Propriedade do Ti Zé e da Ti Firmina, o “Café do Zé” foi, durante
várias décadas e até 1981, o centro da aldeia de Fontanelas.
As tabernas perderam clientela nova e fresca para o café, mais
inovador, com oferta moderna, como bica, bagaço ou brandi. O cheiro a vinho
retardado, associado a uma clientela mais rústica e pouco exigente, afastava
esta nova vaga de freguesia ávida por bebidas finas, bolos quentes e gelados
Olá.
Era no café do Zé lá que miúdos, graúdos, veraneantes e outra gente se
encontravam. A esplanada sobranceira à estrada era uma autêntica torre de vigia
e não permitia que alguém passasse por Fontanelas sem ser objecto de controlo
apertado. Era aí que todos se encontravam e iniciavam a malandragem juvenil, os
primeiros copos, os primeiros namoricos, os primeiros cigarros Mata-Ratos.
Autênticos torneios de futebol se deram na esplanada e na rua
principal, em frente. Quando vinha a GNR, cuidado. Dava direito a multa de 33
escudos por jogar à bola na via pública. Também a “casa dos bonecos”, como era
chamada a sala dos matraquilhos e das máquinas “flipper”, iniciou a miudagem
toda na arte de fumar às escondidas, bater caricas para substituir moedas de 10
tostões ou roubar as máquinas electrónicas, quer fosse com um arame de fardo no
moedeiro ou com um berbequim manual.
Roubar pastilhas, gelados e bolos da montra também fazia parte das
habilidades dos miúdos mais atrevidos. Os pastéis de nata feitos pela Ti
Firmina davam um “bigode” a qualquer “Pastel de Belém” mais afamado, sem
direito a tornas. O Ti Zé era polivalente e palmilhava quilómetros a arrastar
os pés, ininterruptamente, acudindo às mesas ou ao balcão. Quando o Suca pediu se
podia mudar para o segundo canal o Ti Zé perguntou, pondo a mão atrás da orelha:
“Fresca ou Natural?”.
O “Menino”, carinhosa alcunha do Alberto e único filho do casal,
também lá trabalhava afincadamente, embora muitas vezes ausente por “má
disposição”, alegava a Ti Firmina.
O café do Zé era, para além de “café”, um conhecido e afamado
restaurante, onde o Cozido à Portuguesa era rei, sem menosprezar o Cabrito ou o
Bacalhau. Longas filas anteviam uma generosa refeição em qualquer Domingo
solarengo de Janeiro a Dezembro.
O Staff era numeroso e familiar. Uma grande parte da juventude de
Fontanelas e Gouveia, masculina e feminino, passou por lá a trabalhar aos
fins-de-semana ou no Verão. Aqui se fizeram bons profissionais que seguiram o
seu caminho na restauração ou noutra qualquer área profissional, sempre com a
bênção do Ti Zé e da Ti Firmina, autênticos patriarcas do bom acolhimento e da
boa-vontade com os clientes e com os empregados.
Das oito à meia-noite, sete dias por semana, quatro semanas por mês,
doze meses por ano.
Muito deram o Ti Zé a Ti Firmina ao lazer de milhares de pessoas de
sucessivas gerações que passaram pelo Café do Zé e dele disfrutaram. Tanta
dedicação só podia gerar no sucesso que gerou enquanto restaurante, até e após
encerrar como café em 81.
Tive o previlégio de trabalhar com o Ti Zé no Café Coreto ao longo de centenas
ou milhares de duras horas de trabalho, sem que lhe possa apontar o que quer
que seja.
Provavelmente só quem tiver mais de 50 anos se lembrará de uma quadra
escrita nuns velhos azulejos rachados, mantidos unidos por uma moldura de
sólida madeira escura. Transmitia confiança ao freguês mais medroso, dissipando
receios de uma possível “cadela” causada pela abusiva ingestão de bebidas
alcoólicas. Engalanava a parede junto à televisão, mesmo por cima da mesa de
tampo metálico onde, habitualmente, o Dr. Tavares passava longas tardes a ler
calhamaços técnicos, a fumar “I Life” e a bebericar cálices de brandy “Mosca”.
Contudo, a quadra não era totalmente verdadeira, ou por outra, reflectia
precisamente o inverso da prática vigente, ou seja:
“Beba à vontade e sem medo
- Ninguém podia beber à vontade e sem medo, cuidado porque a bebedeira era
certa.
Se ficar de grão na asa
- Era uma certeza ficar de grão na asa e não “se”.
A gente guarda segredo -
No dia seguinte já todos saberiam, qual segredo, qual carapuça... .
E vamos levá-lo a casa”
- Levá-lo a casa, népia. Curtia a
bebedeira no local ou ia pelo próprio pé. Havia ainda a hipótese de uma alma
caridosa pegar no carrinho do gás e carregar até casa o necessitado.
Beba à vontade e sem medo!!!
O que será feito desta histórica moldura com os azulejos rachados?
Ainda sinto o cheiro da “casa dos bonecos”. Um misto de óleo dos
matraquilhos, fumo de tabaco e barris de vinho.
As coisas que me vêm à cabeça....
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