JORGE LEÃO
Como já alguém disse no passado,
poucas terras portuguesas terão sido tantas vezes nomeadas na literatura, como
Sintra. Desta bibliografia, por tão rica que é, podemos extrair uma outra, mais
especializada, em que é referido algo pelo qual Sintra é reconhecida há muitos
séculos: a celebridade das suas águas e das suas fontes.
Assim, e porque um artigo de
História Local deve sempre criar um avanço e não somente transcrever o que já
foi dito no passado, iremos, além de recordar alguns casos notáveis, relatar
dois casos especiais. Um por ser muito curioso e inédito na bibliografia
sintrense, e outro, por ser muito bizarro.
Século
XII – Uma fonte, os limões, etc.
A primeira, em termos
cronológicos, é a famosa carta que um cruzado inglês escreveu aquando da tomada
de Lisboa aos mouros, em 1147, que aponta em Sintra a existência de uma fonte
de águas de excepcional poder curativo. É a primeira, mas vai ser a última a
ser aqui tratada por ser um caso muito estranho. Continuemos.
Século
XVI – Góis e Camões
Damião de Góis dá-nos, no séc.
XVI, informação de como eram consideradas as águas e as fontes de Sintra, no
final do século XV:
D. Manuel veio «a Sintra no
verão, por ser um dos lugares da Europa mais frescos e alegres para qualquer
Rei (…), porque além dos bons ares que de si lança aquela serra, chamada pelos
antigos Promontório da Lua, há nela muita caça de veados, e outras alimárias, e
sobretudo muitas, e muito boas frutas de todo o género das que em toda a
Hispanha se podem encontrar e as melhores fontes de água, as mais frias de toda
a Estremadura …». (1)
Também neste século canta assim
Luís de Camões em Os Lusíadas:
E nas serras da Lua conhecidas /
Subjuga a fria Sintra o duro braço, / Sintra, onde as Náiades, escondidas / Nas
fontes, vão fugindo ao doce laço / Onde Amor as enreda brandamente, / Nas águas
acendendo fogo ardente.
Século
XVII – D. Sebastião e o mundo feminino
Este episódio passa-se na Quinta
da Penha Verde e além de ser muito curioso, parece ser uma estreia na
bibliografia sintrense já publicada. D. Francisco Manuel de Melo relata desta
forma a débil simpatia do Rei pelo sexo oposto:
«Dizia-se que o Rei em público e
na sua vida particular não era nada favorável ao trato com senhoras, e isto
ouvi da própria bôca de algumas dêle queixosas. Estando em Sintra, no verão,
entrou com toda a côrte na horta e jardim de D. João de Castro, então muito
celebrados pela sua frescura. Para vê-lo, algumas donzelas fidalgas tinham-se
metido num saguão, mostrando-se quando êle passou, sem fazer caso da
honestidade portuguesa. O Rei desgostou-se do encontro e, apontando, zangado,
para uma estátua menos recatada de uma fonte de mármore, disse: – «O que elas
querem é aquilo!». E repetiu a frase. Mas D. Duarte, sempre galante e excelente
príncipe, quis ser-lhes agradável, exclamando: – «Será de estranhar que as
flores queiram bem às fontes?».
Sei que estas duas frases ficaram
muito bem guardadas na memória de uma que as ouviu e mas repetiu a mim, porque
a memória das mulheres só é de bronze para não esquecer injúrias». (2)
Século
XIX – No tempo do romantismo
Naturalmente, neste século é
muito mais vasta a bibliografia em que Sintra é mencionada. Sobre as suas
fontes seguem-se estes dois exemplos vindos destes dois nomes maiores da
literatura portuguesa:
De Almeida Garrett, no Impronto
de Sintra, logo no início:
«Que ar tão suave se respira em
Sintra! / Que amenos prados, que gentis outeiros! / Que horizonte, que céu, que
estância amável! / Por entre esses esmaltes de verdura / Como é saudoso o
murmurar das fontes! / Parece quase ouvir que elas suspiram, / E a suspirar os
peitos nos convidam.»
E no poema Camões: Ó gemedoras fontes, ó suspiros / De namoradas
selvas, brandas veigas, / Verdes outeiros, gigantescas serras! / Não vos verei
eu mais, delícias d´alma? ».
De Eça de Queirós:
«Vi-a numa noite doce / Em que o
Rouxinol cantava: / E todo o céu se estrelava / Luminoso pavilhão: / Era Sintra
! Sinto ainda; / O doce correr das fontes / E a sombra das nossas frontes / Das
árvores do Ramalhão.».
Século
XX
De Félix Alves Pereira:
«Gemedoras fontes, chama Garrett
às de Sintra, de que ele se encantou no seu “Camões”…Esta, porém, de Santa
Eufémia da Serra, tão apoucada de águas e de sombras, se é gemedora, como as
suas poéticas e umbrosas companheiras, não o é pelo seu enlevo e lirismo, mas
pelo desamparo e descrédito em que hoje se encontra.»
Voltando
ao séc. XII
Lembra-se o meu caro leitor que
tínhamos deixado uma epístola, a primeira referência às fontes de Sintra, do
século XII, por analisar. Fazemo-lo porque realmente merece uns minutos da
nossa atenção.
Um cruzado inglês, em 1147,
relata ao vivo a campanha comandada por D. Afonso Henriques na conquista de
Lisboa e refere Sintra nestes termos:
«Fica-lhe próximo o castelo de
Sintra, à distância de quási oito milhas, no qual há uma fonte puríssima, cujas
águas, a quem as bebe, dizem, abrandam a tosse e a tisica; por isso quando os
naturais dali ouvem tossir alguém, logo depreendem que é um estranho. Também
tem limões…
Adivinha o meu caro leitor qual fonte seria
essa? será difícil porque o relator não lhe menciona o nome, nem nos dá
qualquer pista que nos permita identifica-la. Pela historiografia existente,
tem-se apontado para uma fonte. A fonte de Santa Eufémia da Serra. Nesta direcção, já aproaram alguns ilustres e
principais estudiosos destes assuntos: Félix Alves Pereira (1931), Francisco
Gonçalves (1941), José Cardim Ribeiro (1983). Não é estranho pois nos primeiros
documentos que nos surgem, a carga simbólica relativa à água e à fonte de Santa
Eufémia é tão forte que tudo nos pode fazer suspeitar que seja esta a fonte
mencionada pelo tal cruzado. Mas não podemos ter a certeza…
No entanto, mais peremptórias são
as instituições. Curiosamente, as principais envolvidas no caso, não têm
dúvidas. É a fonte de Santa Eufémia da Serra de Sintra.
Lê-se, escrito pela Direção-Geral
do Património Cultural:
«Sem informações durante a Alta
Idade Média, só em 1147 a fonte de Santa Eufémia é referida documentalmente,
pelo cruzado R. que acompanhou as tropas cruzadas na conquista da cidade de
Lisboa (…). A circunstância de as suas águas possuírem poderes curativos, em
particular problemas de tosse, levou a que, no século XIII, se tivesse
edificado a ermida…».
Também a Câmara Municipal de
Sintra, através da revista Tritão:
«Esta Ermida (Santa Eufémia)
surge associada a um complexo termal bastante antigo que lhe fica muito
próximo. Já o cruzado Osberno referia aqui a existência de uma fonte de águas
com singulares qualidades terapêuticas.»
Também a recente Sintria
Monumenta Historica descreve tecnicamente a fonte e a sua sala de banhos. (3)
E conjuntamente, a Paróquia e a
empresa Parques de Sintra – Monte da Lua, através da placa colocada no caminho
para a ermida:
«As referências às capacidades
curativas da fonte de água de Santa Eufémia remontam a 1147, pelo cruzado
Osberno».
O
caso bizarro
Então sucede que temos uma fonte
histórica, considerada uma “mãe das fontes de Sintra”, devido à sua fama, à sua
bagagem etnográfica, e talvez por ser a mais velha pelo nosso conhecimento, na
terra das fontes, com uma curiosíssima e antiquíssima sala de banhos agregada,
mas seca e abandonada. Abandonada até à vergonha. Uma nascente que tudo indica
estar na génese da ocupação humana do local, dos primeiros de Sintra.
Resumindo, para quem não conhece
o assunto:
A fonte e sala de banhos de Santa
Eufémia ficam 200 metros abaixo da ermida; o fornecimento de água pelos SMAS
não chega à ermida; cá em baixo, por volta dos anos 70, alguém se lembrou de
desviar a água da fonte para um poço, construído ao lado para o efeito, e assim
elevá-la com um motor eléctrico para a ermida; por isso, a fonte nunca mais
deitou água pela sua bica; a ermida precisa da água; a empresa Parques de
Sintra-Monte da Lua tem instalações a 100 metros da ermida; foi pedido a esta
empresa que estendesse um cano e fornecesse, através das suas instalações, água
do SMAS à ermida para que esta libertasse a água da fonte; Em 2019, a PSML
recusa-se a ajudar nesta matéria, estendendo os 100 metros de cano, embora já
lá tenha tido um à vista, quando precisou de efectuar trabalhos no local, no
âmbito de um acordo que lhe permite ter acesso automóvel exclusivo no
tradicional caminho entre a ermida e a fonte.
“Esta obra mandou fazer à sua
custa o Capº Francisco
Lopes de Azevedo no ano de 1758 e
esta é a água
milagrosa da Srª Stª Eufémia e
ali está a casa donde se
tomam os banhos”
No Japão medieval, causado pela
miséria, havia um costume bastante cruel. Os velhos, ao atingir certa idade,
improdutivos, eram levados para uma montanha para aí morrerem ao frio e à fome.
Este assunto, depois de um romance, deu um excelente filme da cinematografia
japonesa chamado «Balada de Narayama». Esta prática já tinha sido narrada por
Pigafetta no seu relato da viagem de Fernão de Magalhães, em que participou, e
a ouviu em 1521.
Não é o caso de defender a
geminação de Sintra com Narayama, baseada no costume de deixar velhinhas mães
morrer à fome e ao frio na montanha. Até porque no Japão esse costume já não se
pratica. Mas parece-nos razoável alertar a Câmara Municipal de Sintra para a
estranha situação da vetusta fonte de Santa Eufémia. Possivelmente no sentido
de sensibilizar a empresa PSML, sobretudo junto da Presidente do Conselho de
Administração, que já abordou o assunto, infelizmente sem resultados. Acontece
que esta empresa é “tetra campeã mundial de conservação e restauro do
património” e tem instalações a 100 metros da ermida. Ermida já conhecida no
séc. XIII e que no século XXI ainda não tem água potável; que rouba a água da
sua venerada e secular fonte, e consome dessa água não controlada pelos SMAS.
Isto a 100 metros desta empresa pública que cuida da maior parte do nosso
património histórico e que lhe podia fornecer as duas gotas de água de que
esporadicamente necessita.
O primeiro texto literário sobre
as águas e as fontes de Sintra, do século XII, faz-nos então confrontar com
este caso bizarro: temos uma vetusta e primitiva fonte de Sintra, talvez a mais
antiga documentalmente, absurdamente abandonada e seca sem necessidade, na
terra das águas e das fontes, património mundial.
Insolitamente, são alguns
moradores de São Pedro de Penaferrim que sabem onde está guardada a lápide
(29X46cm) que assinala o restauro da fonte após o terramoto de 1755, datada de
1758, desenhada por José Alfredo da Costa Azevedo em 1957 e que por pouco não
se perdeu como as outras que lá existiam. Pactuam no sentido de entregar a
lápide quando alguma ou algumas das instituições que podem ou devem intervir no
assunto, ajudem a reabilitar a fonte. Nomeadamente, a Paróquia de São Pedro de
Penaferrim, a Câmara Municipal de Sintra ou, não por obrigação, mas por absoluta
consciência, a PSML, empresa pública que gere, ao que se sabe bem, grande parte
do nosso património histórico e cultural.
Este texto foi acabado em Março
de 2022, quando se celebrou o “Mês da Água” no Concelho de Sintra.
(1) – Crónica de D. Manuel I. Damião de Gois
(2) – D. Teodósio, Duque de
Bragança. D. Francisco Manuel de Melo
(3) – Recentemente, a Câmara
Municipal de Sintra publicou a obra Sintria Monumenta Historica, onde, como não
podia deixar de ser, vem referida a fonte e a sua sala de banhos. Porém, este
assunto prestou-se a alguma confusão que vamos aqui esclarecer. O assunto das
lápides desaparecidas da fonte de Santa Eufémia tem-se baseado nos desenhos de
José Alfredo da Costa Azevedo. Mas como não há ninguém que não erre, o nosso
José Alfredo, ao desenhar a data da lápide de 1758, desenhou 1738. A prova está
na fotografia da lápide, que publicamos aqui pela primeira vez. Não só por
isso, mas também por isso, temos aqui uma série de interpretações erradas. Em
1738 não se passa nada. Em 1758, muito provavelmente devido ao terramoto de
1755, passam-se duas coisas distintas: o capitão Francisco Lopes de Azevedo
restaura a fonte e coloca lá uma lápide que ainda hoje temos. O mesmo sucedeu
com a fonte da Sabuga, que ostenta uma lápide gémea de 1757; nesse mesmo ano, o
prior de São Pedro, António de Sousa Seixas, na sua resposta às Memórias
Paroquiais, refere que a fonte é pertença da ermida e que nas suas águas se vêm
banhar os enfermos. A data da construção da sala de banhos, não a sabemos. Sabemos
que a lápide mais antiga que lá existia era de 1723. Até este assunto das
lápides é representativo da incúria a que estranhamente a fonte está sujeita.
Entre 1931 e 1957, desapareceram
duas lápides (1723 e 1807). Daí aos nossos dias, iam desaparecendo as outras
duas (1758 e 1845). Salvou-se esta de 1758, que está escondida, graças à
sensibilidade de alguém da população.