quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

António Tavares- O esteticismo como motor narrativo

MIGUEL REAL

O romance de estreia de António Tavares, As Palavras que me Deverão Guiar um Dia, finalista do Prémio Leya 2013, anuncia um autor raro no campo da filosofia da construção romanesca, privilegiando menos o realismo (teoria hoje dominante no romance português) e mais uma visão estética na composição da narrativa. O autor foi igualmente galardoado com uma menção honrosa no Prémio Literário Alves Redol de 2013 com o romance O Tempo Adormeceu sob o Sol da Tarde, ainda não publicado (cf. “António Tavares. Vereador da memória”, de Luís Ricardo Duarte, “JL” de 3/9/14). João Céu e Silva não hesitou em classificar este romance como “um dos livros mais inovadores que esta rentrée literária de 2014 deverá oferecer” (QI, “Diário de Notícias” de 6/9/14)


Poucos são os romancistas estetas hoje. Porventura Vasco Graça Moura, José Sasportes, António Mega Ferreira e alguns textos de Hélia Correia, sobretudo Adoecer, a que se junta agora, com justiça, o nome de António Tavares. Esteta é o autor que, na composição dos seus textos, privilegia as referências culturais (história da música, da literatura, da pintura, da ciência…) às referências da realidade social imediata e exterior (o realismo). O seu intento é continuar, prolongar com subtileza, o longo entrelaçar milenário da história da cultura, evidenciando que as ideias, as imagens, os sons estéticos e culturais criados pelo homem modelam, ou podem modelar, a realidade exterior, agindo nesta de um modo transformador e, até, revolucionário, perfazendo, assim, a construção de um mundo do espírito paralelo ao mundo social e político. Esteta é o autor que vê o mundo através dos óculos históricos da cultura, da arte, da ciência, aquele que para toda a situação existencial encontra o seu modelo e motor no mundo paralelo da cultura. Neste sentido, esteta é todo o autor que, mais do que se inspirar na realidade exterior, se inspira no passado histórico da sua especialidade artística. No caso de António Tavares, na história da literatura e do pensamento europeus. Só no “Prólogo” e no primeiro capítulo, constituído por 7 páginas, o autor enuncia mais de doze autores, evidenciando assim o esteticismo do romance.
António Tavares confessou a Gonçalo F. Santos, da revista Time Out de 27 do passado mês de Agosto, que as personagens dos seus romances têm equivalências literárias, “Neca, por exemplo, é tão pontual como Kant”. Com efeito, o narrador de As Palavras que me Deverão Guiar um Dia vai assentando num caderno, ao longo da passagem da puberdade para a juventude, as reflexões pessoais sobre os acontecimentos havidos no seu bairro da cidade de Moçâmedes (Angola), registando um paralelismo harmónico entre os acontecimentos do bairro e situações semelhantes descritas pelos autores em romances e ensaios. Consoante o narrador vai crescendo e bairro vai mudando ao longo da década de sessenta (passagem de moradias para prédios de apartamentos, encerramento da mercearia e abertura de um supermercado, morte de habitantes, aparecimento de novos modelos de carros, emergência de novos costumes, rodagem de um filme com cenas ostensivas de sexo…), vai registando no caderno, posteriormente passadas a romance, as “palavras”, isto é, as cenas ou personagens de romances e as mensagens de ensaios que o “deverão guiar um dia”. A realidade conforma-se com a literatura e o texto, constituído por palavras, evidencia-se como um outro e novo mundo, tão ou mais relevante que o primeiro: “Se as palavras nomeiam as coisas – que o mesmo é dizer, este meu mundo – mas também dão existência à realidade, aqui fica ela [no conteúdo do romance], toda a minha realidade” (p. 9). Não admira que o romance termine com o levantamento de uma biblioteca numa velha carrinha da Gulbenkian e, depois, com a oferta de todos os livros aos habitantes do bairro. Ficou apenas um: o caderno, que se transformará no romance ora publicado, isto é, na realidade verdadeiramente pensada e vivida.
Assim, o esteticismo de As Palavras que me Deverão Guiar um Dia reside justamente na conformidade da descrição da realidade do bairro e das personagens com trechos de romances clássicos ou de pensamento de ensaios famosos. Por exemplo, nas primeiras partes do romance, o narrador tem por hábito subir à copa de uma árvore e daí contemplar as pessoas, exactamente como a personagem Cosimo de O Barão Trepador, de Calvino. De facto, este processo de identificação de situações narradas com trechos literários ou filosóficos constitui-se como motor narrativo de todo o romance e confere, de certo modo, um tom melancólico à narração. A melancolia é expressa, não através da análise psicológica das personagens, mas através da sucessão contínua de acontecimentos que, sob a impotência do narrador, que desejaria contemplar um mundo mais estável do alto da árvore, alteram profundamente a face do bairro. Da copa da árvore, o narrador observa a outra personagem permanente, Luísa, a menina sem mãe que chupa limões, habitante num ferro-velho com o pai e as três irmãs, que partirão; no final o pai também partirá, entregando a sucataria ao narrador. Este, já na década de 1970, irá à guerra, combaterá, sofrerá um ano de tortura preso a uma árvore e, no final, regressará para abraçar a menina, agora rapariga, e viver com ela.
Das nádegas lésbicas da São modista aos prédios do Ivo mudo, da menina da mercearia sujeita a violência doméstica e depois fugida com o charmoso Cunha Mendes à dona Alice, mulher do copofónico Santiago e futura amante da São modista , do puritano e oportunista Amadeu à repressão moral do padre Neves, do Neca pontual, carregado de remorsos, ao congolês enfermeiro Tyrone, do Américo preso pela vida a uma máquina à Aninhas deprimida finha do defunto senhor Leal, da Dona Vitória carnal e adúltera ao marido ferroviário ausente, do Bill cineasta à incandescente Mila actriz… é, de facto, o  mundo a passar debaixo da árvore do narrador, levantada entre um montão de tralha de sucateiro.
Por fim, tudo passou, só as palavras ficaram como monumentos imorredoiros.

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