hoje não deixavam o homem ter essa alcunha, era considerado racismo, quando veio de Moçambique para cá já trazia a alcunha, e não havia essas mariquices. Tudo se dava bem. Ainda o vi jogar algumas vezes, jogou até tarde, a última vez que o vi, foi na seleção nacional, num Portugal-Argentina, no Estádio Nacional, em 1961, tinha o Benfica acabado de ser campeão Europeu, e praticamente era o Benfica reforçado com o Matateu e mais um ou outro, os nossos levaram um baile, meu Deus!... “empatámos” esse jogo salvo erro 6-0, com os argentinos a dançar o tango quase a passo e os nossos a cheirar a bola. 

Nesse dia o Matateu foi pai, e nesse jogo, foi de longe o melhor dos portugueses, quiçá o melhor em campo, e deu o nome à sua filha de Argentina. O Matateu, era um homem que tinha uma certa dependência do álcool, no Belenenses, sei de pessoa muito ligada ao clube, que ele tinha ordem de no intervalo beber uma cervejinha fresca, mas, já se sabe que nestas coisas de estágios, ainda por cima da seleção, há sempre rigor, com o que se come e bebe, então o Matateu para não estar à mercê desses rigores do estágio da seleção, estava combinado com o Chico Romina, que era o barbeiro junto à mercearia do seu irmão António Batista/(Tonecas), e tinha lá sempre vinho para o Matateu, este ia lá fazer a barba, e de caminho bebia o seu copinho, ou copinhos. 

Era simpático o Sr. Matateu, passava pelos miúdos, sorria, e dava uma festa na cabeça. Tenho um episódio na primeira pessoa, com o Acúrsio Carrelo, guarda redes do Porto e da Selecção.  Uma vez que veio para cá estagiar com a seleção, eu e o meu amigo Augusto Pimenta de Sousa andávamos muito aos caracóis, levávamos para casa dele, e depois a mãe cozinhava aquilo para nós comermos, com os irmãos mais velhos incluídos. A miudagem andava sempre de volta dos craques. Um dia falámos nos caracóis, e o Acúrsio prometeu-nos uma bola de futebol se nós lhe arranjássemos uma caracolada, a caracolada foi para o Acúrsio e mais dois ou três, a bola é que nunca mais veio. Andámos a apanhar caracóis de empreitada, a D. Maria a fazê-los como só ela sabia fazer, e a bola ainda hoje estamos à espera dela. Dali já não pode vir, porque o homem já morreu. 

O Hotel Neto tinha umas figuras típicas, o Zézinho do Hotel, irmão da dona, assim mais ou menos como o menino frágil, mas uma boa esponja, um tipo fixe , alinhava com aquela malta velha, ia também aos passeios do Escalhabardo, mas ao fim do dia quem o queria ver era acampado na Taberna do Acácio. Havia lá um outro, criado de mesa, mas fazia parte da família, um galego, o Xé Maria, caçador e pescador, tinha um cão pequeno tipo fox terrier, um dia foi abordado pelo guarda da caça:
-Boa tarde! Boa tarde, xô guarda. Então o Sr. tem aí os seus documentos? 
-Tenho xim xenhor, tudo xertinho! 
-Então mostre lá a sua licença de caça.
-Oh xô guarda, está aqui a ouvir a gente. 
Procura, remexe, tira daqui e dali, até que aparece uma licença de caça com mais de cinco anos, caducada. 
-Isto está caducado! 
-Ai está? Eu tenho xempre tanto cuidado, olhe escapou. A licença de uso e porte de arma’ Xó um bocadinho, a mesma fita, tudo caducado. 
-O senhor vai ser autuado, não tem nada em dia. 
-Ai xim xõ guarda, olhe que eu xô muito cuidadoxo com estas coisas isto paxoume. 
-Pois sim, está-se a ver. Então e a licença do cão,e as vacinas? 
-Oh Xô guarda, essa tá mesmo aqui, tudo xertinho. 
-Então mostre cá. 

O mesmo teatro, quando apresenta os papéis do cão, tudo caducado. Lá vai o Xé Maria, para o posto. A minha mãe trabalhou no Hotel Netto, aí conheceu o Caínhas Pai, lá juntaram os trapinhos, no tempo da Segunda Grande Guerra, eu nasci em 1947, ainda havia o racionamento, e vim ao mundo para aumentar a família, e assim haver mais margem para produtos alimentares. 

O Hotel Neto depois passou para um senhor de Torres Vedras, o nome varreu-se-me. Foi ainda uns anos bons diretor do Hockey Clube de Sintra, tinha esposa e filha, muito bonitas, qualquer delas, a filha ainda andou a estudar no Externato Académico de Sintra. O negócio começou a decair, e com a perspetiva da construção do Tivoli, ele vendeu o recheio, (ainda lhe comprei uma cama de ferro muito bonita), e saíram de Sintra, perdi-lhes o rasto, era boa gente. 

Não sou do tempo do Hotel Costa, esteve sempre fechado, até ir para lá o Turismo, tinha lá um casal de caseiros, com a sua filha, a Nazaré. O pai amanhava umas hortas na Mata do Carago, donde vinham todos os produtos hortícolas, criavam galinhas e coelhos e um porquinho, para se governarem, Deviam passar um frio de morrer dentro daquele “mausoléu” sem aquecimento, e até duvido que tivessem luz.. 

As minhas origens, estão ligadas por parte do meu pai também a um Hotel, pois a minha avó paterna, veio da região do Cadaval (Rocha Forte), região hoje da Pera Rocha, trabalhar para o então designado Grande Hotel Vítor, aí conheceu o meu avô Zé Caetano dos Santos (Zé Borralho), e fizeram uma prole de oito filhos. É obra, bolas!... 

Hoje em Sintra está-se mais bem servido de hotéis, a oferta é boa, a procura também foi, mas o micróbio deu cabo disto tudo. 

Sintra, 24 de Julho de 2020 

Carlos José Paulo dos Santos