quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

António Tavares- O esteticismo como motor narrativo

MIGUEL REAL

O romance de estreia de António Tavares, As Palavras que me Deverão Guiar um Dia, finalista do Prémio Leya 2013, anuncia um autor raro no campo da filosofia da construção romanesca, privilegiando menos o realismo (teoria hoje dominante no romance português) e mais uma visão estética na composição da narrativa. O autor foi igualmente galardoado com uma menção honrosa no Prémio Literário Alves Redol de 2013 com o romance O Tempo Adormeceu sob o Sol da Tarde, ainda não publicado (cf. “António Tavares. Vereador da memória”, de Luís Ricardo Duarte, “JL” de 3/9/14). João Céu e Silva não hesitou em classificar este romance como “um dos livros mais inovadores que esta rentrée literária de 2014 deverá oferecer” (QI, “Diário de Notícias” de 6/9/14)


Poucos são os romancistas estetas hoje. Porventura Vasco Graça Moura, José Sasportes, António Mega Ferreira e alguns textos de Hélia Correia, sobretudo Adoecer, a que se junta agora, com justiça, o nome de António Tavares. Esteta é o autor que, na composição dos seus textos, privilegia as referências culturais (história da música, da literatura, da pintura, da ciência…) às referências da realidade social imediata e exterior (o realismo). O seu intento é continuar, prolongar com subtileza, o longo entrelaçar milenário da história da cultura, evidenciando que as ideias, as imagens, os sons estéticos e culturais criados pelo homem modelam, ou podem modelar, a realidade exterior, agindo nesta de um modo transformador e, até, revolucionário, perfazendo, assim, a construção de um mundo do espírito paralelo ao mundo social e político. Esteta é o autor que vê o mundo através dos óculos históricos da cultura, da arte, da ciência, aquele que para toda a situação existencial encontra o seu modelo e motor no mundo paralelo da cultura. Neste sentido, esteta é todo o autor que, mais do que se inspirar na realidade exterior, se inspira no passado histórico da sua especialidade artística. No caso de António Tavares, na história da literatura e do pensamento europeus. Só no “Prólogo” e no primeiro capítulo, constituído por 7 páginas, o autor enuncia mais de doze autores, evidenciando assim o esteticismo do romance.
António Tavares confessou a Gonçalo F. Santos, da revista Time Out de 27 do passado mês de Agosto, que as personagens dos seus romances têm equivalências literárias, “Neca, por exemplo, é tão pontual como Kant”. Com efeito, o narrador de As Palavras que me Deverão Guiar um Dia vai assentando num caderno, ao longo da passagem da puberdade para a juventude, as reflexões pessoais sobre os acontecimentos havidos no seu bairro da cidade de Moçâmedes (Angola), registando um paralelismo harmónico entre os acontecimentos do bairro e situações semelhantes descritas pelos autores em romances e ensaios. Consoante o narrador vai crescendo e bairro vai mudando ao longo da década de sessenta (passagem de moradias para prédios de apartamentos, encerramento da mercearia e abertura de um supermercado, morte de habitantes, aparecimento de novos modelos de carros, emergência de novos costumes, rodagem de um filme com cenas ostensivas de sexo…), vai registando no caderno, posteriormente passadas a romance, as “palavras”, isto é, as cenas ou personagens de romances e as mensagens de ensaios que o “deverão guiar um dia”. A realidade conforma-se com a literatura e o texto, constituído por palavras, evidencia-se como um outro e novo mundo, tão ou mais relevante que o primeiro: “Se as palavras nomeiam as coisas – que o mesmo é dizer, este meu mundo – mas também dão existência à realidade, aqui fica ela [no conteúdo do romance], toda a minha realidade” (p. 9). Não admira que o romance termine com o levantamento de uma biblioteca numa velha carrinha da Gulbenkian e, depois, com a oferta de todos os livros aos habitantes do bairro. Ficou apenas um: o caderno, que se transformará no romance ora publicado, isto é, na realidade verdadeiramente pensada e vivida.
Assim, o esteticismo de As Palavras que me Deverão Guiar um Dia reside justamente na conformidade da descrição da realidade do bairro e das personagens com trechos de romances clássicos ou de pensamento de ensaios famosos. Por exemplo, nas primeiras partes do romance, o narrador tem por hábito subir à copa de uma árvore e daí contemplar as pessoas, exactamente como a personagem Cosimo de O Barão Trepador, de Calvino. De facto, este processo de identificação de situações narradas com trechos literários ou filosóficos constitui-se como motor narrativo de todo o romance e confere, de certo modo, um tom melancólico à narração. A melancolia é expressa, não através da análise psicológica das personagens, mas através da sucessão contínua de acontecimentos que, sob a impotência do narrador, que desejaria contemplar um mundo mais estável do alto da árvore, alteram profundamente a face do bairro. Da copa da árvore, o narrador observa a outra personagem permanente, Luísa, a menina sem mãe que chupa limões, habitante num ferro-velho com o pai e as três irmãs, que partirão; no final o pai também partirá, entregando a sucataria ao narrador. Este, já na década de 1970, irá à guerra, combaterá, sofrerá um ano de tortura preso a uma árvore e, no final, regressará para abraçar a menina, agora rapariga, e viver com ela.
Das nádegas lésbicas da São modista aos prédios do Ivo mudo, da menina da mercearia sujeita a violência doméstica e depois fugida com o charmoso Cunha Mendes à dona Alice, mulher do copofónico Santiago e futura amante da São modista , do puritano e oportunista Amadeu à repressão moral do padre Neves, do Neca pontual, carregado de remorsos, ao congolês enfermeiro Tyrone, do Américo preso pela vida a uma máquina à Aninhas deprimida finha do defunto senhor Leal, da Dona Vitória carnal e adúltera ao marido ferroviário ausente, do Bill cineasta à incandescente Mila actriz… é, de facto, o  mundo a passar debaixo da árvore do narrador, levantada entre um montão de tralha de sucateiro.
Por fim, tudo passou, só as palavras ficaram como monumentos imorredoiros.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

O naufrágio da Nau Nossa Senhora da Conceição em 1621

ANDRÉ MANIQUE



A Nau do séc. XVII e o seu naufrágio em 1621 (muitas vezes confundido com o da Nau do mesmo nome, naufragada em 1651 em Buarcos, na Figueira da Foz ou com o da naveta ao largo da Praia das Maçãs, em 1637), entre a Ericeira e o Cabo da Roca, tem levantado múltiplas questões ao longo dos últimos três séculos. Primeiro, e logo após o naufrágio, a da responsabilidade do então general da armada D. António de Ataíde, acusado de não ter acorrido em seu socorro logo que se souberam as notícias de uma armada de corsários turco-argelinos nas imediações. Por fim, e já mais recentemente, a localização do naufrágio, bastante procurado por equipas de caçadores de tesouros.
Esta Nau, de 22 peças de artilharia, foi a vigésima primeira a ser baptizada em honra de Nossa Senhora da Conceição.
Comandada por Jerónimo Correia Peixoto, largou de Goa no dia 1 de Março de 1621, com destino a Lisboa, juntamente com a Nau Nossa Senhora da Penha de França. Transportando pimenta, pedrarias e sedas, e abarrotada de passageiros com suas respectivas bagagens tornou-se uma presa apetecível, não só durante o seu percurso, como também pelos actuais caçadores de tesouros.
As duas naus suportaram durante mais de um mês um fortíssimo temporal ao largo do Cabo da Boa Esperança, acabando por se perderem de vista. Continuando sozinha, a Nossa Senhora da Conceição fez escala na ilha de Santa Helena, onde viria a morrer de acidente Jerónimo Correia Peixoto. O comando da nau foi entregue a D. Luís de Sousa, que a dirigiu para os Açores. Ao largo do Faial voltou a encontrar forte temporal, sendo necessário aportar na Terceira. Aqui foi-lhes alertado, por duas caravelas que traziam notícias do reino, para o perigo de encontro com uma frota de piratas argelinos, que se sabia rumarem de Argel em direcção à costa portuguesa.
Com apenas 14 artilheiros e 6 soldados e com poucos tripulantes para pegarem em armas, D. Luís de Sousa pede ao governador da Terceira alguns soldados para ajudarem a engrossar a guarnição da sua Nau. O pedido foi aceite, porém logo se constatou que os embarcados ou eram bastante idosos, ou os mais novos, não tinham qualquer experiência. Ainda assim foi então decidido rumar até à costa portuguesa pelo norte das ilhas Berlengas, onde uma esquadra de Guarda-Costas de D. António de Ataíde a escoltaria até à barra do Tejo.
As Berlengas são avistadas a dia 8 de Outubro. Durante a madrugada avistam-se alguns vultos de navios no meio da neblina e a ouvem-se vozes, o que fez os da Nau de D. Luís de Sousa julgarem tratar-se da esquadra de D. António de Ataíde. Mas o amanhecer logo veio revelar o mais temido. A Nossa Senhora da Conceição encontrava-se rodeada de cerca de 17 naus e patachos Argelinos, cada um deles com cerca de 30 a 40 peças de artilharia. Comandados por Tábaco-Arrais, esta frota já havia capturado dias antes, ao largo do cabo Espichel, 19 navios ingleses. A nau da Índia, carregada e solitária, mostrava-se assim uma presa fácil. Forçado a navegar em direcção a terra, D. Luís de Sousa prepara-se no entanto para o combate. Sendo mais velozes, os navios de Tábaco-Arrais logo se aproximam, disparando um tiro de salva, no intuito de deter o navio português. Ao responder com um tiro de bala, começou um prolongado combate de cerca de onze horas, no qual a Nossa Senhora da Conceição sofreu vários bombardeamentos de través, ficando bastante danificada e com inúmeros feridos. Um desses feridos foi o próprio D. Luís de Sousa, que foi obrigado a comandar as operações deitado sobre um caixote. Os argelinos, no entanto, também sofreram várias perdas. A artilharia portuguesa era de maior calibre, provocando graves danos no casco e aparelho dos navios argelinos, bem como numerosos mortos e feridos entre os mesmos. Um dos navios argelinos mais atingidos, estando a meter água, resolve abordar o navio português, travando-se um duro combate no castelo da proa. Amontoados em tão reduzido espaço os argelinos tornam-se presa fácil. Um deles, mais atrevido, resolve cortar os cabos de manobra das velas para tentar reduzir a velocidade da nau. Por engano, corta os cabos errados, fazendo cair estrondosamente a verga da Gávea sobre o castelo, matando grande número de argelinos. Os restantes, que não tiveram tempo de se atirar ao mar, foram mortos pelos portugueses
Com os seus navios bastante danificados os argelinos acabam por desistir da perseguição, afastando-se com o cair da noite para oeste. A Nossa Senhora da Conceição continuou a navegar em direcção à costa, bastante danificada. Mais de 30 mortos e feridos e dos 14 artilheiros, apenas 1 sobrevivera.
A 10 de Outubro é avistada a Ericeira. D. Luís de Sousa decide então aí fundear, com o objectivo de pedir reforços para o caso de um novo ataque argelino. Foi-lhe proibido fundear com o argumento que não era possível dar abrigo nessa época do ano e aconselhado a dirigir-se para o largo, onde a esquadra de D. António de Ataíde o aguardava. Foi-lhe também recusado o pedido de recolha dos feridos, mulheres e crianças, por terem ordem de não atracar à nau. D. Luís de Sousa não teve outra alternativa se não abandonar o intento e dirigir-se para o largo, na esperança de encontrar a frota do capitão da armada de costa. Sem o habitual vento de feição de noroeste, e incapaz de navegar mais rapidamente para sul, a nau volta a encontrar-se com a armada de Arrais no dia 11 de Outubro, entre a Ericeira e o Cabo da Roca. Da esquadra de D. António de Ataíde nem sinal. 
Depois de pesados bombardeamentos por parte da frota argelina e uma abordagem do navio, a Nossa Senhora da Conceição acabaria por incendiar-se, afundando-se com toda a riqueza que trazia da Índia. Os portugueses que se salvaram foram feitos cativos e levados para Argel, entre os quais, o heroico capitão D. Luís de Sousa, que viria a falecer dos ferimentos causados três dias depois. Alguns dos cativos conseguiram voltar ao reino após pagamento do resgate. Entre estes constava João Carvalho Mascarenhas, libertado em 1625 ou 1626, e que viria a deixar o seu testemunho na sua Memorável Relação da Perda da Nau Conceição. Esta narrativa relata os eventos que estiveram relacionados com o naufrágio da Nossa Senhora da Conceição, bem como o seu período de cativeiro em Argel.
A D. António de Ataíde foi imputada a culpa da perda da nau da Índia e preso no Limoeiro. O processo arrastou-se por três anos. Como defesa, D. António de Ataíde justificou a incapacidade de poder socorrer a Nau, como era seu dever, devido às condições de navegação que se faziam sentir na altura do infortúnio, tentando no entanto perseguir a armada argelina no mar alto, porém sem sucesso. Acabaria por ser considerado inocente.

BELLO, Mónica. A Costa dos Tesouros, Temas e Debates, 2006.
PEREIRA, José António Rodrigues. Grandes Naufrágios Portugueses (1194-1991), A Esfera dos Livros, 2013.
DOMINGUES, F.C ; GERREIRO, Inácio. D. António de Ataíde, capitão-mor da armada da Índia de 1611 in A Abertura do Mundo, Estudos de História dos Descobrimentos Europeus, Vol. II, Editorial Presença, 1987.
MASCARENHAS, Joam Carvalho. Memoravel Relaçam da Perda da Nau Conçeicam, Lisboa, 1627.
 

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

"Nem tirou o capacete"

CARLOS CAMACHO

Tenho saudades do Tó Pê.

Só o costumava ver duas ou três vezes por ano, quando cá vinha cheio de saudades das coisas simples que Fontanelas tem. Revia a família, os amigos e “carregava baterias”. Quando chegava, independentemente da hora, tinha um ritual há tantos anos quantos estava no estrangeiro. Antes de ir para casa da mãe, ia regalar as vistas e tomar um banho de maresia e de mar à Praia da Aguda. Tinha, obrigatoriamente, que sentir a Praia da Aguda.

Não era mau diabo, antes pelo contrário. Se existia alguém com valores morais, pessoais e filosóficos, era o Tó Pê.

O Tó Pê nasceu em Fontanelas no início da década de 60 e foi um dos símbolos dessa geração. Faleceu prematuramente muito novo, na casa onde cresceu, em casa da mãe. António Pedro Borlido, de alcunha o Tó Pê, depressa seguiu as pisadas do seu falecido pai na descoberta do mundo além-fronteiras. Do avô António Pedreiro herdou a veia comunista, por si próprio desenvolveu a contestação, a irreverência, o sentido revolucionário, o que lhe valeu alguns dissabores na sociedade Fontanelense, à data ainda muito pouco tolerante em relação à diferença. Numa aldeia como Fontanelas, sob muitos aspectos fechada, o aconchego a alegados valores morais, religiosos e bafientos “bons costumes”, toldam a visão e escamoteiam a evolução, inevitável e irreversível.

Tinha vontade de ser diferente, de fazer o que as suas crenças lhe ditavam, de ter a liberdade que achava que devia ter. O Tó Pê era único. Numas das nossas últimas conversas, no bar do Janeca em 2007, o Tó Pê estava feliz, tinha os filhos na boa, a estudar e a trabalhar, na sua vida pessoal fazia o que queria, estava ligado à dança e andava a aprender a tocar uma espécie de acordeão de madeira. Também participava em associações culturais, fazia work-shops de dança, fazia o que realmente gostava: interagir, brincar, ensinar e gostar de pessoas.

O Tó Pê não era o típico emigrante empurrado pela vontade de vencer e ter condições financeiras mais favoráveis. Era aventureiro. Gostava de ser livre e correr mundo, apenas pelo prazer de conhecer novas pessoas, novas culturas, novas gentes.

O Tó Pê sempre foi um “lobo solitário”. Sempre fez o que lhe ia na alma e sem “dar cavaco” a ninguém. Na sua juventude e antes de ir para fora, sempre andou sozinho, avesso ao sentido de manada, à “Maria-vai-com-as-outras” que caracteriza a maior parte de todos nós, a nossa sociedade. A preocupação da Sra. Manuela, sua mãe, nunca o impediu de “correr mundo” e estar temporadas fora, a partir dos 17 ou 18 anos.

O Tó Pê tinha piada. Arranjava uma treta qualquer, uma conversa qualquer que todos sabíamos ser treta para nos rirmos. Fazia parte da sua forma de estar e de ser. Qualquer conversa em grupo tinha, invariavelmente, que meter risota e boa disposição. A palavra que caracterizava mesmo o Tó Pê era “alegria”. Era uma pessoa alegre, apesar de ter sofrido algumas agruras ao longo da sua vida.

Gostava de contar anedotas e mentiras teatrais, daquelas que toda agente sabia que era mentira, mas contadas com arte e engenho. Gostava de rir e fazer rir.

Certa vez chegou ao pé da malta na sua moto, todo lampeiro, e arranjou logo uma mentira, na hora.

Começou por dizer que tinha conhecido uma rapariga que andava de mota na Praia das Maçãs. Conversa mete conversa, era de Sintra, tinha 20 anos, não tinha namorado, uma coisa leva a outra e acabaram na praia, “confortavelmente”.

Epá, deu caldinho?” perguntou o Varetas.

Deu pois” respondeu o Tó Pê.

E a gaja, era bonita?” perguntou o Coutinho?

Responde o Tó Pê: “Epá, nem reparei. Não tirou o capacete...”

 Boa, Tó Pê. Enquanto cá estiveste, viveste em pleno...

domingo, 7 de dezembro de 2014

De volta à ilha- um conto de Filomena Marona Beja

FILOMENA MARONA BEJA


     Logo que completou dezoito anos, Anthony Botelho ficou sujeito a todas as obrigações de um norte-americano.

     Em cima da cómoda da Avó, está ainda uma fotografia dessa ocasião que o mostra entre amigos. Cantavam: Happy birthday to you...

     Nascera ali, na Ilha. E chegara aos vinte e dois meses a Lynn, Massachusetts.

     Foi à escola. Primary and middle school. Depois, fez um trimestre na Vocational High School. E desistiu.

     Como gostava de aceres quase tanto quanto do mar, propôs-se para guarda na reserva de Lynn Woods.

     Logo, porém, foi chamado para o Exército.  Estava-se em 2001. Junho de 2001.

     Em Dezembro, com os votos de Merry Cristhmas, a Avó recebeu outra fotografia. Tony era agora um soltado de cabelo cortado rente.

     A Avó chorou. E foi entregar o retrato ao Senhor Santo Cristo, pedindo: “Que ele volte para casa depressa e salvo.”


     À Ilha só voltaria depois do Afeganistão. Desmobilizado e com a esperança de se ir curando dos males da guerra.


     O boné!

     Levava-o uma rabanada de vento. Vento de sudoeste que se levantara ao largo e começava a virara as pranchas de windsurf.

     A pala do boné, em forma de telha, foi encaixar nas raízes de um metrosídero. Tony correu para o apanhar.

     Apanhou.

     Voltou a sentar-se na beira do muro. Acendeu um, dois cigarros.

     Tinha-se-lhe acabado o tabaco americano, e agora fumava maços de Estrela.


     Para a Avó, Tony era ainda um rapazito.

     Quando a Fábrica do Peixe apitava, às oito da manhã, ela entreabria a porta do quarto. Entrava.

     - Que Deus te abençoe e dê um bom dia, Tony.

     Trazia-lhe café com leite, bolo lêvedo, compota de araçá.

     Perguntava, às vezes, como fora no Afeganistão. Dormia vestido? E comer, comia enquanto disparava? Custara-lhe muito a passar aquele tempo?

     Não respondia.

     Ainda em Lynn, a Mãe também quisera saber dos combates. Das emboscadas. Do zigzaguear, mochila às costas e arma na mão, pelos trilhos das montanhas.

     O Pai nunca mostrara interesse pelo assunto. Tal como Tony, cumprira serviço militar obrigatório. Fora mobilizado e fizera uma comissão de dois anos, na Guiné. Sabia o que era a guerra.

     Acabava o bolo. Punha o tabuleiro ao lado da cama, tornava a adormecer.

     Dormia até tarde, almoçava e saía. Passava as tardes sentado no quebra-mar.

    

     Ali estava ele, agora.

     Vento cada vez mais forte. Os garajaus à procura de abrigo, em terra.

     A força das correntes arrastava para Sul os bocados das pranchas de surf. Ramos de arbustos. Destroços de cadeiras das esplanadas.

     Diante do mar, Tony lembrava-se do leito quase seco do rio Kaboul. Pelas margens, homens de albornoz arregaçado fazendo as necessidades. Limpando o rabo a um calhau.

     Repulsa.

     Depois, a progressão para Kandahar. Altitude, aridez.

     Quem me dera Lynn Woods”, pensava ao princípio. Depois, deixou de pensar.

     Atravessavam povoações. Dir-se-iam desertas quase todas. Revistavam as casas e davam com alguns velhos que lhes ofereciam os cachimbos.

     As mulheres e as raparigas invisíveis. Escondidas.

     As recomendações do Comando eram: “Não olhem!... Não toquem nestas mulheres!”. “O mundo delas não é o vosso!”.

     Abatessem-nas a tiro. Mas não lhes tocassem.

     “Devem ignorá-las... Têm de as ignorar!”


     Não ignorava.

     Desejava.

     Desejou até se esvair, esquecendo que tinha pés e pernas. Cintura. Olhos, boca.


     Um grupo de raparigas atravessou a rua. Uma excursão.

     Vinham quase todas de calções, duas ou três de saia. O vento trespassava-lhes as blusas. Desalinhava-lhes o cabelo.

     Falavam português. No entanto, Tony mal as entendia. Que pronúncia aquela, tão diferente da toada das Ilhas?

     Lisboa! E gente de Lisboa, era rara no Massachusetts, onde ele quase sempre vivera.

     Passaram por ele as raparigas, sem o abalar. Continuaram, sob as copas dos metrosíderos.


     Quisesse o Senhor Santo Cristo que tu escolhesses noiva aqui, na Ilha!”, pedia a Avó.


     E Tony poderia ter escolhido quem quisesse. Agradava a todas.

     De facto, era atraente e sabia-se que fora um bom soldado. Herói. Embora não se deixasse de admitir algum exagero.

     Por isso elas esmeravam-se. Umas exibindo virtude, outras atrevimento.

     Se alguma o conquistasse, segui-lo-ia no regresso a Lynn. Missis Botelho. Com direito a tudo o que de bom havia na América.

     E seria assim tão bom o que lá havia? Nas Ilhas dizia-se que sim. Melhor que no Brasil. Ou Canadá.

     Parecia no entanto que nenhuma mulher, solteira ou casada, seduzia Anthony Botelho.


     - Diga-me...

     Uma das excursionistas de Lisboa desertara do grupo. Voltara atrás e perguntava:

     -...não se pode descer por aqui, até lá abaixo?

     Descer entre rochas, até à nesga de areia escura deixada pelo mar?!

     Tony pousou o cigarro na borda do muro e levantou-se.

     Havia um trilho, sim senhora. Podia-se descer.

     -...mas olhe que tem perigo.

     - Por onde é?

     Tony apontou.

     Ela começou a descer. Voava-lhe a saia, escorregavam-lhe as sandálias. Desequilibrava-se.

     - Espere aí, miss!...

     Foi ajudá-la.


     Os dois de pedra em pedra. Olhos baixos. Ele a dizer-lhe onde havia de pôr os pés. A dar-lhe a mão.

     - E pronto!... Cá estamos.

     Perguntou-lhe o nome.

     Xana.


     O mar agitado, ao largo. E quase manso, na borda da areia.

     Xana descalçou-se. Agarrou nas pontas da saia e entrou na água. Estava fria, picava-lhe a planta dos pés, salpicava-lhe as pernas. E uma onda mais forte molhou-a acima dos joelhos.

     Então, veio para junto de um penedo e despiu-se.

     Tony estava sentado no chão. Viu-a prender a roupa com seixos. Ir nua para o mar.

     - É tão bom... Tão bom!

     Virou-se para ele. A água pelo meio das coxas. Mamilos arrepiados, o escuro de entre pernas em realce.

     - Venha! – chamou.


     Desembaraçou-se das sapatilhas. Tshirt, jeans, boxers.

     Foi até ela e agarrou-a pelo cabelo. Beijou-a, fazendo-lhe sentir a barba, a língua, os dentes. Toda a dureza do seu corpo.

     Depois levou-lhe a cabeça até à água. Fê-la dobrar-se. Mergulhar.

     Ela debatia-se. Debateu-se. Ainda levantou os braços.

     Tony não cedeu.

     Quando a sentiu inerte, enlaçou-a contra si. Nadou para o largo.


     Levou-os a corrente Sul.

     A invencível corrente que passa entre as Ilhas. E arrasta para a costa de África os restos de todos os naufrágios.


Filomena Marona Beja

Dezembro/ 2014.