quarta-feira, 1 de junho de 2022

As fontes e as águas na bibliografia sintrense: Uma estreia curiosa e o caso estranho da fonte de Santa Eufémia.

 

JORGE LEÃO


Como já alguém disse no passado, poucas terras portuguesas terão sido tantas vezes nomeadas na literatura, como Sintra. Desta bibliografia, por tão rica que é, podemos extrair uma outra, mais especializada, em que é referido algo pelo qual Sintra é reconhecida há muitos séculos: a celebridade das suas águas e das suas fontes.

Assim, e porque um artigo de História Local deve sempre criar um avanço e não somente transcrever o que já foi dito no passado, iremos, além de recordar alguns casos notáveis, relatar dois casos especiais. Um por ser muito curioso e inédito na bibliografia sintrense, e outro, por ser muito bizarro.

Século XII – Uma fonte, os limões, etc.

A primeira, em termos cronológicos, é a famosa carta que um cruzado inglês escreveu aquando da tomada de Lisboa aos mouros, em 1147, que aponta em Sintra a existência de uma fonte de águas de excepcional poder curativo. É a primeira, mas vai ser a última a ser aqui tratada por ser um caso muito estranho. Continuemos.

Século XVI – Góis e Camões

Damião de Góis dá-nos, no séc. XVI, informação de como eram consideradas as águas e as fontes de Sintra, no final do século XV:

D. Manuel veio «a Sintra no verão, por ser um dos lugares da Europa mais frescos e alegres para qualquer Rei (…), porque além dos bons ares que de si lança aquela serra, chamada pelos antigos Promontório da Lua, há nela muita caça de veados, e outras alimárias, e sobretudo muitas, e muito boas frutas de todo o género das que em toda a Hispanha se podem encontrar e as melhores fontes de água, as mais frias de toda a Estremadura …». (1)

Também neste século canta assim Luís de Camões em Os Lusíadas:

E nas serras da Lua conhecidas / Subjuga a fria Sintra o duro braço, / Sintra, onde as Náiades, escondidas / Nas fontes, vão fugindo ao doce laço / Onde Amor as enreda brandamente, / Nas águas acendendo fogo ardente.

Século XVII – D. Sebastião e o mundo feminino

Este episódio passa-se na Quinta da Penha Verde e além de ser muito curioso, parece ser uma estreia na bibliografia sintrense já publicada. D. Francisco Manuel de Melo relata desta forma a débil simpatia do Rei pelo sexo oposto:

«Dizia-se que o Rei em público e na sua vida particular não era nada favorável ao trato com senhoras, e isto ouvi da própria bôca de algumas dêle queixosas. Estando em Sintra, no verão, entrou com toda a côrte na horta e jardim de D. João de Castro, então muito celebrados pela sua frescura. Para vê-lo, algumas donzelas fidalgas tinham-se metido num saguão, mostrando-se quando êle passou, sem fazer caso da honestidade portuguesa. O Rei desgostou-se do encontro e, apontando, zangado, para uma estátua menos recatada de uma fonte de mármore, disse: – «O que elas querem é aquilo!». E repetiu a frase. Mas D. Duarte, sempre galante e excelente príncipe, quis ser-lhes agradável, exclamando: – «Será de estranhar que as flores queiram bem às fontes?».

Sei que estas duas frases ficaram muito bem guardadas na memória de uma que as ouviu e mas repetiu a mim, porque a memória das mulheres só é de bronze para não esquecer injúrias». (2)

Século XIX – No tempo do romantismo

Naturalmente, neste século é muito mais vasta a bibliografia em que Sintra é mencionada. Sobre as suas fontes seguem-se estes dois exemplos vindos destes dois nomes maiores da literatura portuguesa:

De Almeida Garrett, no Impronto de Sintra, logo no início:

«Que ar tão suave se respira em Sintra! / Que amenos prados, que gentis outeiros! / Que horizonte, que céu, que estância amável! / Por entre esses esmaltes de verdura / Como é saudoso o murmurar das fontes! / Parece quase ouvir que elas suspiram, / E a suspirar os peitos nos convidam.»

E no poema Camões:  Ó gemedoras fontes, ó suspiros / De namoradas selvas, brandas veigas, / Verdes outeiros, gigantescas serras! / Não vos verei eu mais, delícias d´alma? ».

De Eça de Queirós:

«Vi-a numa noite doce / Em que o Rouxinol cantava: / E todo o céu se estrelava / Luminoso pavilhão: / Era Sintra ! Sinto ainda; / O doce correr das fontes / E a sombra das nossas frontes / Das árvores do Ramalhão.».

Século XX

De Félix Alves Pereira:

«Gemedoras fontes, chama Garrett às de Sintra, de que ele se encantou no seu “Camões”…Esta, porém, de Santa Eufémia da Serra, tão apoucada de águas e de sombras, se é gemedora, como as suas poéticas e umbrosas companheiras, não o é pelo seu enlevo e lirismo, mas pelo desamparo e descrédito em que hoje se encontra.»

Voltando ao séc. XII

Lembra-se o meu caro leitor que tínhamos deixado uma epístola, a primeira referência às fontes de Sintra, do século XII, por analisar. Fazemo-lo porque realmente merece uns minutos da nossa atenção.

Um cruzado inglês, em 1147, relata ao vivo a campanha comandada por D. Afonso Henriques na conquista de Lisboa e refere Sintra nestes termos:

«Fica-lhe próximo o castelo de Sintra, à distância de quási oito milhas, no qual há uma fonte puríssima, cujas águas, a quem as bebe, dizem, abrandam a tosse e a tisica; por isso quando os naturais dali ouvem tossir alguém, logo depreendem que é um estranho. Também tem limões…

 

 Adivinha o meu caro leitor qual fonte seria essa? será difícil porque o relator não lhe menciona o nome, nem nos dá qualquer pista que nos permita identifica-la. Pela historiografia existente, tem-se apontado para uma fonte. A fonte de Santa Eufémia da Serra.  Nesta direcção, já aproaram alguns ilustres e principais estudiosos destes assuntos: Félix Alves Pereira (1931), Francisco Gonçalves (1941), José Cardim Ribeiro (1983). Não é estranho pois nos primeiros documentos que nos surgem, a carga simbólica relativa à água e à fonte de Santa Eufémia é tão forte que tudo nos pode fazer suspeitar que seja esta a fonte mencionada pelo tal cruzado. Mas não podemos ter a certeza…

No entanto, mais peremptórias são as instituições. Curiosamente, as principais envolvidas no caso, não têm dúvidas. É a fonte de Santa Eufémia da Serra de Sintra.

Lê-se, escrito pela Direção-Geral do Património Cultural:

«Sem informações durante a Alta Idade Média, só em 1147 a fonte de Santa Eufémia é referida documentalmente, pelo cruzado R. que acompanhou as tropas cruzadas na conquista da cidade de Lisboa (…). A circunstância de as suas águas possuírem poderes curativos, em particular problemas de tosse, levou a que, no século XIII, se tivesse edificado a ermida…».

Também a Câmara Municipal de Sintra, através da revista Tritão:

«Esta Ermida (Santa Eufémia) surge associada a um complexo termal bastante antigo que lhe fica muito próximo. Já o cruzado Osberno referia aqui a existência de uma fonte de águas com singulares qualidades terapêuticas.»

Também a recente Sintria Monumenta Historica descreve tecnicamente a fonte e a sua sala de banhos. (3)

E conjuntamente, a Paróquia e a empresa Parques de Sintra – Monte da Lua, através da placa colocada no caminho para a ermida:

«As referências às capacidades curativas da fonte de água de Santa Eufémia remontam a 1147, pelo cruzado Osberno». 

O caso bizarro

Então sucede que temos uma fonte histórica, considerada uma “mãe das fontes de Sintra”, devido à sua fama, à sua bagagem etnográfica, e talvez por ser a mais velha pelo nosso conhecimento, na terra das fontes, com uma curiosíssima e antiquíssima sala de banhos agregada, mas seca e abandonada. Abandonada até à vergonha. Uma nascente que tudo indica estar na génese da ocupação humana do local, dos primeiros de Sintra.

Resumindo, para quem não conhece o assunto:

A fonte e sala de banhos de Santa Eufémia ficam 200 metros abaixo da ermida; o fornecimento de água pelos SMAS não chega à ermida; cá em baixo, por volta dos anos 70, alguém se lembrou de desviar a água da fonte para um poço, construído ao lado para o efeito, e assim elevá-la com um motor eléctrico para a ermida; por isso, a fonte nunca mais deitou água pela sua bica; a ermida precisa da água; a empresa Parques de Sintra-Monte da Lua tem instalações a 100 metros da ermida; foi pedido a esta empresa que estendesse um cano e fornecesse, através das suas instalações, água do SMAS à ermida para que esta libertasse a água da fonte; Em 2019, a PSML recusa-se a ajudar nesta matéria, estendendo os 100 metros de cano, embora já lá tenha tido um à vista, quando precisou de efectuar trabalhos no local, no âmbito de um acordo que lhe permite ter acesso automóvel exclusivo no tradicional caminho entre a ermida e a fonte.



“Esta obra mandou fazer à sua custa o Capº Francisco

Lopes de Azevedo no ano de 1758 e esta é a água

milagrosa da Srª Stª Eufémia e ali está a casa donde se

tomam os banhos”

No Japão medieval, causado pela miséria, havia um costume bastante cruel. Os velhos, ao atingir certa idade, improdutivos, eram levados para uma montanha para aí morrerem ao frio e à fome. Este assunto, depois de um romance, deu um excelente filme da cinematografia japonesa chamado «Balada de Narayama». Esta prática já tinha sido narrada por Pigafetta no seu relato da viagem de Fernão de Magalhães, em que participou, e a ouviu em 1521.

Não é o caso de defender a geminação de Sintra com Narayama, baseada no costume de deixar velhinhas mães morrer à fome e ao frio na montanha. Até porque no Japão esse costume já não se pratica. Mas parece-nos razoável alertar a Câmara Municipal de Sintra para a estranha situação da vetusta fonte de Santa Eufémia. Possivelmente no sentido de sensibilizar a empresa PSML, sobretudo junto da Presidente do Conselho de Administração, que já abordou o assunto, infelizmente sem resultados. Acontece que esta empresa é “tetra campeã mundial de conservação e restauro do património” e tem instalações a 100 metros da ermida. Ermida já conhecida no séc. XIII e que no século XXI ainda não tem água potável; que rouba a água da sua venerada e secular fonte, e consome dessa água não controlada pelos SMAS. Isto a 100 metros desta empresa pública que cuida da maior parte do nosso património histórico e que lhe podia fornecer as duas gotas de água de que esporadicamente necessita.

O primeiro texto literário sobre as águas e as fontes de Sintra, do século XII, faz-nos então confrontar com este caso bizarro: temos uma vetusta e primitiva fonte de Sintra, talvez a mais antiga documentalmente, absurdamente abandonada e seca sem necessidade, na terra das águas e das fontes, património mundial.

Insolitamente, são alguns moradores de São Pedro de Penaferrim que sabem onde está guardada a lápide (29X46cm) que assinala o restauro da fonte após o terramoto de 1755, datada de 1758, desenhada por José Alfredo da Costa Azevedo em 1957 e que por pouco não se perdeu como as outras que lá existiam. Pactuam no sentido de entregar a lápide quando alguma ou algumas das instituições que podem ou devem intervir no assunto, ajudem a reabilitar a fonte. Nomeadamente, a Paróquia de São Pedro de Penaferrim, a Câmara Municipal de Sintra ou, não por obrigação, mas por absoluta consciência, a PSML, empresa pública que gere, ao que se sabe bem, grande parte do nosso património histórico e cultural.

 

Este texto foi acabado em Março de 2022, quando se celebrou o “Mês da Água” no Concelho de Sintra.

 

(1) –  Crónica de D. Manuel I. Damião de Gois

(2) – D. Teodósio, Duque de Bragança. D. Francisco Manuel de Melo

(3) – Recentemente, a Câmara Municipal de Sintra publicou a obra Sintria Monumenta Historica, onde, como não podia deixar de ser, vem referida a fonte e a sua sala de banhos. Porém, este assunto prestou-se a alguma confusão que vamos aqui esclarecer. O assunto das lápides desaparecidas da fonte de Santa Eufémia tem-se baseado nos desenhos de José Alfredo da Costa Azevedo. Mas como não há ninguém que não erre, o nosso José Alfredo, ao desenhar a data da lápide de 1758, desenhou 1738. A prova está na fotografia da lápide, que publicamos aqui pela primeira vez. Não só por isso, mas também por isso, temos aqui uma série de interpretações erradas. Em 1738 não se passa nada. Em 1758, muito provavelmente devido ao terramoto de 1755, passam-se duas coisas distintas: o capitão Francisco Lopes de Azevedo restaura a fonte e coloca lá uma lápide que ainda hoje temos. O mesmo sucedeu com a fonte da Sabuga, que ostenta uma lápide gémea de 1757; nesse mesmo ano, o prior de São Pedro, António de Sousa Seixas, na sua resposta às Memórias Paroquiais, refere que a fonte é pertença da ermida e que nas suas águas se vêm banhar os enfermos. A data da construção da sala de banhos, não a sabemos. Sabemos que a lápide mais antiga que lá existia era de 1723. Até este assunto das lápides é representativo da incúria a que estranhamente a fonte está sujeita.

Entre 1931 e 1957, desapareceram duas lápides (1723 e 1807). Daí aos nossos dias, iam desaparecendo as outras duas (1758 e 1845). Salvou-se esta de 1758, que está escondida, graças à sensibilidade de alguém da população.


terça-feira, 12 de abril de 2022

O Anjo da Incerteza



 MARCOS PAMPLONA

Marcos Pamplona (Curitiba, 1964) é poeta, cronista e editor. Os seus poemas foram selecionados para três edições do Prémio Off Flip de Literatura, integrando as coletâneas de 2006, 2008 e 2010. Publicou o livro de poemas Tranverso, pela Kotter Editorial, em 2016; e o livro de crónicas Ninguém nos Salvará de Nós, também pela Kotter, em 2021. Vários textos seus podem ser encontrados em suportes eletrónicos ou de papel, tais como Mallarmargens, Jornal Relevo, Cândido, Pássaros Ruins, Radiocaos e Musa Rara (Brasil); Revista InComundade e Leiria Poetry Festival (Portugal). Vive em Lisboa, onde é editor da Kotter Portugal. Desde abril de 2019 escreve crónicas para o Jornal Plural, nascidas das suas andanças pelas terras portuguesas.

  

Ontem pela manhã o telefone começou a tocar. Pessoas próximas me desejavam um feliz aniversário: os filhos, a mãe, alguns amigos, o irmão. Eu agradecia, satisfeito por terem se lembrado de mim. Uns ligavam do Brasil, outros daqui de Portugal, mas era como se estivessem todos por perto. O calor do seu afeto ia aquecendo o fundo frio que acompanha meus pensamentos nestas datas. Graças a eles e à companheira, que me dedicou uma atenção carinhosa ao longo do dia, passei razoavelmente bem pelo ligeiro incômodo que os aniversários me causam. Pensar que os outros podem me esquecer ou que falam comigo por mero protocolo me deixa contrafeito ou desoladamente efusivo.

Quando fui me deitar, à noite, respirei fundo: estava livre do “meu dia”, da terrível convenção segundo a qual aquela data reserva algo de especial para mim. Já podia voltar ao tempo verdadeiro, ao tempo anônimo de toda gente. Adormecer com a cabeça confortavelmente acomodada em minha ineludível insignificância.

 

            Hoje é domingo. Escrevo diante desta janela bem no alto do prédio, de onde vejo a cidade ainda meio adormecida, sob o azul esbranquiçado onde às vezes some uma gaivota. Procuro responder à pergunta que meu filho mais velho me fez ontem. “Como você se sente?”, disse ele, num tom ambíguo que hesitava entre me provocar e não querer a resposta. Na hora falei algo banal, “vou bem”, “vou levando”, não lembro ao certo. Na verdade fui pego de surpresa. Mas a pergunta dormiu ao meu lado, levantou-se da cama comigo hoje, ficou me rondando como um cão à espera de atenção.

            “Como você se sente?”

           

            Depois de conhecê-la por cinquenta e oito anos, não vejo grandes motivos para festejar a vida. O que houve de melhor foram respingos de alegria, fumos de prazer numa senda de monótonas inquietações. O trágico disso é que também não chego a deplorar a existência, pelo menos nunca a ponto de querer abandoná-la. De tal maneira que me arrasto aos pés do que quase sempre me faz sofrer, como um amante maltratado e servil. E a sabedoria que se supõe colher desta experiência excruciante não vai além de algumas técnicas para diminuir a humilhação, como fingir indiferença ao futuro (carpe diem!) ou buscar na arte o sopro divino que me nega o carrasco.

             Essas considerações poderiam levar você a me supor um homem triste. Ou ultrajado pela sua condição, no fundo fraco. E você estaria certo, mas também errado. Porque ao mesmo tempo sou (absurdamente) forte, como o protagonista de O Castelo, aquele agrimensor que não desiste de buscar o alto, apesar dos labirintos insolúveis que lhe oferecem os poderes terrenos. Então você também poderia, claro, me perguntar o que é o “alto”, mas tal qual o agrimensor jamais chegarei lá, não sei nem nunca saberei o que seja. Simplesmente sou impulsionado pela força cega da vida, o eros que pode conceber e pode matar, jamais deter-se. (Toda a civilização oscila entre estes dois extremos, de criação e destruição, e senta-se diante do prato de sopa como um pássaro exilado do céu.) O alto é talvez apenas o contrário do baixo, do reles, do chão, daquilo a que estamos condenados. Às vezes acredito que é também uma lembrança, a nostalgia de uma completude perdida. O que há em nós de obscuramente divino, se você quiser. Mas outras vezes acho que é apenas nosso corpo com uma saudade oceânica da matéria inanimada, liberta de existir. Não sei; por mais que lhe digam o contrário, ninguém realmente sabe. Não saber parece ser o combustível indispensável para que a roda do mundo gire.

            E aqui, talvez, eu consiga dizer algo que pode ser útil neste espetáculo a que somos lançados nus, sem saber o texto, divisar a plateia ou conhecer o diretor. Digo a você que fuja dos que sabem, dos que professam certezas, dos que “conhecem o caminho”. Tudo que eles querem é escravizar o elenco, amealhar para si a bilheteria e os aplausos. Não lhe trarão nada que sequer se aproxime de amor ou afeto, porque estão comprometidos com a mentira até os ossos.

Você pode achar esquisito, mas o que sinto agora é ternura e respeito pelos confusos, pelos hesitantes, pelos tímidos, perdidos, céticos, por todos aqueles que caminham sobre a mais profunda ignorância, sem impor seu exemplo a ninguém. Os que não querem dominar os outros porque não transformam em matéria de ressentimento ou menosprezo a sua própria insuficiência e, pelo contrário, olham com fraterna largueza para a nossa pequenez.

Para estes abro minha porta, com eles compartilho água, comida, calor. Sei que não irão me devorar nem exigir de mim um predador nauseado.  

Mas evito os que “sabem”, os que se arrogam os poderes do céu e da terra, os que escravizam os outros com verdades que não passam de ilusionismo tirânico, destilado por uma vaidade rasa, violenta, estúpida. Evito os pastores como uma ovelha que sabe que vai ser abatida pelo seu zelo.

 

O que sinto hoje, meu filho, é essa paz relativa que só a derrota pôde me dar. E a presença protetora de um anjo cabisbaixo, esquivo. Poderia chamá-lo de anjo da nossa incerteza.