quarta-feira, 29 de abril de 2015

A política e os políticos

EURICO LEOTE


Os políticos são essencialmente e exclusivamente políticos, e só sabem fazer política.

Fazem em primeiríssimo lugar a sua política pessoal, depois a politica dos familiares e para os familiares e amigos, e por último a politica daqueles que os mantêm e alimentam, apenas interessados na política praticada pelos ditos políticos, no que concerne às suas pessoas.

A política é suja. Os políticos são corruptos. Os amigos dos políticos são sabujos. Os que alimentam e mantêm os políticos são vampiros. Os políticos são vis e torpes. Manipulam opiniões públicas, praticam a política do obscurantismo. Escondem-se atrás de políticos pseudo sociais a troco de votos não esclarecidos, comprados, chorados sob a ameaça de tumultos, da fome e da instabilidade social.

Os políticos perpetuam-se no poder com falinhas mansas e pezinhos de lã, e pela força da força e das armas. Os políticos vendem a alma ao diabo para poderem continuar a sua carreira politica assente no poder. Surgem na politica e para a politica vindos do nada. Mentem e espezinham para se fazerem afirmar como os doutos, os sábios, os únicos, os dotados, os iluminados. Fazem passar a todo o custo essa mensagem. Alienam com a não informação. Dizem descaradamente que o povo não está preparado. Não está, nem nunca estará, pois é esse o interesse primeiro da politica. Se todos soubessem o mesmo, outro galo cantaria. E todos seríamos galos e aí o mundo dos políticos afundar-se-ia. Deixariam de se vender gravatas, sorrisos e discursos. As palmas, abraços e palmadinhas nas costas entravam para saldos ao preço da uva mijona. Os políticos fechavam a loja e abriam falência. O séquito de seguidores juntava os trapinhos, arrumava a mala e ia pedir esmola para as esquinas dos prédios. Se calhar nem para isso serviam, pois nem para isso têm engenho. Só sabem tirar e roubar, sem pedir, nem justificar.

Que vivam os políticos enquanto não morrem.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Exéquias

ADELAIDE BERNARDO












Na minha morte

Não quero bandeiras a meia haste


O luto durará o necessário

A quem o sinta


As palavras e os silêncios

De mãos dadas

Guiar-nos-ão ao renascer

Que sempre sobrevém à ausência


A memória

Ilusória

Consumir-se-á no trânsito dos dias


O meu pó

Ao pó voltará

Remoinhado

No riso dos deuses

domingo, 26 de abril de 2015

Imediato!

JOÃO CACHADO
De tal modo foi o eco do “Inadiável!” que, na sequência de alguns comentários extremamente pertinentes, subscritos por conhecidos sintrenses, me senti obrigado a continuar a matéria então tratada e, se não a acrescentar, pelo menos, a recordar e sublinhar soluções que, há tantos anos, tenho advogado e partilhado com os meus leitores.


Funicular? Dar tempo ao tempo


Primeiramente, gostaria de esclarecer que a minha opinião, contrária à da Câmara Municipal de Sintra, que pretende instalar um teleférico entre São Pedro, Santa Eufémia e a Portela de Sintra, de modo algum, poderá ser interpretada como coincidente com outra, que subscrevo, em relação ao funicular. Há, de facto, uma distinção que cumpre assinalar inequivocamente.
Se, quanto ao teleférico, a solução se me afigura inadequada em relação ao objectivo que a autarquia se propõe resolver, isto é, do transporte expedito e rápido dos visitantes à Pena, na medida em que põe em causa e, inclusive, agride valores históricos e paisagísticos que, até ao presente, foi possível manter intactos, já no que respeita ao funicular a sua viabilidade apenas estará comprometida devido à abundante existência de vestígios arqueológicos.
 Por outro lado, acerca da posição do Doutor José Cardim Ribeiro, se “(…) me rendo, total e boamente perante a impossibilidade decretada pelo famoso arqueólogo (…)”, palavras que  subscrevi no artigo acima mencionado, tal não significa que, futuramente, depois de ter disposto do tempo imprescindível ao diagnóstico exaustivo mas sereno de todos os factores em presença, arqueológicos e outros, não venha a ser possível encarar devidamente a sua adopção.
 Também estou em crer que se encontrará uma alternativa viável, através de um circuito que se venha a revelar compatível com as circunstâncias, sem temer que, em Sintra, o funicular possa vir a matar a galinha dos ovos de ouro, animal e produtos estes que jamais foram postos em causa nos locais em que o funicular tanto sucesso conhece… Portanto, e sempre no respeito pelos interesses da História em geral e da Arqueologia em particular, a instalação do funicular, ainda que pertinente, poderá esperar por melhores dias.
A verdade é que, repito, Sintra não aguenta qualquer adiamento relativamente à instalação dos parques periféricos de estacionamento, dissuasores do acesso das viaturas particulares ao centro do burgo, razão sine qua non para advogar a sua imediata construção, e aí concentrando todos os esforços e todos os recursos, sem a mínima distracção.
É nela que radica o sistema integrado de estacionamento-rede de transportes públicos que poderá resolver a expressiva maioria dos urgentes problemas de mobilidade em que Sintra se enredou. De acordo com o que desde sempre tenho defendido e insistido, esta, sim, é a solução. (1)
E, na realidade, cumpre não esquecer que a estratégica instalação dos parques periféricos constituirá a estrutura de base em que se alicerçará a rede de transportes, – nas zonas de Lourel (Santa Maria), Ribeira (São Martinho) e Ramalhão (São Pedro), a montante das entradas de acesso à sede do concelho, bem como as bolsas de proximidade, nomeadamente, uma junto à estação da Portela e outra adjacente ao edifício do Urbanismo  – constituirá a estrutura de base em que se alicerçará a rede de transportes.


Sintomático? Talvez não…


Permitam que, acerca daquele espaço, vos confronte com uma notícia da Lusa que ontem – escrevo no dia 24 – era veiculada pelo jornal Público. Há escassos quatro meses, durante uma 'Presidência Aberta', o Senhor Presidente da Câmara anunciou que “(…) a autarquia já não tenciona construir um silo de estacionamento na Portela de Sintra, onde irá apenas reordenar o actual parque junto ao edifício do urbanismo. (…)”
Tratava-se da concretização de um projecto cujas características, muito menos ambiciosas, de modo algum, coincidem com as deste. Não vale muito a pena nem estou particularmente interessado em especular sobre as motivações que terão presidido a alteração tão substancial da decisão inicial.
A verdade é que, no caso precedente, as obras, estavam a cargo dos serviços camarários, limitando-se a uma requalificação do recinto. Agora, infere-se que a concretização deste dependerá de investidores privados, aumentando a dimensão para o dobro da capacidade, com restaurantes, zona comercial, e jardim suspenso. Ou seja, transfere-se para a Portela a solução que esteve pensada para o Vale da Raposa, lembram-se?
Agora, o anúncio deste determinará um adiamento imprevisível em relação ao anterior, já que pressupõe uma intervenção muito mais «pesada». Enfim, sem que me possam apontar qualquer espécie de espírito menos colaborante, não posso deixar de me interrogar, não só quanto às vantagens de complicar a proposta inicial, embora de menor capacidade de estacionamento, mas também relativamente às perniciosas consequências do atraso em perspectiva.
Porque não manter a requalificação do parque anunciado durante a ‘Presidêmcia Aberta’ e, em simultâneo, aumentar a capacidade do Parque da estação da CP Portela, parques baratos, à superfície, expeditos, operacionais, sem investimento significativo?
Parques dissuasores, complementos & suplementos

Volto já ao cerne das questões que vinha conjugando antes do subtítulo precedente. Por si só, contudo, o sistema em apreço só pode ser encarado como globalmente estratégico se, a propósito, apesar de já não sei quantas vezes ter escrito acerca do assunto, lembrar que, em determinadas artérias do centro histórico, a circulação de viaturas particulares, pura e simplesmente, deverá ser interdita e, tão somente, autorizada a residentes, comerciantes, veículos prioritários e congéneres universalmente considerados em situações análogas.
No artigo anterior, se bem lembrados estão, referi a fundamental proibição de circulação na Rampa da Pena. Mas não se pode ficar por aí já que a montagem de um dispositivo integrado desta dimensão pressupõe outras atitudes semelhantes e indubitavelmente complementares. Por exemplo, o caso do eléctrico é paradigmático.
Como me afiançou o Senhor Vereador com o Pelouro da Mobilidade Urbana, se a Câmara Municipal de Sintra pretende prolongar a linha do eléctrico até à estação terminal da CP e Vila Velha, num prazo tão curto como os dois anos e meio que ainda faltam para terminar o actual mandato do executivo autárquico, ou seja, até ao fim de 2017, pois então tal projecto só será concretizável, precisamente, mediante o condicionamento do trânsito na Alfredo da Costa, Miguel Bombarda e Volta do Duche...
Por outro lado, tudo quanto venho lembrando e veementemente sublinhando, deve articular-se com a resolução de um problema tão simples (!?!) como o da implantação de um civilizado regime de cargas e descargas, considerando um horário adequado às novas exigências suscitadas pela solução integrada dos parques periféricos e bolsas de proximidade. É, meus senhores, a perspectiva sistémica ditando a operacionalização e a viabilidade das medidas.
E, neste ínterim, importa ter o passado bem presente. Em anteriores intervenções, como a da pedonalização da Heliodoro Salgado ou, mais recentemente, aquando da infeliz supressão da ponte metálica, se tivesse prevalecido uma perspectiva sistémica, tanto na fase de diagnóstico como na da subsequente concretização das decisões, não estaria a Estefânea e a Portela de Sintra na lamentável situação em que se encontram. Neste domínio da mobilidade, incalculáveis são os custos quando se toma determinada medida isolada dos contextos tanto a montante como a jusante.
Espanto-me, isso sim, como, em Sintra, temos incorrido em erros tão sistemáticos e, por vezes, tão grosseiros, se dispomos de tão bons técnicos nos serviços, boa gente que conhecemos e respeitamos, técnicos que dominam todo este saber fazer muito melhor do que eu jamais saberia expressar. Neste enquadramento não consigo deixar de partilhar convosco a inocente pergunta constante do parágrafo seguinte.
Perante o leque das opções técnicas que, ao longo dos anos e de sucessivos mandatos, lhes têm sido apresentadas, e em função de compromissos de ordem vária que não souberam ou não quiseram contornar, não terá acontecido que os decisores políticos impuseram, aos serviços e à comunidade, soluções tão prejudiciais à qualidade de vida dos sintrenses e visitantes?
Se, a nível nacional, multiplicarmos pelos n casos que nem nos atrevemos a imaginar, e, nessa operação, não nos esquecermos de incluir os locais donos disto tudo, entre outras, as  conclusões, também nos remeterão para a ideia do prejuízo pelo qual se traduz a ausência dos cidadãos da vida cívica em que deveriam estar envolvidos, não fossem as razões que desfavorecem a concretização de tal civismo em acção. Pois é, níveis de escolaridade diminuta ou muita limitada, preocupantes índices de literacia, modelos sociais desviantes, enfim, contas de um rosário outro a que muito se resume o nosso lusitano fado…
Finalmente. A terminar, não tenho palavras para vos dizer da minha preocupação relativamente aos períodos quentes que se avizinham em termos da demanda turística. Sei que também a União das Juntas de Freguesia de Sintra está a fazer diligências no sentido de articular as suas justas preocupações no âmbito do estacionamento e da circulação, com a Câmara e com as polícias. Para satisfação do interesse geral, espero bem que os esforços de todos sejam coroados de êxito.
________________________________________________
(1)
Não gostaria de vos maçar com a indicação dos artigos que, em tantos e sucessivos anos, sem qualquer ponta de originalidade, me pronunciei acerca da estratégia dos parques dissuasores. É escusado, creio, os leitores sabem o que tem sido a minha luta a favor de uma forma civilizada de viver a urbe e, em simultâneo, de defender o seu património, bem como propondo as melhores condições possíveis para o usufruto dos bens culturais em que Sintra é tão pródiga.  

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Breve Momento

EURICO LEOTE

Olhando a imensidão e profundidade das montanhas, caio em mim e sinto-me insignificante face aos fenómenos naturais.

Estas massas enormes foram e continuam a ser moldadas pela natureza ao longo dos séculos. Perante a sua idade a minha existência nada é, contudo, sou suficientemente teimoso e quiçá estúpido ao querer e insistir em transformar e domar estes corcéis altivos, rudes mas simultaneamente belos ao olhar. Olhar que não cansa face à diversidade morfológica e às tonalidades obtidas.

Na alta montanha a cor do céu está constantemente a mudar. As nuvens correm tingindo de cinza os penedos. Num repente abrem e noutro repente fecham refulgindo os cabeços, onde ainda se avistam restos de gelo resultado do inverno recente, pois as neves mais brancas e macias há muito se foram liquidas encosta abaixo a correr nos rios que passam nos frescos e arborizados vales.

Eis que de repente o cabeço se avermelha semelhando sangue escorrendo pelas suas encostas, resultado único e inolvidável do sol coberto pelas nuvens ao incidir no seu cimo. As nuvens até então cor cinza deixam ver agora pinceladas de vermelho numa tela multicolor. Rapidamente preparo a minha máquina de registar os momentos e obtenho uma magnífica fotografia para poder contar e mostrar aos amigos.

Volvidos breves momentos, o vermelho deu rapidamente lugar ao cinza. Acabara de viver e registar um momento pouco comum e nem sempre observável, só possível em alta montanha, onde tudo é imprevisível e acontece em rápidas fracções de tempo. Tempo que é aquilo que alguém em período de descanso e ainda por cima já reformado do seu quotidiano trabalho, tem que sobeje, para ficar a olhar para tudo e para o nada, o que é algo que vai acontecendo com maior frequência. Deixamos o cérebro relaxar e divagar. Ficamos com o olhar fixo e aparentemente parado. Só o cérebro continua a sua função e vai destrinçando e ordenando a multiplicidade de pensamentos que vão correndo e desfilando na nossa mente.

O sol apressava-se para ir dormir, ou mais correctamente para ir banhar de luz e de calor a outra metade do planeta, pois o sol nunca dorme nem descansa para nosso conforto e bem estar. O céu apresentava-se vestido de nuvens cinzentas esparsas, deixando antever algumas manchas azuis.

Recolho ao meu refúgio antes que a noite se encerre sobre si, até porque uma fria aragem vem descendo do alto da montanha, arrastada por uma suave camada de nuvens, vulgarmente conhecida por nevoeiro. Opto por encerrar as janelas não vá o vento fazer uma partida. Por outro lado reduzo a exposição ao frio, e a probabilidade de precipitação em alta montanha é muito frequente, mais valendo prevenir do que remediar.

No aconchego dos meus aposentos, ao abrigo da intempérie, e ouvindo o passar do vento roçagando nas paredes sento-me comodamente após colocar um cd no prato da grafonola, a curtir alguns momentos musicais de todos os tempos, e implicitamente do meu tempo, pois para tudo há um tempo e um momento, e momento passado já não volta, já não é nem pode ser como foi. Daí por vezes a nostalgia que nos assola, e a recordação do que foi e já passou, e que de vez em quando insistimos em trazer ao nosso imaginário, forçando a mente a levar-nos nessa viagem de recordações, embora por breves momentos nas asas do tempo. Por vezes ficam apenas os testemunhos como o daquela foto que obtive há pouco, e que simboliza algo que irei mostrar e rever com carinho.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Ética e Velocidade

HUGO LUZIO

Hugo Luzio, 19 anos. Estudante de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Menção Honrosa nas III Olimpíadas Nacionais de Filosofia e medalha de bronze nas I Olimpíadas Ibero-Americanas de Filosofia. Especial interesse em Lógica, Filosofia da Linguagem e Ciência Cognitiva. Músico (baterista e percussionista) em diversos projetos da zona de Sintra.

 "Afirmamos que a magnificência do mundo se enriqueceu de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de corrida com o seu capot ornado com grossos tubos semelhantes a serpentes de sopro explosivo... um automóvel que ruge e parece correr sobre a metralha é mais belo do que a Vitória de Samotrácia."

Marinetti, Manifesto Futurista

O Séc. XX brindou-nos com um larguíssimo legado de alterações socioculturais, mais ou menos dinâmicas, que revolucionaram completamente o panorama civilizacional vigente. Uma renovada abordagem ao meio e desenvolvimento sociais resultou, sobretudo, num profundo corte com a tendência tradicionalista ocidentalmente perpetuada, na requalificação de um tipo de arte que caíra no conservadorismo da sua própria academia, na inversão de um leque de concepções e abordagens profundamente estabelecidas, etc.

Numa curiosa associação, o Movimento Futurista 1 decretou a rejeição pura das perspetivas éticas vigentes, propagando a violência, a guerra e a força das máquinas como meio de desprezo total da padronização moral. A exaltação dos desenvolvimentos tecnológicos e da sociedade Moderna é, também aqui, um verdadeiro elogio da velocidade. Hoje, mais do que nunca, faz sentido considerarmos que a velocidade e a moralidade (ou a sua anulação), estabelecem uma interrelação de mútuo condicionamento.

A presente reflexão trata, fundamentalmente, as relações entre o imobilismo, a mobilidade, o movimento, a dinâmica de vida, a velocidade das ideias, o aceleramento das nossas decisões e todas as implicações que este tipo de fenómenos assumem na capacidade de reflexão ético-moral que desempenhamos sobre as nossas ações. O que significa, contemporaneamente, agir eticamente? Podem o lato conceito de verdade, e, consequentemente, as verdades particularizadas, os valores morais que tomamos como padrão para a nossa ação, ser definidos consoante um tipo particular de velocidade? De que modo o imediatismo vigorante nas nossas relações sociais acentua a tendência para uma instantaneidade (reação) irrefletida e será que uma ação irrefletida, automatizada, tem necessariamente de ser menos moral do que uma ação sobre a qual se efetue uma reflexão mais ponderada?

Partimos, pragmaticamente, de três axiomas fundamentais apontados por Sloterdijk em A Mobilização Infinita: (1) Movemo-nos a nós próprios num mundo que se move a si próprio; (2) Os movimentos próprios do Mundo incluem e atropelam os nossos movimentos particulares; (3) Naquilo a que chamamos Modernidade, os movimentos próprios do Mundo provêm dos nossos próprios movimentos, que cada vez mais se adicionam ao movimento mundial.

A relação individual que temos para com o mundo 2 assume, afirmo, um vínculo mecanicista, quase-viciado. O Mundo evolui e desenvolve-se por força do avanço e progresso dos agentes particulares que o constituem. Deste modo, o desenvolvimento corrente é fruto do dinamismo de ação de seres particulares. O que paradoxalmente se aponta, é que o avanço dos agentes individuais que decretam o avanço do Mundo como todo, surge em consequência direta da modelação que o Mundo impõe aos agentes que lhe dão movimento 3. Assim, o progresso, este paradoxal avanço do Mundo, atropela quem o constitui. O que é certo, é que o Mundo não espera que atravessemos a sua passadeira, não para em sinais vermelhos. Muito pelo contrário, avança cada vez mais rapidamente. Conseguiremos nós acompanhar o veloz progresso do espaço em que nos inserimos?

Os contextos particulares que experienciamos, o espaço e o tempo praticados e as influências externas de todas as ordens, assumem-se como definidores centrais da nossa capacidade de reflexão sobre as ações que realizamos. Limitar a ação é limitar o tempo ofertado ao agente de ação para que este considere o real significado e consequências práticas do ato que efetiva. Não é, forçosamente, impedir ação X de ser realizada. As formas de intervenção humana na realidade vêm sendo cada vez mais direcionadas para o fazer e menos para o agir. Fazer é uma forma involuntária e automática de ação; Agir é uma forma voluntária de ação, requerendo a consciência dos objetivos válidos de determinado sujeito que atribui certo fundamento ao ato que efetiva. A tendência para o fazer ganhou uma consciência própria, uma urgência caraterística que se alinha com a dinâmica social em que nos vemos inseridos, relaciona-se diretamente com a pressa da inscrição do ato na realidade experienciada.

Vivenciar um contexto impresivelmente mutável, em que a dinâmica de ação individual cada vez mais se vê relacionada com as possibilidades de ação-no-espaço, resulta necessariamente na protocolação indireta da capacidade de reflexão sobre o agir. Assim, as relações sociais vão-se encontrando progressivamente associadas ao imediatismo da decisão, à velocidade com que temos de lidar com uma maior e mais ampla exposição nas nossas próprias vivências comunitárias, à pressa e rapidez consideradas como fatores fundamentais a adotar, como virtudes e necessidades do Homem Moderno, que constantemente se atualiza. Toda a informação, todos os contactos e possibilidades de comunicação estão hoje inseridos numa rede global, à distância de cliques e pequenos movimentos, imediatamente dispostos, não apenas por utilidade, mas por definição.

A reflexão sobre o estado fundamentado dos valores tomados como núcleos orientadores da ação, tal como a análise do comportamento humano e dos seus padrões (a)morais, complexificam-se num mundo em que a velocidade se assume como condição sine qua non do progresso individual no contexto social. - Mexe-te, se não o fizeres, ninguém o fará por ti. - A Ética poderá, hoje, ser reformulada não como determinado percurso escolhido após reflexão e deliberação individuais, mas como a velocidade com que percorremos esse mesmo percurso próprio. O que fazes face ao que acontece e a que ritmo o fazes, parecem ser questões que assumem um novo e decisivo papel nas nossas considerações morais.4

A consideração “Ética como velocidade” surge-nos, quase certamente, como analogia um tanto quanto obscura, sem linhas precisas definidas e sem exemplo de observação nas nossas experiências diárias. No entanto, são variadíssimos os exemplos ilustradores deste tipo de hipótese e da importância de levar a cabo uma reflexão deste tipo. São espantosos, a título exemplar, os resultados revelados pela Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, em relação a um estudo efetuado na área que tratamos.

Submetendo voluntários a assistir à narração de histórias geradoras de sentimentos de admiração pela virtude humana e comparando os resultados obtidos com as respostas ofertadas a situações em que se apresentaram casos de explícita dor física, exames de neuroimagem demonstraram a apresentação de uma resposta instantânea à perceção de dor física do Outro, mas uma demora de cerca de 6 a 8 segundos para responder às histórias que evocavam admiração ou compaixão pela dor emocional. Outro resultado admirável prende-se com a descoberta de que as áreas cerebrais ativadas ao ser reconhecida a dor física de um Outro foram as mesmas que nos fazem ter consciência do nosso próprio corpo.

Os vídeo-jogos violentos são exemplos concretos desta relação entre rapidez e apatia moral. Por força da dinâmica com que os eventos decorrem no contexto virtual, não se permite a mínima compaixão com as figura-representativas (por vezes, humanos). O único objetivo é a aniquilação, a morte rápida. A compaixão não existe virtualmente. A aceleração do real pode aqui ser considerada como impulso à instintividade, à reposta imediata, comumente relacionável com a imoralidade. Mas tem necessariamente uma ação irrefletida, automatizada, de ser menos moral 5 do que uma ação sobre a qual se efetue uma reflexão ponderada? É, necessariamente, o fazer menos moral do que o agir?

Uma ação imediata é uma ação menos refletida. No entanto, uma ação menos refletida não é necessariamente uma ação que faça um uso menos direto da consciência moral individual, tendo em conta que esta é, em parte, resultado direto da confluência entre os padrões morais vigentes em determinado contexto social onde o indivíduo se vê integrado e das considerações individuais adotadas sobre esses mesmos padrões. É-o, antes, considero, uma ação mais instantânea, mais automática, mais mecânica. Hoje em dia o automatismo não pode, ainda assim, ser necessariamente interligado ao primitivismo da “reação”, tal como uma reação mais instintiva ou direta a determinada situação não pode ser imediatamente considerada menos moral. A reação, a velocidade imediata de aproximação a determinado evento, está, hoje, diretamente interligada ao padrão moral dominante, à força da ideologia determinada. O instinto ganhou um novo significado, porque não existe mais independentemente do meio, não é apenas resultado direto da individualidade do sujeito; é o contexto social que gera os seus contornos, que programa o seu tipo de manifestação.

Falamos aqui de uma espécie de linguagem programática da ética. É ponto assente que a tecnologia não pode resolver dilemas morais: um computador não tem consciência, não delibera ações, não considera moralmente opções, não analisa possíveis consequências éticas. Contudo, se nele introduzirmos referências de condicionantes sociais, genéticas, pessoais, noções gerais de valores a serem considerados como orientadores de escolha, etc, é certo que a máquina conseguirá, dentro do seio do próprio padrão programático introduzido, resolver questões de cariz moral. Simplesmente agirá segundo a lógica da procura dos resultados mais produtivos/benéficos para o maior número de partes envolvidas na questão. Também nós estamos sujeitos a esta espécie de programa definidor, a um influenciador da ação.

A reflexão moral assenta, sobretudo, na separação entre aquilo que tomamos como bem, passível de ser considerado como impulso à boa-acção, e mal, passível de ser tomado como impulso à má-acção. Existe, na valoração moral, uma certa noção de verdade. É verdade, para mim, que há mal na dor, daí que, quando confrontado com a possibilidade de premir, ou não, o gatilho de um revólver contra alguém, provavelmente, escolherei não o fazer. Não é, assim, segundo os meus próprios princípios e valores morais, uma ação ética, matar alguém. Contudo, o que me garante que a opção que tomo como correta, apoiada num certo critério de veracidade que em muito molda o meu próprio posicionamento moral, é, de facto o mais correto? O que me garante que é verdadeiramente imoral matar?

O caso apresentado em Austerlitz, de W. G. Sebald, evidencia concretamente o que podemos inferir da noção de Verdade como um tipo particular de velocidade, do qual farei uso figurativo para esboçar as implicações diretas da dinâmica do meio nas nossas decisões morais. A dado momento da obra, o protagonista encontra um vídeo de propaganda Nazi, que tenta passar a ideia de uma cidade construída pelos nazis para os judeus, onde se vive maravilhosamente entre homens livres. Na tentativa de averiguar se uma pessoa particular esteve presente nesse mesmo vídeo, o protagonista manda fazer uma cópia do mesmo em câmara lenta, não com a duração original de catorze minutos, mas de uma hora.

A transformação da velocidade da película revela, como Gonçalo M. Tavares refere, uma estranha manifestação de elementos antes ocultos: “[...] a alegre polca que se ouve na banda sonora torna-se numa marcha fúnebre que se arrasta de um modo quase grotesco.”, as pessoas que surgiam primeiramente como alegres cidadãs, surgem agora andando longa e morosamente, num cenário que melhor parecer ilustrar alguma verdade efetiva sobre a dinâmica social do nazismo. A redução da velocidade mostra, aqui, alguma verdade antes ignorada: “o que parecia uma canção alegre é, afinal, uma canção fúnebre”. A velocidade de exposição do mundo e a velocidade de observação do real tornam-se conflituosas, apresentado um novo (e estranho) conceito que surge pela consolidação destes dois tipos de aproximação: a Verdade como velocidade certa da realidade, como velocidade intermédia entre o observador e o que é observado.6

As tartarugas conhecem melhor as estradas que os coelhos.7 Se as nossas decisões ético-morais estão diretamente associadas a determinadas noções de verdade, a certas verdades incontornáveis que necessariamente assumimos para definir o rumo da nossa ação, então, torna-se impositivo relacionarmos a dinâmica externa, a velocidade dos fenómenos com que lidamos e a nossa própria velocidade de aproximação aos fenómenos que decorrem, com a capacidade de reflexão moral. Diz-me a que velocidade andas, dir-te-ei qual a tua moral.

O progresso técnico, a Modernidade, a tecnologia, as extensões mentais materializadas em resoluções tecnológicas, o evitar da apatia e a consideração da lentidão como atitudes contraproducentes, potenciais canalizadores de inação 8 estão a limitar significativamente o espaço para a reflexão moral, a protocolar cada vez mais o instinto e o imediatismo automático das nossas decisões, a tornar a urgência da ação um fenómeno necessário à sustentável vivência social. É neste ponto, que devíamos todos pegar no comando utilizado por Adam Sandler em Click 9 e transformar a existência contínua, as nossas vivências e ações irrefletidas (mas não necessariamente imorais), num processo de reflexão em slowmotion, notando na experiência lenta os pormenores que nos escapam pela pressa, transformando a moralidade numa categoria reparada, tornando a ação re-ação, uma ação duplamente repetida: a primeira - pensar a ação; a segunda - realizar a ação pensada.10

Se somos o motor do Mundo, e se é o Mundo que define, cada vez mais acentuadamente, a nossa própria velocidade de existência, tornar-nos-emos, num futuro próximo, meras vítimas da nossa própria velocidade? Atropelar-nos-emos paradoxalmente, como vítimas de um mobilismo que peca pela irreflexão? Seremos nós apenas produtos de uma Técnica que torna urgente a prática?

Resumida sinteticamente, a minha proposta central é a de que a velocidade e o imediatismo da realidade com a qual lidamos correntemente nos estão a conduzir, progressivamente, à amoralidade (e não à imoralidade). Isto é, a um fazer automatizado (não necessariamente imoral); somos meras reduções concretas da ideologia prática que nos guia, do fio que conduz a marioneta humana.

[Advertência para o leitor mais ingénuo: tudo o que se escreve é erro em potência.]

 Hugo Luzio

1 Com origem no Manifesto Futurista, de Marinetti [citação inicial], e nacionalmente representado, p.e., por Álvaro de Campos (ver Ode Triunfal)

2 Mundo, como espaço social unificado, encontro centralizado onde todos os indivíduo são coletivamente.

3 Restam opções contrastantes: ou assumimos que a superestrutura social define as consciências individuais, ou consideramos, ao invés, que por força da superestrutura social ser produtora direta das consciências individuais, elas acabam sendo apenas produto delas próprias.

4 Tavares, Gonçalo M. – “Pés e Pensamento” – Atlas do Corpo e da Imaginação; p. 111

5 Menos moral, como tendência para a imoralidade.

6 Tavares, Gonçalo M. – “Velocidade da Realidade, e Lentidão” – Atlas do Corpo e da Imaginação

7 Khalil Gibran

8 Porque é que, em religião alguma, se criou um “Deus da Lentidão?”

9 2006

10 “Don’t act. Just think.” – Slavoj Žižek – Big Think

terça-feira, 21 de abril de 2015

O Espírito da Europa

MIGUEL REAL

Da abundante literatura sobre o tema, ninguém melhor que George Steiner definiu a Europa de hoje: a Europa é um “lieu de mémoire”, assim mesmo, escrito em francês como homenagem à língua de Descartes, de Napoleão e da “Razão Universal”. Com efeito, provocatoriamente, poderíamos postular que, das três dimensões do tempo, nenhuma se harmoniza melhor com a Europa que a do “passado”, e um passado tão cheio, tão absoluto, que outro continente não existe com tão grandiloquente e realizador passado.

Improvisada a cada momento do tempo pelos diversos países constituintes, sacudida permanentemente pelos contributos cruzados e desencontrados do sul (da Itália renascentista, resgatadora inicial da cultura greco-romana, seguido da expansão ultramarina de Portugal e Espanha, até ao final do século XVI) e do centro e do norte (a II Expansão Ultramarina protagonizadas pela França, a Inglaterra e a Holanda; a revolução francesa iluminista e burguesa e a revolução industrial inglesa), a Europa tornou-se não só a criadora da imagem geográfica e cultural do mundo que hoje possuímos como transmitiu a este, historicamente, mal e bem, as suas categorias sociais e as suas estruturas mentais. Daquelas, realça-se tanto a diferencialidade marcante em classes e grupos sociais e étnicos (que o século XIX e a primeira metade do XX designarão por “colonialismo”), quanto a capacidade singular do indivíduo, pelo mérito, pela manha ou pela especulação, estilhaçar as fronteiras da distinção social (que os séculos XIX e XX designarão por “individualismo” e “liberalismo”). No que se refere às estruturas mentais, a Europa espalhou no mundo, como um vírus, uma íntima inquietação metafísica marcante e uma vontade de progresso que se encontram na base ontológica do húmus do pensamento crítico que a tem constituído. No entanto, indubitavelmente, a Europa foi feita sem plano, falhando nela todas as previsões históricas de longo prazo:

a. - falhou a perpetuidade dos valores metafísicos do catolicismo medieval;

b. -  falhou a predominância do classicismo italiano;

c. - falhou a superioridade dos valores cristãos protestantes ingleses e alemães;

d. -  falhou a soberania da ética burguesa mercantil e a pureza de uma razão científica iluminista e positivista;

e. – falhou o sonho visionário comunista de igualdade social absoluta.

Em cada fracasso, porém, como o pelicano que extrai carne do seu próprio peito para alimentar as crias, ou como a Fénix que em cada morte renasce das cinzas, a Europa ressuscita diferente a cada momento e porventura mais sólida e mais forte face ao futuro, ainda que, face ao passado, mais existencialmente desorientada.

À semelhança dos tempos romanos e medievais, a Europa arrasta hoje às costas o gigante que é o passado constitutivo da sua verdadeira essência. Se o passado o tem bem conservado em museus, monumentos e, sobretudo, na prática diária de vida, os sonhos de futuro que a Europa sonha, esses, têm sido realizados, desde o final da II Guerra Mundial, por outros, nomeadamente os Estados Unidos da América, mas também, no estrito campo da tecnologia, pelo Japão e pela Coreia do Sul, e, recentemente, pela Índia, em parte pela China e, também em parte, pelo Brasil. 

Neste sentido, a Europa é, hoje, um estado de espírito que, gerado nas suas entranhas ao longo de cerca de três mil anos, amassado a sangue, a fogo e a felicidade, se generalizou pela totalidade do mundo numa fúria devastadora de religiões, tradições, línguas, culturas e costumes locais, nivelando os continentes segundo a luz da propriedade privada e da razão contabilista (ou, para falar a linguagem de Heidegger, a razão “calculista”; ou, segundo H. Marcuse “a razão unidimensional”, ou, se permitem citar um filósofo português, José Enes, a “razão funcionalista”, a razão eficiente do Estado).

Deve a Europa respeitar e orgulhar-se dos seus feitos passados:

- primeiro, de criadora dos valores que se encontram na base permanente do Humanismo, da defesa da liberdade e dos direitos humanos e ambientais;

- segundo, de mediadora entre continentes, culturas e religiões, criando o actual arquipélago de continentes a que chamamos Terra;

- terceiro, de instauradora de uma nova ordem no mundo, uma ordem racional e mercantil, a primeira ordem global, de tendência humanista, socorrido do espírito missionário da religião cristã.

No entanto, a Europa não deve orgulhar-se nem deve venerar os meios utilizados (a guerra, o genocídio, a substituição violenta de culturas e religiões, a criação da escravatura industrializada, a rapina dos recursos naturais, a destruição de habitats ecológicos). Por este motivo, tão positivo quanto negativo, deu-se à ordem mundial assim instaurada, de que Portugal foi cabeça e motor, o nome de “ocidentalização do mundo”, radicalmente diferente da actual globalização; a nossa “globalização”, de origem ibérica,  possuía uma tendência espiritual e humanista, inclinada a salvar o outro, o bárbaro, o pagão, o incréu, o ímpio, o gentio, o não-civilizado; a segunda, possui um explícito carácter materialista, desprovido de qualquer laivo de transcendência.

Por isso, G. Steiner identifica o espírito da Europa com a cultura nascida no e pelo “café”, entendido este como um lugar livre de meditação, de escrita e de discussão ou debate de ideias. De outro modo, acrescentamos nós, o símbolo da actual globalização identifica-se com a Coca-cola e o McDonald’s, símbolos do hedonismo individualista. Com efeito, para a antiga Europa, a ideia circulada pelos cafés constituía a essência, ateia ou religiosa, por que o cidadão instruído via o mundo, lutando e morrendo pela sua dimensão política. Onde Steiner escreve café, podemos nós, também, escrever a “ágora” grega, o “forum” romano, o átrio da igreja, o claustro do convento, o rossio da aldeia ou vila, a albergaria ou a pousada acolhedora de desconhecidos e o botequim dos séculos XVII e XVIII, antecessores do “café”, nascido e generalizado nos séculos XIX e XX. Não fala Steiner, injustamente, dos corredores e das celas dos conventos e, hoje, dos gabinetes das Universidades. Em todos, é comum o encontro, a partilha de inquietações e descobertas, a generalização de saberes, o entusiasmo na aceitação da ideia nova, a mordacidade e a sátira de grupos e tipos sociais decadentes, a liberalização de costumes, isto é, a concretização social do espírito crítico.

De facto, que espírito é esse que, mais do que em foro privado e íntimo, se centra recorrentemente no espaço público e que presta contorno de figura relevante à Europa, simultaneamente que lhe faz pulsar acelerado o coração? Que forma mentis é essa que forçou Ulisses a penar uma viagem de dez anos e Xenófanes de Cólofon a clamar que se os bois adorassem deuses estes teriam necessariamente cornos? Que sopro da consciência é esse que forçou Antígona, uma mulher, a revoltar-se contra o Estado, que a proibia de enterrar o corpo defunto do irmão? Que ânimo vital é esse que fez nascer o Homem da revolta contra os deuses (Prometeu), roubando-lhe o fogo do pensamento (a razão) ou recebendo destes o fruto do conhecimento (Eva e Adão)?

Esse quid que fez e faz a Europa, e tão integral e puro não existe em outro continente, consiste no puro nada sem conteúdo nem forma que se dá pelo nome de inquietação, de frenesi de conhecimento, de desejo de saber, de questionamento, de substituição da certeza pela dúvida, da resposta definitiva pela pergunta anómala, por vezes e aparentemente sem sentido, da substituição da aceitação crédula pela crítica demolidora. Numa palavra, pela realização do sentimento que os filósofos designam por “espanto”, a capacidade de assombramento pela existência das coisas, assim mesmo como são e estão e por que não são e estão de outro modo, ou, numa frase lapidar, escrita por Leibnitz há trezentos anos, “Porque existe o ser e não o nada?”, ser que pressupõe ordem, organização, estrutura, e não o nada, que pode pressupor também o caos, a desordem anárquica.

Numa palavra sintética, a Europa é o lugar da formação do saber gerado como resposta (sempre inconclusiva) a esse espanto:


a.     o lugar da filosofia (a interrogação fundamental)

b.    o lugar da ciência pura (desinteressada, o porquê das coisas individuais)

c.     o lugar da poesia (a projecção lírica ou trágica do sentimento do espanto)

d.    o lugar do romance (a projecção da aventura de uma consciência em processo de descoberta e conhecimento concretos)

e.     o lugar do ensaio (a projecção da aventura de uma consciência em processo de descoberta e conhecimento abstractos)

f.      o lugar da arte (a cristalização do sentimento de espanto em papel, tela, som, cores, formas da realidade).

Neste sentido, a Europa é o continente do inútil, do que não é absolutamente necessário à sobrevivência do homem, do supérfluo, do gratuito, do vão, isto é, da filosofia, da ciência pura (desinteressada de efeitos materiais), da poesia, do romance, do ensaio e da arte, que, sistematizados em configurações técnicas conjunturais, classificados, dispostos em correntes, logo sofrem de decadência, substituídos por outras filosofias, outras teorias científicas, outras formas de poesia, romance e arte.

Porventura melhor do que todas as outras, a forma do ensaio define a forma mentis da Europa – pensamento crítico descomprometido que avança tacteando pontos de apoio, atingindo instáveis certezas, logo traduzidas em incertezas, mas visíveis e sólidas plataformas para novas buscas, que de imediato se transfiguram em outras tantas dúvidas, algumas logo negadas, outras reafirmadas com grau rijo de ambiguidade, até se atingir uma certeza mais firme que todas as restantes, que, com algum grau de convicção, declaramos ser a verdade. A Europa é o único continente que sabe, hoje, que a verdade consiste na forma provisória da não-verdade.

De facto, qual a diferença entre a Europa e a cultura dos restantes continentes? O que a estes lhes faltou percorrer que os europeus já percorreram? Que experiência nova trouxe a Europa ao mundo, não vivida pelos restantes continentes? Falta-lhes ter atravessado o mundo, fazendo-o nascer para a consciência da humanidade, no que se formou e consistiu o espírito europeu da Idade Moderna. Falta-lhes, nesta travessia, o primitivo sentido aventureiro e trágico da viagem.

Tal como o ensaio no plano teórico e filosófico, a viagem torna-se, no sentido cultural, definidora do homem enquanto ser primitivamente nómada. Com efeito, viajar é imaginariamente retornar a esse estado de absoluta imprevisibilidade que definiu o homem pré-histórico e que nos definiu como animais humanos ao longo de cerca de 200 000 anos. Se não nos ficou nos genes, a viagem ficou-nos nos arquétipos imagiológicos reitores do inconsciente.

Em essência, a viagem ou o estado de nomadismo reside na imprevisibilidade, na ausência de qualquer plano prévio excepto a demarcação bem precisa de um objectivo final, que nos nossos patriarcas, habitantes da pré-história, se deveria circunscrever à busca de alimentos, isto é, de territórios onde abundasse água, carne, frutas, cereais. Não é impossível que a nossa visão do Paraíso, recorrente em todas as épocas e em todas as épocas adornada de novas qualidades, possua a sua mais arcaica fonte imagética nessa interminável busca do homem primitivo, seguindo sem cessar manadas sem, ao mesmo tempo, se afastar dos cursos de água.

Desse penar infindável, em termos de forma imagética, se alimenta a Ilíada (o livro mais livro da cultura europeia, verdadeiro arquetípico desta cultura) e o périplo imprevisível dos dez penosos anos de Ulisses, estatuindo-se como paradigma cultural da nossa civilização. Ítaca, por seu lado, gravou-se na literatura de todos os tempos como imagem substituta do Paraíso. Se atentarmos no itinerário físico e existencial de Ulisses e o compararmos com outras narrativas modelares da viagem, como a Eneida, de Vergílio, a Navegação de São Brandão, o Conto de Amaro ou Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, constatamos que no coração de todas estas obras reside a imprevisibilidade enquanto estado humano de absoluto inesperamento, de fortuitidade, de acaso, de percurso animado de múltiplos acidentes e peripécias que desviam o herói de atingir o seu objectivo, atrasando-o, jogando-o por caminhos e situações insólitas e por sentimentos e estados interiores que lhe são totalmente desconhecidos, forçando-o a ceder ou a resistir, a recuar ou a avançar, a hesitar e a conciliar, no que foi definido pelos gregos como a famosa “manha” de Ulisses.

Porém, a imprevisibilidade da viagem não se tece de um absoluto acaso. Diferentemente, a mão de Deus ou dos deuses existe por detrás dos acidentes de percurso sofridos pelo herói e constituem-se como provas pelas quais a divindade ou o Destino (a moira grega ou o fatum romano) experimenta as virtudes do herói. Ulisses, como Amaro, Brandão ou Fernão Mendes Pinto, sofrem todo o tipo de tentações (é-lhes oferecido riqueza, poder, fama…), experimentam o tremor e o terror kierkegaardiano da angústia e do desespero, da solidão, sofrem, expiam, suam, vomitam todo o mal que se encontra no seu interior, purificando-se, e, finalmente, superadas as limitações, transcendidas as provações, o herói atinge a sua realização, Ulisses reconquista a sua Ítaca, Brandão e Amaro sofrem a visão do Paraíso eterno, a Terra dos Bem-Aventurados, ou as Ilhas Afortunadas, Fernão Mendes Pinto regressa rico a Portugal e Vasco da Gama é erótica e espiritualmente premiado pelo conforto das deusas na Ilha dos Amores.

Assim, se seguirmos a lição dos clássicos, não há viagem que não seja tecida destes quatro elementos constituintes: imprevisibilidade, terror do inesperado ou provação/tentação, sofrimento/ expiação e visão transcendente.

A Europa, transformando os continentes em ilhas de um grande arquipélago chamado Terra, provou o sabor desta cultura nómada da viagem, interiorizando-a na sua mentalidade social. Por isso sabe que o nomadismo, hoje desprovido de transcendência paradisíaca, constitui a forma por que o espanto da existência melhor concretiza geográfica e politicamente a natureza errática do homem. Hoje, três mil anos depois de Moisés e Homero, a Europa sabe que o Paraíso, a Terra Prometida, não constitui um ponto de chegada, mas o motor ético que força o homem a partir. O Paraíso tornou-se o cais de partida de todo o homem aventureiro, isto é, ensaísta, isto é, europeu. Esta a grande, grande diferença entre a Europa e os restantes continentes. A Europa já viajou pela Terra inteira, verdadeiramente criou a actual representação da Terra, e já regressou a casa; os outros continentes, sobretudo o Americano (que faz da viagem uma epopeia espacial) e o Africano (que, infelizmente, por culpas de que não nos são de todo alheias, transformou o nomadismo da viagem em naufrágio) ainda se encontram em viagem.