segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Dois decilitros de revolução



FERNANDO MORAIS GOMES
A televisão não se calava com a crise, na tasca do Jaime dois velhos revolucionários entre mais um bagaço e uma amêndoa amarga, comentavam a situação política. Aborrecidos por não poderem armar o povo, Acácio, Heduíno e outros velhos anarquistas, dividiam-se, unidos na crença de que havendo governo é para ser contra ele:

-Esta corja só à porrada!- com fartos cabelos brancos escorrendo pelo ombro, anarca da velha guarda, Acácio saboreava a S. Domingos, a bem dizer bebia-a dum trago, que havia que saciar a cirrose - o Eça é que tinha razão: o Governo não há-de cair, porque não é um prédio; há-de sair com benzina, porque é uma nódoa! -chamando o Jaime, pedia mais uma dose. Aos cinco bagaços faria um comício, aos dez salvaria o mundo e aos quinze, em êxtase, alcançaria o nirvana, agarrado a quatro amigos que por acaso até eram só dois…

Heduíno estivera no Chile, no tempo de Allende e com a UDP, fora um dos barbudos do RALIS no Verão Quente de 75. Fosse mais novo, e saberia o que fazer com uma G-3, sabia de uma “em boas mãos”, a democracia burguesa e capitalista é que era a culpada da crise:

-Mataram o Marx depois do muro de Berlim, mas o velho cada vez está mais actual. Para quem dizia ter o capitalismo acabado, aí está ele, puro e duro, os “mercados” mais não são que o polvo da Trilateral, do grupo de Bildeberg e dos judeus que dominam a finança mundial! -meio zonzo, tal como Acácio, ajudava à missa na tarefa de enterrar o capitalismo antes do fim da noite, ajustando a boina basca:

-Estes gajos são todos lacaios do capital, a mamar na teta do Orçamento. Arrotam que são eleitos, mas é tudo uma treta. Um deputado é um moço de recados, só que em vez dum contrato, inventaram umas coisas chamadas votos, e o maralhal de vez em quando lá lhes vai garantir o tacho enfiando o papel numa caixa de madeira. Aliás, a coisa é tão tenebrosa que a caixa até é preta, e até se chama urna, já viram a ironia? -satisfeito com a chalaça, pedia mais um bagaço fresquinho.

-Os gajos passam a vida aos gritos, gritam sempre, chocados uns com os outros. Mas não têm espelho lá em casa? Se calhar até levam porrada da mulher, mas na rua apregoam que ninguém os cala…- Acácio falava de cor, uma vez candidatara-se à junta e fizera o mesmo. Vindo das Finanças, chegou entretanto o doutor Almada, homem do contra, mas menos anarquista, tinham sido todos do hóquei, nos anos setenta. O jornal falava em eleições e  o perigo de bancarrota era real, mas o Acácio desvalorizou:

-Bancarrota? Na minha algibeira todos os dias há bancarrota, e dívida externa…olha, o Baptista do talho que diga como está a minha balança de pagamentos… -ironizava - princípio sagrado: na falta de guito, não deixes para amanhã o que podes deixar para depois de amanhã - uma risada foi o pretexto para mais uma rodada, o spread do bagaço não tardaria a encarecer.

-Então e quem ganha? -sondou o Almada, a espevitar os amigos, sabedor das convicções contra tudo o que fosse poder. Heduíno  desvalorizou, ganharia o grande capital, pois então, e os serventuários do costume:

-A Europa já disse tudo o que era para fazer, estes anormais que cá estão é só para carregar pianos! Não há nenhum que não tenha sido julgado incapaz de governar, mas vão sempre os mesmos os que continuarão a dirigir o país. E acreditem numa coisa: quantas mais mostrarem  incapacidade para governar, mais serão recompensados com administrações ou lugares em fundações. É um contabilista mediano? Vai para ministro das Finanças. Distingue um rabanete dum nabo? Grande ministro da Agricultura! E se sabe o nome de três ou quatro capitais, são os Negócios Estrangeiros pela certa. Acácio aproveitou a deixa e meteu colherada:

-Olha, e tu nesse estado “delitro” já podes mostrar a tua liquidez e pagar mais uma rodada....aliás, é mesmo de líquido que se trata…- ironizou, meio zonzo.

Heduíno caprichou e levantando-se já ébrio e de copo na mão ensaiou um discurso, japoneses que passavam acharam piada ao seu ar de Woodstock e desataram a disparar flashes, era o avô do Che Guevara pela certa. Rodrigo, o neto do Acácio, chegou nessa altura e foi ter com eles, bebendo o resto do copo que o avô se aprestava a despejar:

-Pessoal! Os bacanos do guito querem sugar-nos o tutano e entregá-lo ao FMI e à Merkel. Há que abrir a pestana, atacá-los à saída das marisqueiras, sabotar-lhes os Mercedes, dinamitar os ginásios, sequestrá-los nas saunas! É preciso escutar a geração à rasca!

Prestava-se a continuar, para gáudio dos cotas, agitadores de outros tempos, quando o avô, cruzando as pernas com ar aflito correu para a casa de banho, Heduíno, endireitando a boina basca gracejou com Rodrigo:

-A incontinência  e a próstata não perdoam, Rodrigo, chega à nossa idade, e aí é que vais ver o que é a  geração à rasca! Literalmente!

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